Direito à liberdade – É falácia afirmar que spam é ruim por invadir privacidade

por Félix Soibelman

“Imprensa, segunda libertação dos homens” (a primeira teria sido Jesus). Assim o disse Lutero, referindo-se à imensa vocação libertária do conhecimento vertido às massas. E ele mesmo reatou a relação direta entre a consciência e o fundamento universal sem a tutela de uma instituição (no caso a Igreja), abrindo caminho para a subjetividade como atesta Hegel em sua “História da filosofia”. Depois de Lutero ocorreu uma alfabetização sem precedentes na Alemanha e uma reviravolta que cambiou as relações de Poder no mundo.

A humanidade tem passado assim por grandes choques de libertação mediante o conhecimento que por sua vez alimenta o pensamento crítico, sempre iniciados ou secundados pela veiculação das idéias. Por isso mesmo a custódia da comunicação sempre foi almejada pelas forças da conservação.

A História mostra, portanto, que o Poder jamais se divorciou deste controle sobre a comunicação, de modo que até fins do século XX a capacidade de comunicar massivamente algo se enfeixava com a sustentação do status quo, o que relativiza a democracia.

Eis então que um acontecimento singular fez perigar esta correlação de forças: a Internet. Por ela, pela primeira vez na história da humanidade um homem pode dirigir a palavra a milhões sem o apoio ou beneplácito de espécie alguma de Poder. Neste contexto situa-se o spam, fantástico e excepcional meio de expressão que recupera para o indivíduo parte da liberdade que, quiçá, desde os tempos pré-estatais do “bom selvagem” de Rousseau, despossuía. Não obstante, uma falácia foi urdida com o fito inconfesso de resgatar este controle privilegiado da informação: a idéia de que o spam é ruim porque invade a privacidade, congestiona a rede, é possibilitado pelo pagamento que o usuário faz ao provedor de internet, etc. É uma falácia porque se apresenta como argumento válido sem o ser e analisaremos isto judiciosamente a seguir.

Diga-se primeiramente que o cotejo axiológico faz pender a balança para o sacrifício incômodo que possa representar o spam em nome dessa inédita e singular propriedade libertária. Sintetizamos este confronto axiológico com a seguinte indagação: “é mais pernicioso à humanidade a detenção do Poder de comunicação por setores privilegiados ou o incômodo de receber uma mensagem não solicitada? Duvidamos que em sã consciência alguém prefira a manutenção dos feudos midiáticos.

Neste diapasão nos encontramos com a verdade central subjacente ao combate anti-spam, aquilo que está sediado nos verdadeiros móveis daqueles a quem os Quixotes da luta anti-spam servem: o desejo de que o monopólio da comunicação em massa seja reconduzido aos donos da mídia tradicional e o Poder econômico que a rege desde seu advento.

Sim, o que os anti-spamers dizem, mesmo sem o falar diretamente, é que novamente apenas as hidras da comunicação, as grandes redes televisivas, os grandes portais, os grandes jornais é que podem lançar planeta afora o que lhes convenha, sendo os primeiros juízes da nossa liberdade.

Sob o ponto de vista do consumo a luta anti-spam fere mortalmente a índole revolucionária da Internet. Ora, como é que empresas tais quais Amazon e Ebay revolucionaram as relações comerciais mediante a Internet? Qual foi a idéia mater que modificou os paradigmas do consumo e do comércio? Basta, para responder a esta pergunta, mirar o Ebay: um site que permitia milhões de pessoas fazerem vendas diretamente entre si sem dependerem de uma propaganda que custaria muitíssimo num jornal. A Amazon, por sua vez, oportunizava a interferência direta dos consumidores na propaganda ao permitir comentários sobre os produtos. Foi essa inversão das polaridades entre consumidores e fornecedores, possibilitando maior força aos indivíduos, o que subverteu o modelo tradicional.

Nada mais condizente, portanto, com este novo paradigma, do que a independência que o spam representa para o indivíduo. Uma independência anárquica, isso é tão verdadeiro quanto curial aos ideais libertários que se consolidam no spam. O que estamos vendo, não obstante, atualmente? Uma reacomodação do domínio sob os moldes tradicionais como resultado do combate encetado pelas forças reacionárias: grandes grupos, grandes portais de busca ou conteúdo avançando aos poucos sobre a Internet ou grupos tradicionais da mídia nela ganhando terreno. Incomoda, realmente, que essa ferramenta nobre que é o spam persista no caminho de quem deseja vender espaços publicitários a preços nada compensadores.

Com efeito, mediante spam, com custos mínimos, um indivíduo pode alcançar maior resultado e consagração do seu produto do que o faria uma empresa de marketing com propaganda paga, inclusive em banners e anúncios de links patrocinados em portais de busca.

Um condimento pleno de hipocrisia nesta luta anti-spam é a execração dos ideais capitalistas por parte daqueles que condenam os spams comerciais, mas anseiam ganhar com a internet. Entre estes se encontram os provedores. Provedores são dos mais cínicos integrantes dessa polêmica, pois acenam a seus clientes com a proteção à liberdade de escolha com oferecimento de filtros anti-spam, mas em verdade tudo o que não querem é arcar com o ônus que a liberdade essencial da Internet implica, suportando assim o tráfego dos e-mails.

O congestionamento da rede que o spam em tese produziria é outro dos elementos da falácia anti-spam; primeiro, esse congestionamento não ocorre com a dimensão alardeada; aliás, esse argumento não passa de puro rótulo odioso, já que os congestionamentos que a rede experimenta devem-se muito mais ao intenso acesso simultâneo dos internautas do que propriamente ao envio ou troca de mensagens eletrônicas; segundo, com a banda larga em expansão acelerada, cada vez representará menos a carga de envio de e-mails, como de resto o múltiplo acesso simultâneo à rede.

Não é fenômeno politicamente isolado, no entanto, essa falsidade inerente à condenação do capitalismo nos “preceptores da Internet”. Obedece tal atitude a um fetiche esquerdista que no seu resultado muito semelha a recomendação de César de que “nunca diga aos escravos que eles são escravos”… Sim, esses “inimigos do capitalismo cibernético”, ao mesmo tempo em que demonizam a “captura da web pelo lucro” traem o ideal emancipatório da Internet ao podar as possibilidades individuais condenando o spam, mas sabem como ninguém tirar proveito econômico disso, como é o caso emblemático de Steve Linford, de quem falaremos a seguir, a título de ilustração.

Steve Linford é uma espécie de “Dom Quixote remunerado”, o CEO da Spanhaus (célebre serviço europeu que oferece com seu serviço de “blacklist” — listas negras de spamers a provedores como Yahoo e outros na Europa). Linford já discursou no parlamento europeu e mereceu matéria num grande jornal americano. Não obstante, ganha milhões de dólares com o referido serviço. Enquanto o famoso personagem de Cervantes assim como mártires reais, jamais cobrou coisa alguma para “salvar o mundo”, Linford, hilariamente, cobra…

A Spanhaus de Steve Linford, igual a outras entidades similares, exerce o papel de verdadeiro Tribunal de Exceção julgando e condenando segundo seus próprios critérios e denominando com “gang de spam” aqueles que assim lhe parecem, o que já lhe valeu uma condenação em milhões de dólares nos EUA, da qual escapa até hoje pelo fato de estar sediada na Inglaterra e na Suíça.

Entre os que se beneficiam de seus serviços estão algumas seccionais da OAB (talvez por estarem em provedores que utilizam seus serviços sem o saberem, frise-se), compactuando assim, indiretamente, com a ilegalidade universal que são as Cortes de Exceção na história da humanidade.

Conserva postura aparentada toda a jovem geração de informatas que administram provedores. Na sua maioria são jovens pouco acostumados ou capacitados a pensar criticamente que absorvem irrefletidamente a idéia de que “spam é ruim”. São geralmente técnicos em Linux, etc. A contradição entre o desejo de lucro e a condenação do capitalismo reflete-se também nos que cultuam, assim, a chama idealista do chamado “software livre”. Basta pensar no preço exacerbado cobrado pelos que dão suporte a Linux, dada a complicação que é, para vermos se esfarelar essa bandeira e concluirmos, finalmente, que o software livre sai mais caro do que o bom e velho Windows.

Há, como supramencionado, a alegação de ser o spam propaganda paga pelo usuário, na medida em que para baixar os e-mails o faz com o serviço de conexão que lhe é oneroso. Ora, pelo mesmo argumento, provedores de acesso como o UOL, por exemplo, não poderiam conter propaganda de terceiros e muito menos enviar propaganda de novos serviços a seus clientes, assim como canais de televisão por assinatura igualmente deveriam ser proibidos de publicar comerciais, uma vez que a assinatura é paga e ninguém contratou, senão por vulneráveis contratos de adesão de todo questionáveis judicialmente, a obrigação de pagar pela propaganda que recebe. Novamente saliente-se que a Internet caminha para a gratuidade com a inclusão digital e só quem não tem visão alguma do futuro deixa de perceber que a televisão será engolida pela Internet, alterando por completo o equilíbrio de forças das grandes emissoras e pulverizando o conteúdo.

A objeção de que o spam deve ser contido por ser utilizado na proliferação de conteúdo nocivo, criminoso ou pornográfico é falácia do acidente invertido. Ora, a ocorrência excepcional de eventos negativos não serve a fomentar uma regra que fulmine uma ferramenta, salvo se o risco for tamanho que torne letal qualquer estatística. Deixaríamos de fabricar talheres ou automóveis porque, respectivamente, facas já foram utilizadas para assassinar e mediante carros se atropela alguém? Não pode haver melhor controle do spam do que um botãozinho que se situa do lado direito de todo teclado, sobre o qual paira a inscrição “Delete”. Controle pessoal, individual, sem a tutela ou necessidade de intervenção de salvadores da pátria.

Resta ainda por comentar a questão ecológica. Estamos na iminência de um “apagão florestal” (busquem pela expressão no Google e verão a gravidade da situação) com a produção de bilhões de impressos todos os dias que conduzirão ao esgotamento das florestas, ao passo que a modernização da Internet e a potencialização da banda larga caminham em direção expansiva, portanto, contrária. A derrubada de árvores, cujo replantio não acompanha nem de longe as necessidades do consumo é muito mais perniciosa para humanidade do que a recepção livre de spams. Só uma anomalia mental justifica pensar o contrário e bom seria se um dia toda propaganda impressa fosse substituída por spams. Nossos filhos é que lucrarão com isto e agradecerão pela preservação do planeta.

Por derradeiro, quero poupar o esforço daqueles leitores de raciocínio simplório que pensam que as “segundas intenções” são sempre a vizinhança de toda verdade humana e que com sua denúncia desbaratam tudo, tais como ginasiais extasiados. Depois de empreender árdua pesquisa, inclusive de campo com a prática do envio de spams, pude comprovar as razões aqui vertidas, e que o seu resultado é muito superior ao anúncio em banners ou propaganda em jornais, razão pela qual cada vez mais empresas se interessam em fazer ou oferecer spam sob o pomposo nome de “e-mail marketing”.

Espero que este artigo ajude a refletir sobre os diversos elementos falaciosos que tanto fascinam os incautos, mais afeitos às paixões do que ao raciocínio crítico prospectivo, a fim de que possam sopesar prós e contras cogitando sobre os resultados futuros para abandonarem o desiderato de subtrair este formidável, verdadeiramente maravilhoso instrumento da liberdade individual que é o spam.

Como dizia Einstein, é mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito e sei, pois, que militar contra um quase-consenso de nocividade do spam é muito difícil, dado que os leitores já partem de uma repulsa emocional. O que quero ver, no entanto, são argumentos consistentes contra cada uma das alegações vazadas neste pequeno arrazoado. Pelas razões acima, finalizo louvando o spam como algo que deveria ser cultuado no lugar da abominação cega que lhe devotam.

Revista Consultor Jurídico

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