Não deveria ajudar?

Uma sentença da Justiça Federal expõe um dos problemas enfrentados pelo atual processo eletrônico e que precisa ser sanado, com urgência: como redistribuir o processo de uma Justiça à outra?

Nem mesmo a “extrema relevância” da matéria debatida na ação – confirme reconhecido pela própria juíza federal – foi suficiente para deter a extinção do processo sem resolução de mérito.

O caso se refere a uma ação inicialmente movida contra o Estado de Santa Catarina, objetivando o fornecer de medicamento. Em contestação, o Estado requereu o chamamento da União e do município de residência da parte autora, razão pela qual o Juízo estadual declinou da competência para a Justiça Federal de Florianópolis (SC).

Já na Justiça Federal, o processo foi distribuído ao Juizado Especial da capital catarinense. Porém, constatado que o autor residia no Município de Imbituba, a competência foi declinada para a subseção de Laguna.

Lá, a magistrada do Juizado Especial Federal identificou como “cerne da questão” o pedido de chamamento da União ao processo, em ação ajuizada contra Estado de Santa Catarina. E, a esse respeito, expressou entender que o SUS “não perde sua unicidade, sendo possível que as medidas necessárias à efetivação do direito à saúde sejam exigidas de qualquer dos entes, independente um do
outro.”

Segundo a juíza do JEF de Laguna, o acolhimento da intervenção de terceiros requerida pelo Estado protelaria o feito inutilmente, “prejudicando, por conseguinte, o acesso do cidadão aos seus consagrados direitos constitucionais da vida e da saúde, mormente porque a competência seria deslocada para a Justiça Federal, o que resultaria na prática de diversos outros atos processuais desnecessários.”

Por isso, reconhecendo não ser obrigatória a inclusão da União na lide, declarou a julgadora não ser competente a Justiça Federal para processo e julgamento do feito.

Contudo, a sentença que teve o objetivo evidente de privilegiar a celeridade processual encontrou um inimigo à consecução da sua meta: o processo eletrônico.

Disse a magistrada que deixava de determinar a devolução do processo à Justiça estadual porque este “tramita por meio eletrônico, inviabilizando sua redistribuição, e porque os autos físicos provenientes da Justiça estadual não foram encaminhados para este Juízo.”

Desse modo, o processo teve que ser extinto, por ausência de pressuposto de existência válida e desenvolvimento regular.

Por fim, provocado por meio de embargos de declaração, o Juízo defendeu a disposição sentencial: “não há que se falar em jogo de empurra-empurra, mas, sim, em respeito às regras constitucionais e processuais atinentes à competência para a apreciação do feito.”

É importante frisar que a ação busca a concessão de leite imprescindível a uma criança, na qual havia tutela antecipada deferida pelo Juízo estadual junto qual foi proposta a ação. (Proc. nº 2010.72.66.000637-6).

ÍNTEGRA DA SENTENÇA (06.10.10)
Autos nº : 2010.72.66.000637-6
Autor : P.H.G.S., representado por M.C.G.S.
Réu : Estado de Santa Catarina

SENTENÇA

I – RELATÓRIO

Trata-se de ação movida pela parte autora, inicialmente perante a Unidade da Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis/SC – autos nº. 023.09.037877-9, em desfavor do Estado de Santa Catarina, objetivando o provimento judicial que obrigue o réu a fornecer medicamento, conforme descrito na inicial.

Em sua contestação, o Estado de Santa Catarina requereu o chamamento ao processo da União e do município de residência da parte autora, razão pela qual o Juízo Estadual declinou da competência para a Justiça Federal de Florianópolis.

Naquele juízo, a ação foi distribuída ao Juizado Especial em virtude do valor da causa ao Juízo Substituto da Vara do Juizado Especial Federal Cível de Florianópolis – processo eletrônico nº. 2010.72.50.001373-1. Constatado que o autor reside no Município de Imbituba, foi declinada da competência para esta Subseção de Laguna.

É o relatório. Decido.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A matéria é de extrema relevância e realmente merece uma reflexão criteriosa.

O cerne da questão reside no pedido de chamamento da União ao processo (em ação de fornecimento de medicamentos), formulado pelo réu Estado de Santa Catarina, para fins de modificação ou não da competência.

O constituinte de 1988 conferiu especial atenção à saúde, estabelecendo que é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Para tanto, inseriu a promoção da saúde como competência material comum, nos termos do artigo 23, inciso II, da Constituição Federal:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[…]
II. cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
[…].

O constitucionalista José Afonso da Silva assim explica:

Quanto à extensão, ou seja, quanto à participação de uma ou mais entidades na esfera da normatividade ou da realização material, vimos que a competência se distingue em: (a) exclusiva, quando é atribuída a uma entidade com exclusão das demais (art. 21); (b) privativa, quando enumerada como própria de uma entidade, com possibilidade, no entanto, de delegação e de competência suplementar (art. 22 e seu parágrafo único, e art. 24 e seus parágrafos); a diferença entre a exclusiva e privativa está nisso, aquela não admite suplementariedade nem delegação; (c) comum, cumulativa ou paralela, reputadas expressões sinônimas, que significa a faculdade de legislar ou praticar certos atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois, num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida cumulativamente (art. 23); (d) concorrente, cujo conceito compreende dois elementos: (d.1) possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; (d.2) primazia da união no que tange à fixação de normas gerais (art. 24 e seus parágrafos); (e) suplementar, que é correlativa da competência concorrente, e significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas (art. 24, §§1º a 4º). (Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 481).

A co-responsabilidade dos entes públicos federal, estadual e municipal também pode se extrair do art. 4° da Lei n° 8.080/90, que preceitua:

Art. 4º. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

Portanto, o Sistema Único de Saúde, que se encontra ramificado entre os três entes políticos da federação, não perde sua unicidade, sendo possível que as medidas necessárias à efetivação do direito à saúde sejam exigidas de qualquer dos entes, independente um do outro.

Logo, havendo solidariedade passiva, é lícito ao credor “exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum”, nos termos do art. 275 do Código Civil, não importando em “renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores”, conforme disposto no seu parágrafo único.

Por sua vez, estabelece o art. 77, III, do CPC:

Art. 77 – É admissível o chamamento ao processo:
[…]
III – de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum.

Contudo, não obstante nesse tipo de competência material comum possa se vislumbrar um feixe de responsabilidade de todos os entes da federação, a solidariedade formada entre os entes federados se estabelece de maneira distinta da solidariedade passiva civil na medida em que não existe direito de reembolso, total ou parcial, entre os devedores.

Por conseguinte, não se trata de hipótese de litisconsórcio necessário, porquanto eventual procedência da ação em nada afetará a esfera jurídica do outro ente federativo, não se coadunando, evidentemente, à hipótese do artigo 47 do Código de Processo Civil.

O intuito do constituinte ao estabelecer essa co-responsabilidade foi, sem dúvida, de criar uma soma de esforços visando ao cumprimento de metas de alcance social, evitando-se que a omissão de algum dos entes pudesse acarretar o perecimento de um bem ou frustração de uma meta social essencial ao Estado.

Assim, caso acolhida a intervenção de terceiros requerida, o curso do processo restaria protelado inutilmente, prejudicando, por conseguinte, o acesso do cidadão aos seus consagrados direitos constitucionais da vida e da saúde, mormente porque a competência seria deslocada para a Justiça Federal, o que resultaria na prática de diversos outros atos processuais desnecessários.

Por outro lado, é de bom alvitre lembrar que o art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição de 1988, com a redação ofertada pela Emenda n. 45/04, preceitua que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Logo, não me parece coerente com a relevância do bem tutelado nas ações de medicamentos a aplicação do disposto no art. 77, inciso III, do CPC, pois, no caso em análise, a vida e a saúde devem sobrepor-se sobre a aludida formalidade, cuja aplicação só procrastinaria em vão o curso processual.

Vale ainda destacar que houve manifestação da parte autora no sentido de não querer demandar contra os demais entes. Embora seja comum a propositura de ações semelhantes nesta Vara Federal em face da União, a parte autora optou por demandar somente contra o Estado de Santa Catarina, amparado na norma do art. 23, II, da CF.

No âmbito da competência comum, fica à escolha do interessado optar contra quem deseja ingressar em juízo, não se podendo impor-lhe a obrigatoriedade do litisconsórcio entre os entes federados.

Julgando o Agravo de Instrumento nº. 2008.04.00.019184-9, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão de primeiro grau que indeferiu o chamamento ao processo da União. Transcrevo a ementa e o acórdão:

MEDICAMENTOS. UNIÃO. PÓLO PASSIVO. INCLUSÃO.

Se a parte entendeu por litigar contra o Município e contra o Estado, não há porque obrigar a inclusão da União. Se, eventualmente, o magistrado estadual entender que, no caso específico, falece competência ao Estado, é ônus que incorria desde o início pela opção de ajuizamento.

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 16 de dezembro de 2008.

Ressalto que não seria o caso de suscitar conflito de competência, haja vista a Súmula n. 224 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

Excluído do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não suscitar conflito.

Acrescente-se ainda o fato de que o artigo 10 da Lei n. 9.099/95, aplicada subsidiariamente ao Juizado Especial Federal, rechaça de plano a possibilidade de qualquer tipo de intervenção de terceiros, conforme se vê:

Art. 10. Não se admitirá, no processo, qualquer forma de intervenção de terceiro nem de assistência. Admitir-se-á o litisconsórcio.

Desta feita, reconhecida a não-obrigatoriedade de inclusão da União na lide, não mais compete ao Juízo Federal o processo e julgamento do feito.

Por outro lado, deixo de determinar a devolução do processo à Justiça Estadual, tendo em vista que esta ação tramita por meio eletrônico, inviabilizando sua redistribuição, e porque os autos físicos provenientes da Justiça Estadual não foram encaminhados para este Juízo.

E não sendo o caso de declinar da competência, pelas razões acima alinhadas, outra solução não há senão a extinção do feito, por ausência de pressuposto (subjetivo) de existência válida e desenvolvimento regular do processo, qual seja, a competência do juízo.

Assim, a extinção sem exame do mérito é medida que se impõe.

III – DISPOSITIVO

Ante o exposto, EXTINGO O FEITO, SEM EXAME DO MÉRITO, nos termos do artigo 267, inciso IV, do Código de Processo Civil.

Sem custas e honorários advocatícios – art. 55 da Lei 9.099/95, c/c art. 1º da Lei 10.259/01.

Defiro a gratuidade da justiça.

Retifique-se a autuação, excluindo-se a União Federal e o Município de Imbituba do pólo passivo da demanda.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

DANIELA TOCCHETTO CAVALHEIRO
Juíza Federal

Íntegra da decisão dos embargos de declaração

Processo nº. : 2010.72.66.000637-6
Embargante : P.H.G.S., representado por M.C.G.S.

SENTENÇA

Vistos etc.

A parte autora apresentou Embargos de Declaração no evento 24, pugnando pela reconsideração da decisão que extinguiu o feito sem exame do mérito, ou requerendo, alternativamente, que se supra a omissão da sentença, no que diz respeito aos fundamentos legais da extinção do processo sem que se determine o retorno dos autos à Justiça Estadual.

Decido.

Os embargos de declaração são evidentemente improcedentes, uma vez que inexiste qualquer omissão, obscuridade, contradição ou dúvida a ser sanada na sentença do evento 20.

Na realidade, resta evidente que o que pretende a parte embargante é a alteração das razões de decidir deste Juízo, o que é inviável em sede de embargos de declaração.

De fato, se não concorda com a linha argumentativa expendida na decisão, deve opor o recurso processual cabível para modificar o julgado, que não foi omisso no ponto por ela apontado.

Ora, a redistribuição do feito à Justiça Federal se deu em razão do pedido formulado pelo Estado de Santa Catarina de chamamento da União ao feito. Isso porque, como é cediço, cabe à Justiça Federal decidir sobre o interesse da União em integrar a lide.

Na Justiça Federal, o processo tramitou no Juizado Especial Federal, que possui competência absoluta para a apreciação do feito, sendo que a redistribuição do JEF de Florianópolis para o JEF de Laguna também se deu em razão da competência absoluta, decorrente do domicílio da parte autora, regra esta aplicável aos Juizados Especiais Federais.

Portanto, não há que se falar em jogo de empurra-empurra, mas, sim, em respeito às regras constitucionais e processuais atinentes à competência para a apreciação do feito.

Pois bem, como bem observou o embargante, a União, assim como o Município de Imbituba, sequer integraram a lide, em razão exatamente da sentença embargada (evento 20) ter indeferido o pedido de chamamento ao processo. E assim foi decidido, como se pode colher da sentença, com base em dois motivos: em razão da impossibilidade de intervenção de terceiros no rito dos Juizados Especiais Federais, e em decorrência da inexistência de litisconsórcio passivo necessário.

Finalmente, como também foi referido na sentença, o processo não foi devolvido à Justiça Estadual por tramitar por meio eletrônico, inviabilizando sua redistribuição, e porque os autos físicos provenientes da Justiça Estadual não foram encaminhados para este Juízo, possuindo a extinção fundamento no artigo 267, inciso IV, do Código de Processo Civil, em razão da ausência de pressuposto subjetivo de existência válida e desenvolvimento regular do processo (competência do Juízo), fundamento legal expressamente mencionado no dispositivo.

Ou seja, não restou outra saída a este Juízo que não fosse a extinção do processo sem exame do mérito. Conforme referido, o processo físico vindo da Justiça Estadual não foi remetido a este Juízo, o que, consequentemente, impede a sua devolução, acrescido das cópias dos documentos anexados neste processo eletrônico.

Assim, este Juízo está impedido de dar prosseguimento ao feito, sob pena de nulidade absoluta, mesmo tratando-se de caso alegadamente urgente.

Caso houvesse, como deve saber o Douto Procurador do Autor, o ajuizamento de demanda perante este Juizado Especial Federal Cível da Subseção de Laguna (e-proc V1), incluindo-se a União no pólo passivo, não haveria que se falar em incompetência do juízo do Juizado Especial, se o valor da causa não ultrapassasse sessenta salários mínimos, ou do Juízo da Vara Federal Cível desta subseção, caso superior ao limite monetário legalmente estabelecido.

Tendo optado pelo ajuizamento da demanda no juízo e forma proposta, restou por possibilitar a ocorrência de todos os fatos contra os quais se insurge.

Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTES os presentes Embargos de Declaração, mantendo inalteradas as disposições da sentença proferida no evento 20.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se a parte autora, o Estado de Santa Catarina e o Ministério Público Federal, havendo por reaberto o prazo restante de recurso.

Retifique-se a autuação, excluindo-se a União Federal e o Município de Imbituba do pólo passivo, já que não são partes nesta demanda.

DANIELA TOCCHETTO CAVALHEIRO
Juíza Federal

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