Estado repressor – Crime sexual deveria ser passível de ação incondicionada

por Bruno Morello Carrieri

Há, atualmente, um assunto polêmico em pauta no âmbito do Direito Penal brasileiro. Trata-se do tipo de Ação Penal que é estipulada pelo Código Penal para os crimes contra a liberdade sexual, principalmente o crime de estupro e atentado violento ao pudor.

Hoje, em razão da vigência de um código ultrapassado e desatualizado, tais crimes, em que pesem a gravidade e bestialidade de que são revestidos, estão sujeitos à Ação Penal de iniciativa privada, que deve ser proposta pelos ofendidos. Se a mulher, por exemplo, atingida pela conduta de infamante estupro, atentado maior contra sua integridade e liberdade sexual, não tiver forças ou ânimo para ajuizar a Ação Penal, a conduta simplesmente ficará impune. Não é por outro motivo que, em índice muito preocupante, mais de 60% dos crimes sexuais não são comunicados à Polícia.

Enquanto isso, crimes menores, quase que de moldura, como, por exemplo, o ato obsceno, bem demonstrado no comportamento de quem se põe a urinar na via pública, estão sujeitos à Ação Penal pública incondicionada. Ainda que menos aviltantes, ficam sujeitos à vontade exclusiva do Estado em vê-los punidos, em evidente e inexplicável paradoxo se comparados aos graves crimes sexuais. Uma desproporção que não se explica e que, na prática, acaba por trazer a impunidade dos criminosos que cometem crimes gravíssimos como o estupro.

O legislador penal veio pensando ao longo dos anos sobre a grande reprobabilidade do estupro e do atentado violento ao pudor, tanto que, justamente, passou a considerá-los como crimes hediondos, porém não atentou, com a evolução dos tempos e dos costumes, para a necessidade de modificar o poder de iniciativa com relação à sua Ação Penal. Alterou-se o conteúdo, sem modernizar a forma. Temos, hoje, crimes sexuais conceitualmente graves na punição, porém, presos ao modelo processual da década de 40, no qual os costumes e o constrangimento de suas vítimas eram completamente diferentes. Onde, também, a mulher ocupava papel completamente diferente.

Não faltam motivos — jurídicos e históricos — para que os crimes contra a liberdade sexual sejam passíveis de Ação Penal Pública incondicionada. Além daquele já visto, qual seja a sua inclusão no rol dos crimes hediondos (neste rol, aliás, somente o estupro e o atentado violento ao pudor não estão sujeitos a ação penal pública incondicionada), há, também, a evolução da sociedade e da participação da mulher no mercado de trabalho, circunstâncias que lhe trouxeram significativa independência.

Se a mulher é, hoje, mais participativa e atuante do que a da década de 40, não há razão moderna para o tratamento submisso, quase escondido, que a iniciativa da Ação Penal lhe conferia naquela época. Tanto é verdade, que o legislador passou a tipificar como crime até mesmo o assédio sexual, em marco divisor do respeito que o ser humano deve ter quando inserido no mercado de trabalho.

Há mais para ser considerado.

Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor são classificados como complexos. Ofendem não só a liberdade sexual, como também e inegavelmente a própria integridade física da vitima e, não raro, a sua vida. Na esteira de entendimento fixado no Supremo Tribunal Federal, é assim que os tribunais e juízes brasileiros vêm interpretando a iniciativa das ações penais que lhes são correspondentes. Sua complexidade pode ser atribuída à combinação com o crime de lesão corporal, com o de homicídio e, até mesmo, com o crime de constrangimento ilegal, menos grave em relação aos outros dois.

Há forte corrente doutrinária que concorda que o crime de lesão corporal pode ser aplicado tanto às lesões físicas, que deixam vestígios, quanto também às psíquicas, que, embora não marquem o corpo, deixam marcas indeléveis e insuperáveis na psique da vítima. Por vezes, insuperáveis em suas conseqüências.

A verdade, assim, é que os crimes contra a liberdade sexual estão sujeitos à Ação Penal privada com único propósito: o de preservar a intimidade e a dignidade social da vítima perante uma sociedade machista, onde muitos acreditam que o estupro, por exemplo, ocorre por culpa da própria mulher e, desta forma, o oferecimento da denuncia pode muitas vezes trazer à vítima um dano maior do que o de ver o ofensor punido. Lógica evidentemente perversa porque a violência de que se revestem tais delitos, independentemente da conveniência das vítimas, deveria estar atrelada à necessidade de se submeter seus verdugos à punição eficiente e ao cárcere.

O grande problema do atual, porém retrógado sistema, é que a tentativa de preservar a intimidade e a conveniência das vitimas, deixando a seu exclusivo critério propor ou não a ação contra seu ofensor, na realidade não funciona mais. Não é por outro motivo que a questão já é debatida inclusive no Congresso Nacional. O fato de o criminoso ficar impune por não ser proposta uma ação contra ele, o que ocorre na maioria das vezes, permite que outras pessoas sejam suas próximas vítimas, o que não aconteceria se o Ministério Público pudesse ajuizar a ação penal pública baseado na admissibilidade estatal da ação penal.

Além disso, há vítimas que simplesmente não se encontram em um estado psicológico que lhes permita procurar um advogado para propor uma ação contra seu ofensor, fato que, por si só, não significa dizer que elas não queiram que seu agressor seja punido. Não. Apenas significa que não querem ter sua intimidade mais exposta do que já foi. Ou então, e o que é mais grave, que não têm forças para lutar contra o poderio do agressor, por vezes estabelecido dentro de seu próprio ambiente doméstico.

Tais vítimas, ao contrário da falsa proteção proporcionada pela iniciativa privada da Ação Penal, estariam muito mais seguras se pudessem depor perante o Poder Judiciário ou perante os organismos policiais, ou, ainda, fazer um reconhecimento em um processo que corresse em segredo de justiça. A evolução legislativa — veja-se, por exemplo, a denominada Lei Maria da Penha, vem apontando para essa solução.

A grande falha de nossa legislação, no que diz respeito aos crimes contra a liberdade sexual, é que, com o intuito de preservar a intimidade e dignidade das vitimas, acaba por esquecer-se de outras tantas em potencial, deixando a própria sociedade sujeita à ação contínua de criminosos impunes e fortalecidos. Não há outra conclusão possível.

Colocar a segurança da sociedade em mãos de vítimas de tais crimes é responsabilidade grande demais, dado que elas não têm, por óbvio, a força e a segurança do Estado.

A solução, assim, é a configuração de investigação e processo especiais, que envolvam setores especializados das polícias, do Judiciário e do Ministério Público, além, é evidente, da psicologia e psiquiatria dos hospitais públicos e privados, trabalhando em apoio, aproveitando-se, afinal, aquilo que já está atuando de forma parecida (nas chamadas delegacias de proteção da mulher).

É hora de um processo que dê segurança às vítimas e que puna os criminosos. É hora de sepultar, definitivamente, o modelo fraco e ultrapassado, concentrado exclusivamente na iniciativa dos ofendidos, no país de desigualdades sociais, culturais e econômicas, que merece, assim, na atuação do Estado repressor do crime sexual, o seu máximo aparelhamento e eficiência. É hora de respeitar, também na Ação Penal, a verdadeira liberdade sexual.

Revista Consultor Jurídico

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