Algemar ou não – STF não observou requisitos ao editar súmula da algema

por Pedro de Jesus Juliotti

Quando a polícia pode fazer uso de algemas? Na verdade, não há uma legislação específica disciplinando ou impondo regras para a sua utilização. A Lei 7210, de 11 de julho de 1984, denominada Lei de Execução Penal, em seu artigo 199, reza que o emprego de algemas será disciplinado por Decreto Federal. Infelizmente, até hoje o citado decreto não foi editado.

Na ausência de legislação específica e considerando recentes episódios envolvendo a prisão de algumas personalidades, o egrégio Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária do dia 13 de agosto de 2008, editou a Súmula Vinculante 11: “Só é licito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

A decisão de editar a súmula foi tomada durante o julgamento do Habeas Corpus 91.952. Na ocasião, o Plenário anulou a condenação do pedreiro Antonio Sérgio da Silva pelo Tribunal do Júri de Laranjal Paulista (SP), pelo fato de ter ele sido mantido algemado durante todo o seu julgamento, sem que a juíza-presidente daquele tribunal apresentasse uma justificativa convincente para o caso.

No mesmo julgamento, o STF decidiu, também, deixar mais explicitado o seu entendimento sobre o uso generalizado de algemas, diante do que considerou uso abusivo, nos últimos tempos, em que pessoas detidas vêm sendo expostas, algemadas, aos flashes da mídia.

Não há dúvidas sobre a necessidade de regulamentação do uso de algemas, pois o uso desnecessário e abusivo fere a Constituição Federal, que impõe a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do preso. Louva-se a boa intenção do STF, mas, a citada Súmula é manifestamente inconstitucional por ofensa ao princípio da separação dos poderes.

A Constituição Federal previu a existência dos Poderes do Estado (Legislativo, Executivo e o Judiciário), independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais, bem como criando mecanismos de controles recíprocos, sempre como garantia do Estado democrático de Direito.

A função típica do Poder Judiciário é a jurisdicional, ou seja, julgar, aplicando a lei a um caso concreto. O Poder Executivo constitui órgão constitucional cuja função precípua é a prática dos atos de chefia de estado, de governo e de administração. Por sua vez as funções típicas do Poder Legislativo são legislar e fiscalizar.

Ao estabelecer regras para o uso de algemas, exigir a comunicação do uso por escrito e estipular sanção civil, penal e administrativa, o Supremo Tribunal Federal simplesmente legislou, assim invadiu a competência constitucional do Poder Legislativo.

Além de legislar, o Supremo Tribunal Federal não observou um dos requisitos necessários para a edição de uma Súmula Vinculante, previsto no artigo 103-A, §1º, da Constituição Federal, ou seja, que tenha por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas e, como vimos, desde 1984 não há uma norma determinada que discipline o uso de algemas ou que determine a justificação de sua utilização por escrito.

Não se pode ignorar também, que a própria Constituição estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5ª,inciso II).

Portanto, somente a lei pode compelir o policial a fazer, a deixar de fazer ou a tolerar que se faça alguma coisa, somente a lei pode criar regras de vinculação para toda a polícia, para toda a administração pública.

Se não há legislação específica e sendo a Súmula Vinculante inconstitucional, voltamos a pergunta inicial: Quando a polícia está legitimada a fazer uso de algemas? As regras para utilização de algemas devem ser extraídas de outros princípios previstos na legislação em vigor.

O Código de Processo Penal, em seu artigo 284, estabelece que “não será permitido o uso de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”. Por sua vez, o artigo 292 do CPP, ao tratar da prisão em flagrante, permite o emprego dos meios necessários, em caso de resistência a prisão.

Dessa forma, excepcionalmente, somente quando justificada a utilização de força, nas hipóteses de resistência e tentativa de fuga do preso, estará legitimado o policial a utilizar a algema.

Conclui-se que incumbirá ao próprio policial, no momento da ação, avaliar se as condições justificam ou não o emprego de algemas como meio necessário para impedir a fuga do preso ou conter a sua violência. Nesse processo, como bem salientou Fernando Capez (“A questão da legitimidade do uso de algemas”), a razoabilidade, consagrada no artigo 111 da Constituição Estadual, constitui o grande vetor policial contra os abusos, as arbitrariedades, na utilização da algema.

Sobre o princípio da razoabilidade, vale dizer, “pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas — e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis — as condutas desarrazoadas e bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei atributiva da discrição manejada” (Celso Antônio Bandeira de Mello “Curso de Direito Administrativo”).

Assim, o emprego de algemas que não respeitar tais parâmetros e se mostrar abusivo, implicará na prática de crime de abuso de autoridade, por constituir contra o preso atentado à incolumidade física, bem como vexame ou constrangimento não autorizado em lei (artigos 3, i, e 4º,b, da Lei 4.898/65).

Revista Consultor Jurídico

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