“Acusador de exceção”

Um interessante acórdão do TJRS reforça a necessidade de observância do princípio do promotor natural no processo penal, sob pena de se decretar a nulidade do julgamento.

O caso tem origem na comarca de Encruzilhada do Sul, onde Marcos Odilon Cunha de Freitas é réu pela acusação de cometimento de duplo homicídio duplamente qualificado, por haver, conforme a acusação, à emboscada, assassinado um funcionário seu juntamente com o filho de 12 anos de idade.

O ocorrido ganhou enorme repercussão na pequena cidade sendo notícia inclusive em jornais da Capital.

Sobreveio julgamento pelo tribunal do júri na comarca interiorana e o juiz presidente, em conformidade com a decisão do conselho de sentença, estabeleceu condenação à pena de 32 anos e 6 meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado.

Fato decisivo para os desdobramentos do caso no TJRS foi que – embora obrasse pelo Ministério Público Estadual na comarca a promotora de Justiça Dra. Brenusa Marcquardt Corleta – quem atuou na sessão de julgamento foi o também promotor Eugênio Paes Amorim, que labora na comarca da Capital.

Essa troca de promotores foi denunciada pelo réu em apelação ao tribunal gaúcho, sob a sustentação – entre outros argumentos – de nulidade posterior à decisão de pronúncia, por quebra do princípio do promotor natural.

Ao analisar o apelo, a 1ª Câmara Criminal – por maioria de votos – decidiu por decretar a nulidade do julgamento.

O relator, desembargador Manuel José Martinez Lucas, iniciou seu voto esclarecendo que há divergências sobre a questão, mas “a tendência atual é a de admitir-se a vigência do Princípio do Promotor Natural, com apoio em dispositivos constitucionais, não obstante os princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público, também consagrados na Carta Magna.”

Para o desembargador, é tolerável a designação de promotor de Justiça para atuar em um caso específico desde que o ato seja justificado e formalizado e não constitua imposição de “acusador de exceção”.

Entendeu o desembargador Martinez Lucas que o processo está eivado de “graves irregularidades”, pois a promotora de Justiça da comarca estava em pleno exercício da função, uma vez que véspera do júri ela própria manifestou desistência na inquirição de uma testemunha e, no dia seguinte ao julgamento, participou de audiência.

O acórdão revela que a promotora Brenusa Marcquardt Corleta teria enviado à Procuradoria-Geral de Justiça “documento cientificando acerca de sua impossibilidade de atuar no Plenário do Tribunal do Júri em razão de encontrar-se no final da gestação”, contudo, a informação estaria datada de um mês depois da realização do júri, “não havendo nos autos, até aquele momento, qualquer explicação para o afastamento da titular da Promotoria”, avaliou o relator: “é estranho que a agente ministerial, em razão de seu adiantado estado gestacional, não tivesse condições de atuar em plenário, mas continuasse exercendo suas funções regularmente, o que demandaria uma justificativa que não se encontra nos presentes autos.”

Ainda segundo a compreensão do desembargador, a designação de outro promotor “não foi devidamente formalizada, tendo sido feita ao arrepio de comezinhas regras processuais”, porque “apenas com as contrarrazões aparece a Portaria nº 0560/2010, firmada pelo Dr. Luiz Carlos Ziomkowski, Subprocurador-Geral para Assuntos Institucionais, e juntada a fl. 625, designando aquele Promotor de Justiça para atuar no julgamento.”

A referida portaria, asseverou o relator, “está datada do mesmo dia do júri – 13 de abril de 2010 – o que demonstra que não corresponde à realidade, eis que seria até mesmo impossível ao Promotor designado chegar à Comarca de Encruzilhada do Sul a tempo de participar do julgamento, eis que o júri se iniciou às 9,00 horas da manhã.”

O acórdão também traz adjetivos ao membro do MP que atuou perante o júri: “induvidoso que a designação de um Promotor de Justiça como o Dr Eugênio Paes Amorim – sabidamente preparado, experiente, combativo, um dos mais conhecidos tribunos do júri de nosso Estado – para atuar em julgamento de repercussão na pequena Comarca de Encruzilhada do Sul, com o afastamento da titular da Promotoria, constitui exatamente a nomeação de um ‘acusador de exceção’, o que fere o Princípio do Promotor Natural.”

Por isso, o magistrado decidiu por decretar a nulidade do julgamento.

E, por estar o réu preso há quase onze meses e pronunciado há cerca de sete, reconheceu – “ex officio” – o excesso de prazo na formação da culpa, o que resultou no provimento do recurso e na concessão de habeas corpus, para imediata soltura do acusado.

De outra banda, o desembargador Marcel Esquivel Hoppe divergiu do relator, por entender não haver motivos para desacreditar a justificativa da promotora de Justiça titular para o seu impedimento e por ser o MP uma instituição permanente, regida pelos princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional: “Em caso de impossibilidade de atuação de um dos membros, não haverá qualquer violação ao devido processo legal se realizada a substituição dentro das normas pré-estabelecidas para tanto.”

O desembargador Hoppe compreendeu que “tendo sido o substituto regularmente designado, segundo informação das mais altas autoridades da Instituição, não há que se falar em nulidade do julgamento ou na figura do ‘promotor de exceção’”.

Por isso, também votou contra a concessão de habeas corpus de ofício, “considerando para tanto, a gravidade em concreto dos delitos, quais sejam, dois homicídios duplamente qualificados, sendo uma das vítimas infante de 12 anos de idade” e porque não houve excesso de prazo imputável ao Poder Judiciário.

O terceiro desembargador a votar – Marco Antônio Ribeiro de Oliveira – acompanhou o relator, confirmando o provimento da apelação do réu e a concessão do habeas corpus.

Ainda pende de julgamento recurso extraordinário.

Atua em nome do réu o advogado Zeno Fernando Struk. (Proc. n. 70036609659).
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“Não está minimamente justificada a atuação de um promotor de justiça estranho à Comarca e ao feito, apenas em plenário de julgamento.”

ÍNTEGRA DO ACÓRDÃO (09.11.10)
JÚRI. DUPLO HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. ATUAÇÃO EM PLENÁRIO DE JULGAMENTO DE PROMOTOR DE JUSTIÇA ESTRANHO À COMARCA E AO FEITO. FERIMENTO AO PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. NULIDADE RECONHECIDA.
Embora não previsto expressamente em lei, o Princípio do Promotor Natural decorre de dispositivos constitucionais e é admitido na doutrina e na jurisprudência, ainda que comportando alguma relativização.
No caso, a atuação em plenário de julgamento de um Promotor de Justiça estranho à Comarca e ao feito, sem regular designação e estando a titular da Promotoria em pleno exercício de suas funções, constitui ferimento ao referido princípio e acarreta a nulidade do julgamento.
De outra banda, estando o réu preso há quase onze meses e pronunciado há cerca de sete meses, está caracterizado o excesso de prazo na formação da culpa, impondo-se a concessão de habeas corpus de ofício.
Apelo provido, por maioria.
Habeas corpus concedido de ofício, por maioria.


APELAÇÃO CRIME – PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL
Nº 70036609659 – COMARCA DE ENCRUZILHADA DO SUL
MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS – APELANTE
MINISTERIO PUBLICO – APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar provimento ao apelo, com base no art. 593, III, ‘a’, do CPP, para declarar a nulidade do julgamento, e conceder habeas corpus de ofício ao apelante, determinando sua imediata soltura, se por al não estiver preso, vencido o Des. Marcel Esquivel Hoppe, que afastava a nulidade.
.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA (PRESIDENTE) E DES. MARCEL ESQUIVEL HOPPE.
Porto Alegre, 22 de setembro de 2010.


DES. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS,
Relator.

RELATÓRIO
DES. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS (RELATOR)
Na Comarca de Encruzilhada do Sul, MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS foi denunciado como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, incisos III e IV, e art. 121, § 2º, incisos III e IV, § 4º, in fine, todos do CP.
A peça acusatória, recebida em 11 de novembro de 2009 (fl. 294), é do seguinte teor:
“1º FATO”
“No dia 17 de outubro de 2009, por volta das 19h, na localidade Passo da Rita, município de Encruzilhada do Sul, o denunciado MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS, de emboscada, mediante disparo de arma de fogo e com o emprego de fogo, matou a vítima ADERCI LACERDA MOURA, conforme certidão de óbito à fl. 90”.
“Na ocasião o denunciado, patrão da vítima realizou uma emboscada para a mesma, pedindo a ela que o levasse até a localidade de Passo da Rita, interior deste município, alegando que queria buscar um trator. A vítima, que naquele momento, deslocava-se para jogar futebol com seu filho Anderson Santos Moura, atendeu ao pedido do patrão”.
“A vítima, seu filho e o denunciado, então, dirigiram-se ao Passo da Rita, no automóvel que aquela havia adquirido deste poucos dias antes do fato. Entretanto, em determinado ponto do trajeto, o denunciado, utilizando-se de uma arma de fogo que levava consigo para a consumação do crime, efetuou disparo contra a vítima, deixando-a dentro do carro e ateando fogo no interior do veículo, carbonizando o corpo da mesma, causando-lhe a morte”.
“Ressalte-se que o crime ocorreu de emboscada, eis que o denunciado, premeditando-o, após adquirir uma arma de fogo e 20 litros de gasolina, convenceu a vítima a levá-lo em seu veículo até o interior deste município, para então consumar o delito”.
“2º FATO”
“No dia 17 de outubro de 2009, por volta das 19h, na localidade Passo da Rita, município de Encruzilhada do Sul, o denunciado MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS, de emboscada, mediante disparo de arma de fogo e com o emprego de fogo, matou a vítima ANDERSON SANTOS DE MOURA, de 12 anos de idade, conforme certidão de óbito à fl. 91”.
“Na ocasião o denunciado, com a finalidade de armar uma emboscada, convenceu o pai da vítima Aderci Lacerda de Moura, se empregado, a levá-lo até a localidade de Passo da Rita, interior deste município, alegando que queria buscar um trator. A vítima, que naquele momento, deslocava-se para jogar futebol com seu pai, acabou acompanhando-os até a referida localidade”.
“A vítima, seu pai e o denunciado, então, dirigiram-se ao Passo da Rita. Entretanto, em determinado ponto do trajeto, o denunciado, utilizando-se de uma arma de fogo que levava consigo para a consumação do crime, efetuou disparo contra a vítima , deixando-a dentro do carro e ateando fogo no interior do veículo, carbonizando o corpo da mesma, causando-lhe a morte”.
“Ressalte-se que o crime ocorreu de emboscada, eis que o denunciado, premeditando-o, após adquirir uma arma de fogo e 20 litros de gasolina, convenceu o pai da vítima a levá-lo em seu veículo até o interior deste município, sendo que Anderson o acompanhava”.
“Saliente-se, ainda, que Anderson Santos Moura contava com apenas 12 anos de idade à época do fato”.
Encerrada a instrução, sobreveio sentença, prolatada em 23 de fevereiro de 2010, pronunciando MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS, como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, incisos III e IV, e art. 121, § 2º, incisos III e IV, e § 4º, in fine, todos do CP.
Foi designada a sessão de julgamento.
Em julgamento, o juiz presidente do Tribunal do Júri, em conformidade com a decisão do conselho de sentença, declarou condenado MARCOS ADILON CUNHA DE FREITAS como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, incisos III e IV, e art. 121, § 2º, incisos III e IV, e § 4º, in fine, todos do CP, à pena de 32 (trinta e dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão, a ser cumprida em regime inicial fechado.
Irresignada, apelou a defesa (fls. 603/609), sustentando a ocorrência de nulidade posterior a decisão de pronúncia por quebra do princípio do promotor natural e utilização em plenário de fotos e documentos sem que houvesse obedecido o prazo do art. 479 do CPP; refere injustiça no tocante à aplicação da pena e que a decisão prolatada pelo conselho de sentença foi contrária a prova dos autos. Requer seja dado provimento ao apelo com o fim de serem acolhidas as preliminares suscitadas, anulando o julgamento ou, subsidiariamente, requer seja declarado o veredicto contrário à prova dos autos, anulando a decisão do conselho de sentença ou ainda, alternativamente, na hipótese de manutenção da condenação, requer seja redimensionada a pena aplicada.
Em contrarrazões (fls. 619/624), o Ministério Público manifestou-se pela manutenção da decisão hostilizada.
Vieram os autos a este Tribunal.
Nesta instância, o parecer do Dr. Procurador de Justiça Sérgio Guimarães Britto é pelo improvimento do apelo defensivo.
É o relatório.
VOTOS
DES. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS (RELATOR)
Tendo em vista que o presente apelo é fulcrado nas alíneas ‘a’, ‘c’ e ‘d’ do art. 593, III, do estatuto processual penal, inicio o exame da inconformidade pela primeira nulidade apontada nas razões recursais, que, embora não o diga expressamente, aponta o ferimento do Princípio do Promotor Natural, diante da atuação em plenário de julgamento de Promotor de Justiça que oficia perante uma das Varas do Júri da Comarca da Capital, ainda que a Promotora de Justiça da Comarca de Encruzilhada do Sul estivesse em pleno exercício da função.
Defende-se o órgão ministerial, tanto nas contrarrazões apelatórias como no parecer oferecido neste grau de jurisdição, com a invocação do art. 127, § 1º, da Constituição Federal, que arrola os princípios institucionais do Ministério Público, quais sejam, “a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.
Para bem enfrentar a quaestio juris, convém, antes de examinar o ocorrido no presente feito, passar os olhos sobre o que dizem doutrina e jurisprudência acerca do referido Princípio do Promotor Natural.
Júlio Fabbrini Mirabete, em sua conhecida obra, preleciona o seguinte:
“Tem-se desenvolvido, porém, a idéia do promotor natural, ou seja, de que, tendo os membros do parquet cargos específicos, estariam proibidas as simples e discricionárias designações do Procurador-Geral de Justiça. (Cf. CAMARGO PENTEADO, Jacques de. O princípio do promotor natural (…); LOURDES, Ana Beatriz, Princípio do Promotor Natural (…), SILVA JARDIM, Afrânio. Em torno do devido processo legal (…); SILVA, João Estevam da, Do promotor de justiça natural (…) A tese já tem sido acatada pelos tribunais superiores.” (Código de Processo Penal Interpretado, Ed. Atlas, 5ª edição).
Mais esclarecedora é a lição de Marcelo Novelino, que, ao depois, aponta a controvérsia que envolve a questão, inclusive no Pretório Excelso:
“Ao lado dos princípios institucionais expressamente contemplados no texto constitucional, parte da doutrina sustenta que a Constituição teria consagrado também o princípio do promotor natural. Nessa concepção, assim como ocorre com os magistrados, a intervenção dos membros do Ministério Público também deveria ser predeterminada, a partir de critérios abstratos estabelecidos por lei, anteriormente à ocorrência do fato.
Argumenta-se que a garantia constitucional de que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (CF, art. 5º, LIII) deveria ser interpretada no sentido de compreender não apenas a autoridade judicial, mas também os membros do Parquet. Os fundamentos constitucionais nos quais este princípio se apoia seiam as cláusulas da independência funcional (CF, art. 127, § 1º) e da inamovibilidade (CF, art. 128, § 5º, I, b).” (Direito Constitucional, Ed. Método, 4ª edição).
Mais incisivo a respeito do tema é Norberto Avena, cujo posicionamento assume especial relevância por se tratar de ilustre membro do Ministério Público do Rio Grande do Sul:
“O princípio do Promotor Natural possui, igualmente, seu fundamento no art. 5º, LIII, da Constituição Federal, estabelecendo que ninguém será processado nem sentenciado pela autoridade competente. Trata-se, hoje, de princípio aceito pela maioria absoluta da doutrina e da jurisprudência pátria.
A principal decorrência desse princípio é a vedação da designação, pelo Procurador-Geral, de promotor de justiça ou procurador da república para atuar em caso específico, abstraindo as regras gerais de atribuições estabelecidas anteriormente à prática da infração penal. Nada impede, efetivamente, a designação para exercício de atribuições genéricas, que podem abranger, abstratamente, mais de uma hipótese concreta.” (Processo Penal, Ed. Método).
No âmbito jurisprudencial, são hoje copiosos os precedentes, especialmente nos tribunais superiores, alguns relativizando bastante o mencionado princípio, outros mais rigorosos em sua observância. Traga à colação, apenas exemplificativamente, o seguinte aresto do Supremo Tribunal Federal, da lavra do Ministro Celso de Mello:
“O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação da designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu ofício, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta-se nas cláusulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável.” (HC 67.759/RJ).
Postas essas premissas, pode-se concluir que, embora a matéria não esteja inteiramente despida de controvérsias, a tendência atual é a de admitir-se a vigência do Princípio do Promotor Natural, com apoio em dispositivos constitucionais, não obstante os princípios da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público, também consagrados na Carta Magna.
Em outras palavras, tolera-se a designação de Promotor de Justiça para atuar em caso específico, desde que a designação esteja justificada, seja devidamente formalizada e não constitua, de forma alguma, a imposição de acusador de exceção.
Pois bem. Examinando agora os presentes autos, adianto que a atuação do Promotor de Justiça perante o Tribunal do Júri da Comarca de Encruzilhada do Sul, no feito sub judice, está eivada de graves irregularidades, que impõe a nulificação daquele ato, como pretende a douta defesa do apelante.
É de observar-se, de início, que o julgamento se realizou, consoante prévia designação, no dia 13 de abril do corrente ano, sendo que a Promotora de Justiça da Comarca, Dra. Brenusa Marcquardt Corleta, se encontrava em pleno exercício da função, como demonstra a promoção de fl. 557, datada do dia 12 de abril, ou seja, da véspera do júri, em que ela manifesta a desistência da inquirição de uma testemunha de plenário não localizada, bem como o termo de audiência juntado pela defesa a fl. 616, que comprova a participação da mesma Promotora de Justiça em ato realizado no dia seguinte ao do julgamento questionado.
É verdade que, com as contrarrazões apelatórias, veio aos autos a informação de fl. 626, dando conta de que a Promotora de Justiça teria enviado à Procuradoria-Geral “documento cientificando acerca de sua impossibilidade de atuar no Plenário do Tribunal do Júri em razão de encontrar-se no final da gestação”.
Ocorre que tal informação está datada de 14 de maio p.p., ou seja, de um mês depois da realização do júri, não havendo nos autos, até aquele momento, qualquer explicação para o afastamento da titular da Promotoria.
Aliás, é estranho que a agente ministerial, em razão de seu adiantado estado gestacional, não tivesse condições de atuar em plenário, mas continuasse exercendo suas funções regularmente, o que demandaria uma justificativa que não se encontra nos presentes autos.
Feitas essas breves considerações, tenho que não está minimamente justificada a atuação de um Promotor de Justiça estranho à Comarca e ao feito, apenas em plenário de julgamento.
Por outro lado, verifico também que a referida designação não foi devidamente formalizada, tendo sido feita ao arrepio de comezinhas regras processuais.
Com efeito, no dia do julgamento pelo Tribunal do Júri e logo depois da mencionada promoção da agente ministerial, surge a figura do Dr. Eugênio Paes Amorim, que, como está demonstrado nos autos e é de conhecimento público e notório, atua numa das Varas do Júri da Comarca da Capital, sem qualquer designação, pelo menos carreada aos autos.
Apenas com as contrarrazões aparece a Portaria nº 0560/2010, firmada pelo Dr. Luiz Carlos Ziomkowski, Subprocurador-Geral para Assuntos Institucionais, e juntada a fl. 625, designando aquele Promotor de Justiça para atuar no julgamento.
Ocorre que a referida Portaria, além de não ter vindo aos autos no momento oportuno, está datada do mesmo dia do júri – 13 de abril de 2010 – o que demonstra que não corresponde à realidade, eis que seria até mesmo impossível ao Promotor designado chegar à Comarca de Encruzilhada do Sul a tempo de participar do julgamento, eis que o júri se iniciou às 9,00 horas da manhã.
Portanto, também por esse motivo, ou seja, a falta de regular formalização da designação do Promotor de Justiça, penso que não se pode dar validade ao julgamento em questão.
Por fim, considero induvidoso que a designação de um Promotor de Justiça como o Dr Eugênio Paes Amorim – sabidamente preparado, experiente, combativo, um dos mais conhecidos tribunos do júri de nosso Estado – para atuar em julgamento de repercussão na pequena Comarca de Encruzilhada do Sul, com o afastamento da titular da Promotoria, constitui exatamente a nomeação de um “acusador de exceção”, o que fere o Princípio do Promotor Natural, de acordo com os conceitos dos doutrinadores acima transcritos.
Em suma, é impositiva a declaração de nulidade do julgamento em tela, como pretende a douta defesa, restando prejudicado o exame da outra causa de nulidade e das demais alegações, fulcradas nas alíneas ‘c’ e ‘d’ do art. 593, III, do Código de Processo Penal.
De outra banda, verifico que o réu, ora apelante, se encontra preso desde o dia 26 de outubro do ano transacto, ou seja, há quase onze meses em data de hoje, sendo que foi pronunciado no dia 23 de fevereiro do corrente ano, portanto há cerca de sete meses. Com a anulação do julgamento pelo Tribunal do Júri, é forçoso reconhecer o excesso de prazo na formação da culpa, o que deve ser declarado nesta instância, ainda que não tenha sido objeto de pedido apelatório.
Em face do exposto, DOU PROVIMENTO ao apelo, com base no art. 593, III, ‘a’, do CPP, para declarar a nulidade do julgamento, e CONCEDO habeas corpus de ofício ao apelante, determinando sua imediata soltura, se por al não estiver preso.
É o voto.


DES. MARCEL ESQUIVEL HOPPE (REVISOR)
Ouso divergir do Eminente Relator, para afastar a alegação de nulidade com fulcro no art. 593, inciso III, alínea ‘a, do CPP.
Entendo que não há motivos para desacreditar a justificativa dada pela Promotora de Justiça titular da Comarca para seu impedimento, e pela mesma razão, não vislumbro qualquer nulidade na nomeação do Dr. Eugênio Paes de Amorim pelo Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Institucionais, autoridade competente para tanto, o que possibilitou que o ato pudesse ser realizado na data aprazada, sem maiores dilações no feito.
É cediço que o Ministério Público é instituição permanente, que rege-se pelos princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e da independência funcional, conforme disposto na Constituição da República. Em caso de impossibilidade de atuação de um dos membros, não haverá qualquer violação ao devido processo legal se realizada a substituição dentro das normas pré-estabelecidas para tanto.
No presente caso, como já referido, o ato foi praticado pela autoridade competente, devidamente formalizado em Portaria, anexada à fl. 625 dos autos. Há também informação oriunda da Subcorregedoria-Geral de Justiça daquela Instituição, na qual consta que a Dra. Brenusa Marquardt Corleta, titular da Comarca, foi substituída em razão de sua impossibilidade de atuar em Plenário por estar no final da gestação (fl. 626).
Dessa forma, tendo sido o substituto regularmente designado, segundo informação das mais altas autoridades da Instituição, não há que se falar em nulidade do julgamento ou na figura do “promotor de exceção”.
Ainda que assim não fosse, o princípio do Promotor Natural é instituto que desperta fortes divergências doutrinárias e jurisprudenciais, havendo sérias dúvidas quanto à sua aplicabilidade. A matéria também não é pacífica nos Tribunais Superiores. Nesse sentido, colaciono Precedente recente do egrégio Supremo Tribunal Federal, no qual afirmou-se que tal postulado não é aplicável ao ordenamento jurídico brasileiro:

“DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DO PROMOTOR NATURAL. INEXISTÊNCIA (PRECEDENTES). AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA NO STJ. INQUÉRITO JUDICIAL DO TRF. DENEGAÇÃO. 1. Trata-se de habeas corpus impetrado contra julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que recebeu denúncia contra o paciente como incurso nas sanções do art. 333, do Código Penal. 2. Tese de nulidade do procedimento que tramitou perante o TRF da 3ª Região sob o fundamento da violação do princípio do promotor natural, o que representaria. 3. O STF não reconhece o postulado do promotor natural como inerente ao direito brasileiro (HC 67.759, Pleno, DJ 01.07.1993): “Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO: Divergência, apenas, quanto à aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade de “interpositio legislatoris” para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). – Reconhecimento da possibilidade de instituição de princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SIDNEY SANCHES). – Posição de expressa rejeição à existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES”. 4. Tal orientação foi mais recentemente confirmada no HC n° 84.468/ES (rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ 20.02.2006). Não há que se cogitar da existência do princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro. 5. Ainda que não fosse por tal fundamento, todo procedimento, desde a sua origem até a instauração da ação penal perante o Superior Tribunal de Justiça, ocorreu de forma transparente e com integral observância dos critérios previamente impostos de distribuição de processos na Procuradoria Regional da República da 3ª Região, não havendo qualquer tipo de manipulação ou burla na distribuição processual de modo a que se conduzisse, propositadamente, a este ou àquele membro do Ministério Público o feito em questão, em flagrante e inaceitável desrespeito ao princípio do devido processo legal 6. Deixou-se de adotar o critério numérico (referente ao finais dos algarismos lançados segundo a ordem de entrada dos feitos na Procuradoria Regional) para se considerar a ordem de entrada das representações junto ao Núcleo do Órgão Especial (NOE) em correspondência à ordem de ingresso dos Procuradores no referido Núcleo. 7. Na estreita via do habeas corpus, os impetrantes não conseguiram demonstrar a existência de qualquer vício ou mácula na atribuição do procedimento inquisitorial que tramitou perante o TRF da 3ª Região às Procuradoras Regionais da República. 8. Não houve, portanto, designação casuística, ou criação de “acusador de exceção”. 9. Habeas corpus denegado.”[1]

Daí por que estou votando no sentido de afastar a alegação de nulidade suscitada pela defesa.
Por essa razão, também estou votando contra a concessão de habeas corpus de ofício, considerando para tanto, a gravidade em concreto dos delitos, quais sejam, dois homicídios duplamente qualificados, sendo uma das vítimas infante de 12 anos de idade.
Mesmo em se tratando de feito complexo, a instrução correu de maneira célere, não havendo excesso de prazo imputável ao Poder Judiciário, considerando que o réu já foi inclusive submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri. O fato é de 17 de outubro de 2009, o réu foi pronunciado em 23 de fevereiro do corrente ano, e o júri realizou-se no último dia 13 de abril de 2010.
Dessa forma, entendo que, ainda que seja decretada a nulidade do julgamento por esta Primeira Câmara, não seria prudente revogar a prisão preventiva do acusado, a qual é necessária para a garantia da ordem pública, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, consoante entendeu esta Primeira Câmara Criminal no julgamento dos habeas corpus n.º 70033096751 e 70034025643.


DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA (PRESIDENTE) – De acordo com o(a) Relator(a).

DES. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA – Presidente – Apelação Crime nº 70036609659, Comarca de Encruzilhada do Sul: “POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO APELO, COM BASE NO ART. 593, III, A , DO CPP, PARA DECLARAR A NULIDADE DO JULGAMENTO, E CONCEDERAM HABEAS CORPUS DE OFÍCIO AO APELANTE, DETERMINANDO SUA IMEDIATA SOLTURA, SE POR AL NÃO ESTIVER PRESO. VENCIDO O DES MARCEL ESQUIVEL HOPPE, QUE AFASTAVA A NULIDADE.”


Julgador(a) de 1º Grau: FERNANDA PESSOA CERVEIRA TONIOLO

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