Dever legal – Uso de força é exercício profissional estratégico

por João Lopes

O recentíssimo episódio acontecido na cidade de Santo André, grande São Paulo, quando um jovem, de prenome Lindembergue, 22 anos, em profundo desequilíbrio emocional, manteve em cárcere privado sua ex-namorada Eloá, com uma amiga, Nayara, ambas com idade de 15 anos, no apartamento de moradia da primeira, a título de resolução de agudo conflito afetivo-existencial, teve o pior desfecho que se podia esperar do caso. A despeito do acompanhamento ininterrupto da Força Policial local, tentando solucionar a crise através da negociação, o rapaz acabou desferindo tiros, vindo a matar uma das adolescentes e ferir gravemente a outra. Foram mais de 100 horas de ação policial sem o êxito que a sociedade ansiava.

Em casos como tais, podem ocorrer quatro prováveis desfechos, aqui seqüenciados na ordem do desejável da ação policial: 1. Prender o seqüestrador, vivo, e resgatar os reféns, também incólumes; 2. Eliminar o criminoso e salvar os reféns; 3. Eliminar o agente, sem conseguir salvar suas vítimas; 4. Perder ou lesionar seriamente as vítimas e salvar o agressor. O trabalho policial de Santo André conseguiu ficar com a última, a mais desvalorizada das opções.

É fácil imaginar a percepção da população sobre o desvio de finalidade da proteção que incumbe ao Estado prover aos cidadãos. Não se deseja discutir, neste trabalho, os possíveis graves erros de estratégia e tática policial, que certamente aconteceram. Vamos nos limitar aos aspectos jurídico-penais que o assunto comporta.

Não há melhor oportunidade de trazer à discussão circunstâncias consuetudinárias, preceitos éticos e legais que envolvem o tema Poder de Polícia. A questão não é outra senão a definição acertada do que “pode” a Polícia em busca de seus objetivos institucionais. Pode constranger? Pode lesionar? Pode matar?

É da Sociologia o ensinamento inarredável de que a Polícia detém direito exclusivo ao Uso Legítimo da Força em nome do Estado. Decorrem daí as implicações — não mais sociológicas — jurídicas desse princípio. O que nos diz o ordenamento brasileiro? O que é, especificamente, essa Força? Quando e como deve ser usada? Há limites à sua imposição? Quais?

A Força Policial, em regimes democráticos de governo, tem finalidade primordial de Proteção. Proteger as pessoas. Proteger a Sociedade. Proteger o Estado. São atividades protetivas em que se assenta o significado de Manutenção da Ordem. Nos sistemas autoritários, por outro lado, a Força é utilizada precipuamente em Defesa do Príncipe, Defesa do Estado. A população é vigiada e mantida em situação suficiente a não incomodar o Governo. Situações dessa natureza são inconciliáveis com direitos e garantias individuais. É o sentido perverso de Manutenção da Ordem.

Vivemos numa sociedade democrática e sabemos que a Carta Constitucional de 1988 manteve o instituto da pena de morte. Para tempos de guerra, mas ela tem existência legal. O Direito Penal Militar regula a aplicação da sanção extrema. Numa situação imaginária de beligerância — que esperamos nunca aconteça — havendo condenação e execução, o ato do carrasco (pelotão de fuzilamento, segundo o CPM) é legítimo? É legal? Onde encontra fincas no Direito?

Na chamada “ocorrência de crise”, do tipo seqüestro com refém, roubo a Instituição bancária ou roubo a residência em que os agentes mantenham as vítimas em seu poder, restringindo-lhes a liberdade e causando-lhes extremo risco de vida, as organizações policiais de razoável preparo técnico-operacional agem em três etapas distintas. Primeiramente realiza-se um forte cerco ao local onde se desenvolve a infração, com vistas ao impedimento de fuga.

Na segunda fase entra em cena um especialista em negociação, que tem por objetivo desestimular os marginais no prosseguimento de sua conduta, fazendo perceber a presença da força em superioridade numérica e estratégica. Dá garantias à rendição com todos os direitos relativos à proteção da integridade física e da vida. Quase sempre dá certo e fica sendo esta a etapa final. Entretanto, vezes outras, devido à elevada agressividade dos autores, do altíssimo nível de stress a que também ficam submetidos, ou, mesmo, por estarem sob efeito de drogas, resistem e não se demovem de seu intento, fazendo prosseguir a situação de inegável risco para as vítimas. Entram em ação, nessa fase, já presentes ao local, os snipers, com seu uniforme negro, com sua máscara ninja, com armas de longo alcance e pontaria precisa.

Há outro meio de solucionar este tipo de ocorrência e de fornecer às vítimas a proteção de que precisam? É a ultima ratio. Alguns disparos em sincronia. Baixas estrategicamente programadas. Retorno à situação de normalidade. Isso é legal? Onde está o amparo do Direito?

Numa simples prisão de alguém que, na rua, acabou de praticar infração penal grave, costuma haver resistência e recusa à ação policial. Faz-se necessário o uso da força para conter o criminoso e isso pode lhe acarretar alguns danos à incolumidade. Nada mais natural. O Direito autoriza essa ação que lesiona? A Polícia, que remotamente foi chamada de Força Pública, pode agredir pessoas no exercício da atividade de sua competência?

A vigente legislação constitucional garante a liberdade de expressão do pensamento e de comunicação entre as pessoas. Como se justifica a censura de correspondência do preso com o mundo exterior? Arbitrariedade? Abuso? A Lei de Execução Penal tem sido suficiente para controle da população prisional?

Nosso Direito Positivo estabelece, com respaldo constitucional, as chamadas circunstâncias excludentes de ilicitude, ou excludentes de antijuridicidade ou, ainda, causas de justificação. São o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito, conforme artigo 23 do CP.

A Polícia age, na maioria das vezes, com o respaldo da chamada norma permissiva. Certo é que a conduta do agente público, nas situações que criamos a título de exemplo, todas possuem tipicidade penal. De vias de fato, de constrangimento, de violação de correspondência, de lesões e de homicídio. Não é, entrementes, antijurídica. Não agride o sistema jurídico porque é autorizada por ele. Não é crime. À conduta criminosa não basta ser típica. Há que ser, também, antijurídica, segundo o entendimento mais básico da Teoria Finalista da Ação, de Welzes, que serviu de orientação ao conjunto de regras que compõem a Parte Geral do CP, reescrita em 1984.

Importa saber, mesmo assim, qual das excludentes socorre a Polícia, galvanizando de legalidade a sua ação. Muitos entendem se tratar do exercício regular do direito, partindo do pressuposto que é facultado ao policial agir assim, em situações da espécie. Outros há que entendem se tratar de legítima defesa de terceiro, incluindo os interesses coletivos e sociais como variação de terceira pessoa.

Tenho a ousadia de discordar radicalmente, obrigando-me a declinar o arrazoado de minha dissidência. Para o exercício de direito, tem-se que admitir estar lidando com mera facultas agendi, pendente da exclusiva voluntariedade de quem age. Inexiste obrigação. Também na Defesa de Terceiro não se força o defendente a assumir tal conduta. Pelo contrário, a própria lei o exime de responsabilidade, por omissão, se a circunstância lhe apresentar risco pessoal (artigo135 CP). Não há obrigatoriedade tanto em uma quanto em outra situação.

Na ação policial, entretanto, não existe facultas, mas obligatio. O agente policial não pode se furtar à adoção da providência que mais for adequada à situação que se lhe apresenta, não importando o nível de exigência que possa conter, respeitadas, apenas, as orientações da tática operacional. Não pode fugir do perigo, que aliás é intrínseco de sua atividade, mas tem que conter, dominar e apaziguar toda situação decorrente da conduta criminosa. Por isso é fácil entender que a Polícia age em estrito cumprimento do dever legal. Daí poder-se entender que ela não tem direito de constranger, de lesionar, de matar, mas pode ter a obrigação de fazer tudo isso em determinadas circunstâncias. Parece absurdo, mas são afirmações afinadas com nosso conjunto de normas e com as premissas democráticas de proteção social.

Não se pode esquecer, porém, que existem limites, muito bem definidos, para o Uso da Força, e não poderia ser de modo outro. O artigo 322 da Legislação Substantiva Penal nos apresenta o crime da Violência Arbitrária. Os possíveis autores de tal conduta serão os próprios agentes públicos, agentes policiais, que venham a se utilizar da Força em quantidade inadequada, em ocasião inoportuna, em situação desnecessária, tornando a conduta abusiva e criminosa. A vis corporalis, sob a égide estatal, só pode ser usada na medida exata de sua adequação e suficiência a cada caso. Isso é limite legal.

A própria legislação criminal cuida, ainda, do “excesso” no exercício das excludentes, admitindo punição, por dolo ou culpa, para quem as utiliza com meios imoderados ou desproporcionais ao perigo que se apresenta. É mais outro limite.

Também a Lei de Abuso de Autoridade (4.898/65) dispõe de um conjunto de figuras típicas e de sanções de enorme severidade para o funcionário — que o legislador chamou de autoridade — que em nome da Administração Pública contraria os interesses da proteção comum. Em seus artigos 3º e 4º recrimina condutas que podem advir do mau exercício da atividade policial e malferir as regras garantidoras da liberdade, da honra, da integridade física e moral, do patrimônio e da vida das pessoas. Mais um poderoso limite.

Num elogiável sistema de freios e contrapesos existem possibilidades as mais diversas e seus respectivos mecanismos de controle. A Polícia pode ser forte e severa, sem necessariamente ser violenta. A propósito, a terminologia Violência é comumente empregada para ações irregulares e ilegais, passando a se denominar Uso da Força quando balizada em situações juridicamente permitidas.

Violência é desrespeito, é despreparo, é crime. Uso de força é exercício profissional estratégico. É rigor na aplicação da Lei!

Revista Consultor Jurídico

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