Mais alto – Crise nos leva a encarar banco central como quinto poder

por Luiz Roberto Kallas

Há males que vem para o bem. Vivemos um momento histórico como aquele em que, pela queda de Constantinopla, separou-se a Idade Média da Idade Moderna, a qual coincidiu com o descobrimento da América por Colombo ou quando Neil Armstrong pisou na lua. Os princípios da república tal qual a conhecemos até hoje estão para ser alterados. A crise pela qual passamos, embora possa nos trazer sérios problemas, conduz em seu bojo a chama de mudanças significativas na organização social e política.

Não é a crise do fim do capitalismo, como em 1989 com a queda do muro de Berlim, quando assistimos ao fim do socialismo. O que se aproxima é uma síntese, tal qual prevista por Marx, porém seu resultado não é o comunismo e nem o seu embrião, o socialismo. Estamos assistindo, talvez sem entender, os primórdios de uma nova sociedade: a sociedade aberta, que existe em tese, mas que está sendo implementada em pequenos passos.

Como poderíamos ser tão otimistas em momentos tão conturbados frente ao stress sofrido pelo mercado financeiro internacional? Como poderíamos nos alegrar já que as conseqüências na economia real poderiam ser semelhantes a um terremoto de proporções globais, afetando a vida de todos nós em qualquer canto do planeta? Segundo Karl Popper para se entender o mundo é necessário seguir uma metodologia sistemática. Temos que realizar experimentos que comprovem ou refutem nossas teorias.

Temos que enterrar nossas velhas teorias para não sermos enterrados por elas. Ninguém seria louco de fazer um experimento como o que assistimos apenas para testar uma teoria, mas como ele já aconteceu fortuitamente, tratemos de colocar nossos microscópios e nossas provetas para aproveitar momento tão grandioso embora preocupante.

A essência de tudo o que assistimos é que o homem em sua pequenez, nunca poderia ter sido considerado um super homem como afirmavam os iluministas e positivistas, nas palavras de Nietzsche ou de Marx. Nós não controlamos a natureza e ela mostra isso na evidência dos fatos que mal sabemos avaliar dentro de uma visão reducionista. O desenvolvimento é caótico e ocorre ao acaso conforme previa Darwin. Nosso engano é que o evolucionismo poderia substituir Deus ou as forças misteriosas da natureza. Hoje, as religiões mais evoluídas não colocam a ciência na fogueira como na época da Inquisição, mas também crêem que o acaso é o caminho traçado por Deus.

Diferentemente do que afirmava Einstein: Deus joga dados. A vida e a ciência evoluem segundo uma infinidade de caminhos que se assemelham ao livre arbítrio oferecido à raça humana, conforme afirmava o conhecimento religioso e este é fruto de algo que trazemos em nossa gênese, como um código divino. Livre arbítrio na natureza não é a capacidade racional de escolha, mas a compreensão de que todas as possibilidades são reais, conforme a física quântica.

O grande capitalismo, que ao contrário do que afirmava Marx, não possui contradições irremediáveis, está de joelho. Alguns afirmam que chegou o seu fim. Na realidade não é o capitalismo que está morrendo, mas a capacidade dos humanos em resolver os seus problemas mais comezinhos, ao se olhar o planeta como um todo. Para chegar a conclusões tão assertivas é necessário reduzir o problema para entendê-lo. É necessário ainda analisar também esse modelo reduzido segundo modelos não reducionistas.

O que ocorreu com o mercado financeiro é simples de entender. As soluções teóricas para solucionar problemas desse tipo já existem. O que não existe é a capacidade do homem em ver as coisas de maneira multidimensional. Não refuto o reducionismo mas creio que ele é uma das visões do mundo. O reducionismo não é descartável, mas também não é completo. Ele continua válido ao analisarmos detalhes, mas não permite a visão do todo. Precisamos das duas visões pois não existe verdade total, pelo menos no mundo dos vivos.

Descartes, ao formular seu discurso sobre o método, afirmou que o usaria para entender tudo menos para contrariar Deus e sua obra. Parece que ele percebia que seu precursor e o precursor de todos nós tinha oferecido, caminhos inumeráveis para nossa evolução, os quais estariam gravados na gênese da natureza conforme nos mostra o código genético, segundo afirma Francis Collins diretor do Projeto Genoma.

Contra fatos não há argumentos e o fato é que todo e qualquer sistema é caótico, como já por inúmeras vezes pudemos comprovar através de crises pelos quais o mundo já passou. O homem não está acima da natureza mas dentro dela e ao mesmo tempo está fora, em decorrência da razão, do livre arbítrio. Temos que entender nossa mãe e suas idiossincrasias, ou seremos condenados à não-existência. Tal qual a esfinge egípcia, a natureza nos alerta: Decifra-me ou devoro-te. Não existe contradição entre reducionismo e holismo, o qual prevê que o todo e suas partes são ao mesmo tempo independentes e dependentes. Tais visões são apenas diferentes prismas e não contraditórias. Cada qual se aplica à hierarquia dos fenômenos conforme as contingências.

Dentro desse prisma poderemos chegar a seguinte conclusão: O que ocorre com o capitalismo e com as crises das bolsas é um pequeno problema de stress. O stress é algo que acontece quando um sistema, mesmo momentaneamente, não consegue se auto-regular. Ele perde por alguma razão a sua capacidade de retro alimentação e em decorrência disso, somente algo fora dele poderá corrigir o problema. Qualquer médico, psicólogo, biólogo, físico ou especialista em eletrônica e tecnólogos da informação compreendem o stress dentro de suas profissões. E sabem também que alguém tem que dar uma mão ao paciente, para que ele volte ao normal. Estamos vendo isso acontecer com relação ao livre mercado.

Os mercados voltariam ao normal sozinhos, porém se isso ocorresse, a probabilidade de estragos seria muito grande, como foi em 1929. Lá eles não tinham ainda o conhecimento sobre como interferir, foi quando Keynes percebeu que o stress só pode ser resolvido com uma intervenção cirúrgica e prescreveu ações para a recuperação. Hoje nós já sabemos disso. Sabemos também que a crise é inerente a qualquer sistema complexo inclusive o capitalista. O socialismo não passa por crises pois ele já é a crise. O capitalismo é um sistema alavancado, ou seja ele produz mais do que outros sistemas por suas características sinérgicas. Não sei se é por esta razão que Marx reconheceu sua inigualável capacidade de gerar riquezas.

Essa introdução é necessária para entender que o capitalismo não chegou ao fim. O que chegou ao fim, talvez seja a forma reducionista de analisar sistemas complexos, valendo uma consulta a Edgard Morin. A vida é muito mais complexa do que o capitalismo e este é apenas um sub-sistema daquela. A verdade é uma teia de labirintos inescrutáveis e não chegaremos a ela. Porém podemos dar novos passos rumo a algo maior. Não se trata pois de eliminar o mercado, mas eliminar a probabilidade dele sair do rumo. Ele continuará com os mesmos princípios porém otimizando a relação entre máximos e mínimos. Para isso é necessário ver o mundo de outra maneira, a começar pela república.

Dizem os estudiosos que a república é composta por três poderes independentes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Quem cria a regra não é o mesmo que a aplica e quem avalia não é o mesmo que executa. Noção básica para qualquer contador, auditor, legislador ou analista de sistemas. Se os poderes não forem independentes ocorrerá a dominação. Se eles não trabalharem em conjunto ocorrerá o desastre. A democracia assim, só existirá se for republicana. Hoje, até a monarquia obedece a esses princípios de independência de poderes e ao mesmo tempo aderência. Somente as ditaduras não vêem a realidade.

Não existem dúvidas sobre o acerto da separação destes três poderes, porém a prática já acrescentou um quarto: a imprensa. Se não houver uma avaliação livre dos poderes, não existirá segurança de que não seremos dominados. A imprensa surge então como uma garantia de que a dominação não vencerá. Essa é a razão para a liberdade de imprensa. Sem ela um dos poderes poderá dominar o outro e caminharemos para a autocracia, o discricionarismo e as ditaduras. Falta no entanto uma peça básica no sistema. Todos sabemos que o ser humano reage a incentivos e o dinheiro é o padrão básico que modela o comportamento das pessoas. Daí a importância dele como forma de completar a estrutura básica dos princípios republicanos.

Um banco central como braço do executivo, dará a esse um poder discricionário que o colocará acima dos demais poderes, inexistindo a possibilidade de equilíbrio. Os bancos centrais têm, segundo a legislação dos mais diversos países, poderes extra judiciais. Eles podem intervir no mercado independente de autorização judiciária. Imaginem tal poder em mãos de um executivo dominador, incompetente ou inescrupuloso.

Toda a estrutura republicana ruiria. O executivo poderia dominar todos os demais poderes agindo discricionariamente, segundo seus interesses. Surge assim a urgência de encararmos os bancos centrais como um quinto poder independente, sem o qual o equilíbrio entre os poderes se extinguirá e seguiremos rumo a uma república dominadora, se é que esse conceito possa existir.

A interferência que os governos estão realizando nos mercados financeiros mostra claramente que nos momentos de crise, esta é a única solução. Se for a única forma de resolver problemas de equilíbrio, por que não institucionalizá-la, de forma a garantir o correto funcionamento do Estado? Por que não reconhecer o quinto poder? E por que não colocá-lo a altura dos demais? A justificativa é fácil pois vimos o quanto uma crise sistêmica tem poder para destruir nossas vidas.

O sistema financeiro não vai mudar, pois se acabarem com a alavancagem que ele permite, ao simular a suficiência de recursos escassos, não terá como promover o desenvolvimento social. Trata-se portanto de se implementar um mecanismo institucional de monitoria, sem o qual o mundo pode se ver em palpos de aranha, face a inexorabilidade das crises. O fato de o capitalismo e seu braço financeiro ser um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento da humanidade será perdido.

Esquemas alternativos, como o socialismo, não são suficientes para promover o desenvolvimento, como está historicamente demonstrado. Não existe um único país do mundo que desenvolve sem o mercado financeiro. Onde ele não existe o caos é uma constante e o desenvolvimento uma impossibilidade. Óbvio que será um caos diferente, calmo, lento, sem ciclos, porém caminhando sempre em direção ao nada. Todavia onde o capitalismo existir, os ciclos econômicos e as crises serão uma constante a nos atormentar.

Os ciclos não são uma característica do capitalismo mas da natureza. Até as ondas elétricas são senoidais. Dizem até que os nêutrons, prótons e demais partículas que formam a matéria são frutos de uma oscilação senoidal, conforme a teoria das cordas imaginadas pelos físicos. A única forma de manter a natureza dentro dos limites necessários à vida é através de mecanismos de retro alimentação. Se algo está errado, não precisaremos esperar que o ciclo se complete para retroagir.

Se esperarmos a reação da natureza o ciclo irá se completar e a senoide sairá do máximo para o mínimo, deixando um lastro de sangue em sua passagem. Não se trata de dominar a natureza, mas de entendê-la e agir da mesma forma que ela agiria para voltar ao equilíbrio, só que mais rápido. Esse mecanismo é válido tanto para os mercados financeiros como para a ecologia e da mesma forma para uma empresa, um governo, um corpo animal ou uma pessoa.

A maneira de institucionalizar a monitoria e controle das crises financeiras é através de bancos centrais independentes. Todavia essa independência não é total, da mesma forma que não são o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Eles agem ou deveriam agir de forma transfuncional. Significando que são ao mesmo tempo dependentes e independentes entre si. O esquema de poder para o controle da moeda terá que obedecer também essa transfuncionalidade. Mas em síntese esse é o problema central de todas as crises por que passa a humanidade em seu atual estágio de desenvolvimento.

A dificuldade em se entender como funciona esse mecanismo é gritante face o reducionismo metodológico a que estamos sujeitos culturalmente. Não é pois propósito deste trabalho detalhar o esquema de funcionamento dos bancos centrais, mas apenas chamar a atenção dos estudiosos da organização do Estado, do direito e da economia para esse problema central. Muito há que se discutir sobre o assunto, mas a premissa básica que devemos seguir é que o problema da moeda e do crédito é uma questão de Estado, ou ainda melhor da sociedade, em sua última instância. Não é um problema de governo. Se assim o fosse estaríamos limitados por valores partidários ou ideológicos e não factuais. Nessa situação o stress seria sempre testado e as crises estariam sempre nos atormentando ao máximo.

A questão ideológica deve merecer a continuidade de discussão, mas estamos diante de fatos reais que podem prejudicar a toda a humanidade, independente de suas opções culturais. As crises sempre trazem dor e sofrimento e nada mais humanitário do que procurar mecanismos que a atenuem, pois evitá-las é impossível. Todavia trazem a possibilidade de entendermos facilmente aquilo que só os iniciados conseguem vislumbrar. O socialismo não passa por crises pois não é alavancado como o capitalismo, porém não produz aquilo que a humanidade necessita, conforme está sobejamente demonstrado pela história. Não existe um único país socialista de sucesso e se existisse seria uma exceção à regra.

A única questão que deve prevalecer no desenho desse mecanismo de regulação é a ética. Sem ela não existirá possibilidade de solução. Estamos diante de um problema que afeta a todos, embora de maneiras diferentes. Renda, emprego, juros, impostos, salários enfim as colunas do desenvolvimento social se assentam sobre o mercado financeiro. Sua otimização é fundamental para a continuidade da evolução humana. Além da ética é necessário o entendimento do fenômeno factual. Ambos dependem da ampliação do conhecimento e sua distribuição mais eqüitativa. Dessa forma tanto por uma questão de juízos de fato como juízos de valor, estamos diante de um grande desafio que se não resolvido, pode levar o futuro da humanidade a um stress incontrolável em algum momento no futuro.

Pela primeira vez na história da humanidade ocorreu um consenso tão grande entre as nações, todas se esforçando para dar sua contribuição segundo a sua capacidade. O comportamento consensual dos governos se assemelhou aquela de um improvável ataque a terra por marcianos ou civilizações mais remotas. Vimos que sem o quinto poder modelado de forma equilibrada estaríamos aumentando a probabilidade de que um caos maior possa devastar em minutos tudo o que levamos séculos para construir. Essa virtualidade do mercado financeiro que cria moeda em tempo real sobretudo no mundo tecnológico e globalizado em que vivemos, tanto pode contribuir para o sucesso como para o fracasso de nossas vidas.

É, pois, hora de aceitar o desafio e de conceituar e implementar ações e sobretudo mecanismos e instituições que evitem um estrago maior, não apenas agora mas para a posteridade. O quinto poder pode parecer um pequeno passo, mas é tão significativo quanto aquele dado por Neil Armstrong ao descer na lua. A imagem que a crise nos possibilita ver poderia ser comparada com aquela do locutor anunciando pela televisão: Estamos assistindo ao vivo Colombo descer de seu barco e pisar, pela primeira vez, no novo mundo. A América foi descoberta afinal.

Que seja bem vindo o quinto poder, para alívio de todos. O que ficou faltando foi a rapidez para se concluir. Agora já sabemos de sua importância. O que falta é institucionalizá-lo.

Revista Consultor Jurídico

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