Mandado de Segurança contra quebra de sigilo bancário. Lei Complementar nº 105/2001 Revisado em 30/10/2019

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO JUDICIARIA ____

___________________________, brasileiro, casado, empresário, residente e domiciliado na Rua ______________________________, inscrito no CPF/MF nº _______________, por seu advogado infra firmado, constituído mediante procuração anexa (doc. 01), com escritório na Av. ACM, 2487, Ed. Fernandez Plaza, Sala 1413, Cidadela, Salvador – BA, onde receberá todas as intimações e notificações, vem à presença de V. Exa., tempestivamente, com base no art. 5º, caput e incisos X, XII, XXXV, XXXVI, LVI e LXIX; art. 145, § 1º; art. 150, I e III, “a”, da Constituição Federal; e Lei nº 12.016/09, requerer a concessão de MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO (COM PEDIDO DE LIMINAR) contra ato do SUPERINTENDENTE DA RECEITA FEDERAL NA 5ª RF, com fundamento nas razões de fato e de direito a seguir articuladamente deduzidas:

“Muitas das pessoas que hoje atribuem pouca importância à separação dos Poderes, não percebem que iniciam o caminho para a ditadura”
(FREDERICH, apud Mário Guimarães. O juiz e a função jurisdicional, p. 49)

“Tira a justiça, e o que são os Estados senão quadrilhas de assaltantes em grande escala”
(Santo Agostinho, A cidade de Deus, p. 44)

I. ESCLARECIMENTOS NECESSÁRIOS

01.01. Em 30.03.2001 o correio entregou na residência do ora impetrante o Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) – Fiscalização nº _________________ (doc. anexo), e por ordem da autoridade impetrada na forma do art. 2º, §5º, I, do Dec. nº 3.724/2001 – Superintendente da Receita Federal na 5ª RF – a Receita Federal pretende ter amplo acesso aos dados da movimentação financeira do impetrado ocorrida no ano-calendário de 1998 (exercício 1999) de conta bancária mantida junto ao Banco _________ S/A, sob a alegação de que em tal período houvesse realizado a movimentação financeira de R$ ___________ na referida conta bancária, ressaltando que esse valor fora obtido com base nas informações da CPMF, por força do “art. 11, §2º, da Lei 9.311, de 24 de outubro de 1996”.

Consoante informações contidas no texto do referido MPF (Mandado de Procedimento Fiscal) a autoridade impetrada esclarece que implementou tal espécie de procedimento fiscalizatório para constituir crédito decorrente de “IRPF” (Imposto de Renda de Pessoa Física) do período de apuração “1998”.

Por este turno, a autoridade impetrada confessa e admite expressamente que o MPF fora motivado e instaurado em razão da utilização por parte da Secretaria da Receita Federal das informações dos valores de movimentação financeira prestadas pelos bancos para identificação dos contribuintes da CPMF, nos termos do “art. 11, §2º, da Lei nº 9.311/96.”

Com efeito, de posse destas informações dos valores de movimentação financeira para efeito de identificação dos contribuintes da CPMF (art. 11, §2º, da Lei nº 9.311/96), a autoridade impetrada as utilizou no presente MPF para instaurar tal procedimento e pretender constituir crédito tributário do IRPF do ano-calendário de 1998 (exercício de 1999).

Entretanto, é importante ressaltar que tal conduta de utilização dessas informações sigilosas era expressamente vedada pela norma contida no art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96, que esteve em vigor até 09/01/2001 quando foi modificada pela Lei nº 10.174.

Inobstante isto, a autoridade impetrada no MPF em exame utilizando tais informações passou a solicitar que o impetrante apresentasse, no prazo de 20 dias, “os extratos bancários relativos às contas bancárias que deram origem à movimentação financeira;” no período de apuração de 1998.

Todavia, a impetrante não cumpriu tal solicitação de apresentação de extratos bancários de movimentação financeira do exercício de 1999, em razão de: i) entender que o procedimento fiscalizatório fora instaurado irregularmente desde sua origem, na medida que teve por base para sua instauração a utilização de informações da CPMF do exercício 1999 objetivando constituição de crédito do IRPF, quando lhe era vedado tal conduta pelo art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 por considerar tal utilização quebra de sigilo não autorizado; ii) o art. 1º da Lei nº 10.174/2001 que deu nova redação ao art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96, passou a permitir à Receita Federal utilizar as informações da CPMF para instaurar ou dar origem ao MPF apenas dos atos ou fatos ocorridos a partir da sua entrada em vigor (09/01/2001), pois consoante o princípio da irretroatividade das leis, a Lei nº 10.174 não poderia retroagir para interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado; iii) em qualquer procedimento está resguardado o direito constitucional da não auto incriminação (CF, art. 5º, LXIII); iv) a expressão ‘sigilo de dados’ hospeda a espécie ‘sigilo bancário’ cuja preservação e privacidade está expressamente assegurada pela Constituição Federal de 1988 no art. 5º, X e XII, razão pela qual o impetrante não se sentia obrigado em entregar extratos bancários que revelem sua privacidade.

Malgrado isto, tendo em vista a negativa em cumprir tal solicitação com base nas razões acima expostas, mais recentemente, no dia 11/05/01 a autoridade impetrada “reintimou” o ora impetrante para em “10 (dez) dias” cumprir a solicitação anterior (doc. anexo).

Todavia, mais uma vez com base nas razões supra o ora impetrante entendia que não estava obrigado a atender tal solicitação de apresentação de extratos bancários de movimentação financeira, mas tendo em vista que a aludida “reintimação” cumpria na verdade mais uma vez o papel de “intimação ao sujeito passivo para apresentação de informações sobre movimentação financeira, necessárias à execução do MPF” (art. 4º, §2º, do Decreto nº 3.724/2001) que deve preceder toda a quebra de sigilo bancário promovido diretamente pela administração, tornando evidente no caso em exame a presença da ameaça e o justo receio que a autoridade impetrada (art. 4º, do Decreto nº 3.724/2001) em atividade vinculada promova diretamente sem a intervenção da autoridade judiciária a quebra do sigilo bancário do impetrante.

Em verdade, a ameaça e o justo receio de que a autoridade impetrada promova diretamente sem a intervenção da autoridade judiciária a quebra do sigilo bancário do impetrante, também decorre da sua própria atividade vinculada, e do dever de ofício de fazer cumprir o quanto estabelecido no art. 1º, §3º e art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 c/c arts. 1º; 2º; 4º, §1º, III e IV, §2º; art. 5º, I, “a” e “b”, II, “a”, “b” e “c” do Decreto nº 3.724/2001, para promover administrativamente a quebra do sigilo bancário do impetrante sem a intervenção da autoridade judiciária mediante uma simples Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) dirigida diretamente ao presidente da instituição financeira, preposto ou gerente da agência.

01.02. Desta forma, como a autoridade impetrada já realizou o ato preparatório e antecedente que trata o art. 4º, §2º, do Decreto nº 3.724/2001, fica claro que está na iminência de promover administrativamente a quebra do sigilo bancário do impetrante sem a intervenção da autoridade judiciária, mediante a denominada Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) recentemente inserida no ordenamento jurídico através do art. 1º, §3º e art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 c/c art. 4º, §1º, do Decreto nº 3.724/2001.

01.03. Portanto, como no caso em exame estão presentes os requisitos do fumus boni iuris, periculum in mora, e a ameaça e o justo receio, requer a concessão de liminar e a sua posterior consolidação através da concessão da segurança.

No particular, como o procedimento de fiscalização (MPF) foi irregularmente instaurado por ter como origem a utilização de informações da CPMF do exercício de 1999 quando lhe era vedado pelo art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96, e tendo em vista que MPF irregularmente instaurado e em abuso de poder não pode determinar a quebra de sigilo bancário administrativamente, razão pela qual iniciados os atos preparatórios acima apontados o impetrante tem fundado receio que a autoridade impetrada por dever de ofício promova a quebra do seu sigilo bancário administrativamente e por isso requer concessão de liminar para determinar que a autoridade impetrada ou quem lhe faça as vezes se abstenha de executar qualquer providência para efetivar o Mandado de Procedimento Fiscal nº ___________________, inclusive as que tenham por escopo obter junto ao Banco __________ os extratos bancários e valores individualizados de débito e crédito efetuados no exercício de 1999.

Ou em ordem sucessiva, como a quebra do sigilo bancário administrativamente sem qualquer intervenção da autoridade judiciária é totalmente inconstitucional e como já foram iniciados os atos preparatórios acima apontados o impetrante tem o fundado receio da autoridade impetrada por dever de ofício venha promover tal quebra de sigilo bancário em ofensa ao princípio da reserva de jurisdição entre outros, razão pela qual requer concessão de liminar para determinar que a autoridade impetrada ou quem lhe faça as vezes se abstenha de requisitar, promover ou executar a Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) que trata o art. 4º, §1º do Dec. 3.724/2001 ou outras medidas que tenham por finalidade a quebra de sigilo bancário administrativamente, inclusive as que tenham por escopo obter junto ao Banco __________ os extratos bancários e valores individualizados de débito e crédito efetuados no exercício de 1999.

II. DA TEMPESTIVIDADE

02.01. No particular, tendo em vista que o direito de requerer o mandado de segurança extinguir-se-á decorridos cento e vinte dias contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado, nos termos do prazo de caducidade mencionado no art. 23, da Lei nº 12.016/09.

No particular, HUGO DE BRITO MACHADO, ao discorrer sobre o tema ensinar que:

“Poder-se-ia entender que o mandado de segurança preventivo impugna uma ameaça e, portanto, a partir do conhecimento dessa ameaça tem início o prazo em tela. Esse entendimento, porém, não tem consistência. O mandado de segurança diz preventivo porque tem de prevenir, ou evitar, a prática do ato lesivo. Nele não existe ato impugnado, precisamente porque com ele não se impugna ato nenhum. O prazo para impetração do mandado de segurança começa do dia em que o interessado toma conhecimento do ato lesivo de seu direito. Assim, se ainda não ocorreu tal ato, não se pode cogitar de decadência. Em se tratando, pois, de mandado de segurança preventivo, não há lugar para a decadência.” 1

Desta forma, como o impetrante tomou conhecimento da ameaça em __________, tem-se que ainda não foi ultrapassado o prazo estipulado, razão pela qual o mandado de segurança ora impetrado é tempestivo.

III. MPF Nº ____________________ INSTAURADO COM BASE NAS INFORMAÇÕES DA CPMF DO EXERCÍCIO 1999 OBJETIVANDO CONSTITUIÇÃO DE CRÉDITO DO IRPF. ART. 11, §3º, DA LEI Nº 9.311/96 QUE IMPEDIA A UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES PARA ESTA FINALIDADE. PROCEDIMENTO FISCALIZATÓRIO IRREGULARMENTE INSTAURADO NÃO PODE DETERMINAR QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO. ART. 1º DA LEI Nº 10.174/2001 QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO DISPOSITIVO PERMITINDO A SUA UTILIZAÇÃO PARA INSTAURAR MPF NÃO PODE RETROAGIR. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS. PRECEDENTES DO STF

03.01. A questão sub judice diz respeito a ameaça e o justo receio que tem o impetrante de ter seu sigilo bancário quebrado por determinação da autoridade impetrada no curso de procedimento fiscalizatório (MPF) irregularmente instaurado, porque originado da utilização das informações da CPMF, as quais eram vedadas pelo art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 para instaurar tal procedimento.

________________________
1. Mandado de Segurança em Matéria Tributária, 3ª ed, Dialética, p. 227.

Em verdade, por ordem da autoridade impetrada foi determinada a execução do Mandado de Procedimento Fiscal (MPF) nº ___________________, para constituir crédito decorrente de “IRPF” (Imposto de Renda de Pessoa Física) do período de apuração “1998”.

Por este turno, no doc. anexo a autoridade impetrada já confessa e admite expressamente que o MPF fora motivado e instaurado em razão da utilização por parte da Secretaria da Receita Federal das informações dos valores de movimentação financeira prestadas pelos bancos para identificação dos contribuintes da CPMF, nos termos do “art. 11, §2º, da Lei nº 9.311/96.”

No particular, o art. 11, §2º, da Lei nº 9.311/96 está vazado nos seguintes termos:

“Art. 11. Compete à Secretaria da Receita Federal a administração da contribuição, incluídas as atividades de tributação, fiscalização e arrecadação.

§2º As instituições responsáveis pela retenção e pelo recolhimento da contribuição prestarão à Secretaria da Receita Federal as informações necessárias à identificação dos contribuintes e os valores globais das respectivas operações, nos termos, nas condições e nos prazos que vierem a ser estabelecidos pelo Ministério do Estado da Fazenda.”

Com efeito, de posse destas informações que consistem nos valores de movimentação financeira para efeito de identificação dos contribuintes da CPMF (art. 11, §2º, da Lei nº 9.311/96), a autoridade impetrada as utilizou para instaurar o presente MPF, que segundo ele mesmo explicita no doc. anexo, tem por objetivo claro constituir crédito tributário do “IRPF” do ano-calendário de 1998 (exercício de 1999).

03.02. Entretanto, é importante ressaltar que a Lei nº 9.311/96 apenas autorizava a utilização dessas informações acobertadas pelo sigilo bancário por parte da Secretaria da Receita Federal para que promovesse a fiscalização e arrecadação da CPMF, e por outro lado vedava explicitamente a sua utilização sob qualquer pretexto nos procedimentos tendentes a constituir crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos que não fosse a própria CPMF, nos termos do art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96, como se observa:

“Art. 11.

§3º A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos.” (grifamos)

Logo, a inteligência do dispositivo normativo contido no art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 evidencia a toda prova que o legislador erigiu um enunciado especialmente dirigido às autoridades administrativas da Secretaria da Receita Federal para que resguardassem “o sigilo das informações prestadas” a ela pelos bancos para que pudesse levar a cabo a fiscalização e arrecadação da CPMF.

Ademais, não estando completamente satisfeito com tal enunciado de caráter genérico e diante da tentação que tais dados poderiam suscitar no espírito das autoridades administrativas, o próprio legislador explicitou na parte final do referido dispositivo uma expressa proibitiva a que estariam submetidas as autoridades administrativas, no sentido de impedir a utilização dessas informações da CPMF em quaisquer procedimentos que tivessem por escopo a “constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”.

Por esta perspectiva, conclui-se facilmente que o art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 torna ilegal e irregular o MPF (Mandado de Procedimento Fiscal) instaurado com base nas informações dos valores globais prestados em razão da CPMF, como no caso sub judice, porque: i) existe clara admoestação para que a Receita Federal resguarde o sigilo das informações que lhe foram prestadas em razão da CPMF, e se guardar sigilo implica em não revelar algo, por obvio que não estaria guardando sigilo também quem pretendesse utilizar a informação contra o próprio contribuinte; ii) existe claro enunciado proibitivo endereçado à Secretaria da Receita Federal (SRF) vedando a utilização das informações que lhe foram prestadas em razão da CPMF em quaisquer procedimentos que tivessem por escopo a “constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”.

03.03. Ademais disto, como a autoridade impetrada (administrador) desrespeitou essa vedação expressa fixada pelo legislador no art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 no caso em exame, então, agiu sem a respectiva competência fixada pelo legislador e por isso em claro abuso de poder, pois segundo ensina CAIO TÁCITO, “o abuso de poder ocorre também quando o administrador age sem competência, ou além da sua competência, invadindo atribuições que não suas”, pois “Não há, em direito administrativo, competência geral ou universal: a lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício das atribuições do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode. A competência é, sempre, um elemento vinculado, objetivamente fixado pelo legislador”. 2

Neste contexto, analisando a questão da competência através do prisma legal, BILAC PINTO, então Ministro STF, ensinou que:

“O indivíduo que age como órgão do Estado, pode fazer apenas aquilo que a ordem legal o autorize a fazer. Do ponto de vista da técnica legal, portanto, é supérfluo estatuir proibições para um órgão do Estado. Basta não autorizá-lo. Se o indivíduo age sem a autorização da ordem legal ele não está mais agindo como órgão do Estado. Seu ato é ilegal pela simples razão de que não está apoiado por nenhuma autorização legal. Não é necessário que o ato seja proibido por norma legal é necessário proibir a um órgão a prática de certos atos quando se deseja restringir uma anterior autorização.” 3 (grifamos)

Assim, como havia uma norma expressa limitando a competência legal da Secretaria da Receita Federal para não utilizar as informações da CPMF em quaisquer procedimentos que tivessem por escopo a “constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”, então, a autoridade impetrada que instaurou o MPF com base nas informações da CPMF de 1999 agiu em abuso de poder porque sem competência para fazê-lo, violando o art. 5º, LIII, da CF/88, e por isso quando a autoridade impetrada ameaça promover, através desse procedimento irregularmente instaurado, a quebra de sigilo bancário administrativamente termina instaurando procedimento ilegal que representa abuso de poder.

03.04. Por outro lado, nem se alegue na tentativa de convalidar a irregular instauração de MPF com base nas informações prestadas à SRF em razão da CPMF do exercício de 1999, que o art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001, ao dar nova redação ao art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96, passou a permitir a instauração de MPF e utilização de tais informações para a constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos do exercício de 1999 como pretende no caso em exame, na medida que ainda persiste no nosso ordenamento jurídico os princípios da irretroatividade das leis e do tempus regit actum.
________________________
2. O abuso de poder administrativo no Brasil, 1959, p. 27
3. RTJ vol. 77, p. 33

No particular, a Lei nº 10.174/2001 assim regula a matéria:

“Art. 1º – O art. 11 da Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 11.
……….
§ 3º A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2001;”

Desta forma, com base na análise do art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001, verifica-se tratar de norma que entrou em vigor em 09/01/2001, passando a autorizar à SRF a partir de então a utilização das informações sigilosas da CPMF para constituição de crédito de outras contribuições e impostos, ao passo que até o dia 08/01/2001 estava em pleno vigor o art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 que expressamente proibia a utilização das informações da CPMF sob qualquer pretexto instituir mecanismos que pretendessem a constituição de crédito de outras contribuições e impostos.

Logo, como no caso dos autos o MPF foi instaurado com base nas informações da CPMF do ano-calendário 1998 (exercício 1999), fica evidente que o referido Mandado de Procedimento Fiscalizatório foi irregularmente instaurado, uma vez que contraria o princípio da irretroatividade das leis e o do tempus regit actum (os atos são regidos pela lei do seu tempo) a tentativa de aplicar o art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001, na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado (ano-calendário 1998), quando já está sedimentado na jurisprudência do STF entendimento segundo o qual “viola o princípio da irretroatividade das leis” interpretação “que empresta a preceito legal efeito retro-operante, sem que houvesse disposição expressa a respeito” (STF, 2ª T., RE 108.062-1-SP, Rel. Min. Djaci Falcão, j. 21.02.86, cópia anexa); “não retroatividade da lei … significa apenas que ela não incide no período anterior à sua vigência” (STF, 2ª T., RE 73.266, Rel. Min. Bilac Pinto, j. 09.04.73, cópia em anexo); “Se a lei entrou em vigor em novembro de 1982, não podia incidir sobre fato gerador já aperfeiçoado desde janeiro desse ano. A lei só incide sobre fatos geradores futuros ou pendentes (artigo 105 do CTN)” (STF, 2ª T., RE 115.167-6, Rel. Min. Carlos Madeira, j. 20.05.88, cópia em anexo); “a norma … não comporta aplicação retroativa, devendo operar os seus efeitos somente para o futuro” (STF, 1ª T., RE 172996, Rel. Min. Celso de Mello, j. 19.04.94, cópia em anexo); “…, sem a aplicação retroativa de norma ulterior que nesse sentido não haja disposto.” (STF, 1ª T., RE 174.150, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 04.04.00, cópia em anexo); “Em nosso sistema jurídico, a regra de que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, por estar inserida no texto da Carta Magna (art. 5º, XXXVI), tem caráter constitucional, impedindo, portanto, que a legislação infraconstitucional, ainda quando de ordem pública, retroaja para alcançar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito ou a coisa julgada, ou que o Juiz a aplique retroativamente. E a retroação ocorre ainda quando se pretende aplicar de imediato a lei nova para alcançar os efeitos futuros de fatos passados que se consubstaciem em qualquer das referidas limitações, pois ainda nesse caso há retroatividade – a retroatividade mínima -, uma vez que se a causa do efeito é o direito adquirido, a coisa julgada, ou o ato jurídico perfeito, modificando-se seus efeitos por força da lei nova, altera-se essa causa que constitucionalmente é infensa a tal alteração” (STF, 1ª T., RE 188.366, Rel. Min. Moreira Alves, j. 19.10.99, cópia em anexo); Neste mesmo sentido (STF, Pleno, ADI 493-DF, Rel. Min. Moreira Alves, j. 25.06.92, cópia em anexo); (STF, 2ª T., AGRGAI 269.138, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18.12.00, cópia em anexo); (STF, 2ª T., AGRGRE 180979, Rel. Min. Francisco Rezek, j. 19.12.96, cópia em anexo) e (STF, 2ª T., RE 204133, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 16.12.99, cópia em anexo)

Todavia, ainda assim podem existir situações especialíssimas onde o STF tem admitido que a lei nova possa regular as consequências dos fatos ocorridos na vigência da lei anterior, mas nessas situações o STF tem exigido que a lei nova faça declaração expressa neste sentido. No particular, já se decidiu que, como “regra geral é a da irretroatividade das leis, para que resguardados possam ser sempre o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal e artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil)”… no entanto para que “a lei nova possa regular as consequências dos fatos ocorridos na vigência da lei anterior”…”é preciso que na lei se leia declaração expressa nesse sentido”, logo como “no caso dos autos não se lê … previsão de sua aplicação a situações pretéritas” “A regra, portanto, é a não retrooperância da lei”. (STF, 1ª T., RE 174.150, Rel. Min. Octávio Gallotti, j. 04.04.00)

Portanto, como no caso em exame não se pode emprestar efeito retrooperante ao art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001, sob pena de violação do art. 5º, XXXVI e XL da CF/88, art. 6º da LINDB e ao art. 105 do CTN, ficando claro que o Mandado de Procedimento Fiscalizatório (MPF) em exame foi irregularmente instaurado (art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96), razão pela qual no curso deste MPF irregularmente instaurado não é licito nem admissível que a autoridade impetrada determine inclusive a quebra de sigilo bancário administrativamente (CF, art. 5º, LVI). 4

Na jurisprudência tal entendimento já vem encontrando respaldo, uma vez que ao julgar caso semelhante a Desembargadora Federal Diva Malerbi, do TRF da 3ª Região, ao conceder efeito suspensivo ativo ao Agravo de Instrumento nº 2001.03.00.012307-0 suspendeu o procedimento de fiscalização da Receita Federal que implicaria na quebra de sigilo bancário administrativamente de um contribuinte. No particular, conforme noticiou o Jornal Gazeta Mercantil sob o título “Tribunal não aceita quebra de sigilo retroativa do Fisco”, a Desembargadora Federal Diva Malerbi decidiu que o Mandado de Procedimento Fiscal instaurado com base nos dados da CPMF deve levar em consideração o art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96 que “vedava a utilização dessas informações”, uma vez que “só são válidos em relação a fatos posteriores a janeiro deste ano” quando entrou em vigor a Lei nº 10.174/2001, uma vez que “a norma de janeiro (Lei nº 10.174/2001) não pode ser aplicada a fatos acontecidos em 1998”. 5

03.05. Assim, o procedimento foi instaurado irregularmente, representando um abuso de poder e por isso não se coaduna com a ordem legal (art. 6º da LICC e art. 105 do CTN) e ordem constitucional (art. 5º, XXXVI e XL da CF/88).

IV. IRRETROATIVIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº 10.174, DE 09 DE JANEIRO DE 2001. ART 5º, § 2º DA CF/88 C/C ART 98 DO CTN. PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

04.01. Ademais disso, mesmo se ainda assim não fosse, o art. 5º, §2º da CF/88 c/c art. 98 do CTN determinam que o art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001 deveria observar o quanto determinado pelo art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica, o que inviabilizaria a hipótese de se emprestar efeito retrooperante a dispositivo da Lei nº 10.174/2001.

04.02. É imperioso esclarecer que o art. 5º, §2º, da CF/88, estabeleceu que:

“Art. 5º
……….
________________________
4. Neste mesmo sentido, ao abordar o tema “Sigilo Bancário e Fiscalização Tributária”, o “Relatório Jurídico 2001” do escritório Levy&Salomão conclui pela impossibilidade de se atribuir efeito retrooperante à norma em exame, vide web site: www.levysalomão.com.br
5. Jornal Gazeta Mercantil, 08/05/2001, Caderno “Legislação”, p. A-15.
§2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a Republica Federativa do Brasil seja parte.”

Deste modo, o referido dispositivo desempenha uma função integrativa, funcionando como um liame entre as normas constitucionais e os direitos previstos nos tratados, e apesar dos mesmos serem internalizados através da ratificação por Decreto Legislativo e promulgação por Decreto presidencial, a Constituição Federal de 1988 admitiu no dispositivo em exame a aquisição de outros direitos e garantias através de tratados internacionais.

04.03. No particular, no campo do Direito Tributário, o CTN (norma de hierarquia de Lei Complementar) estatuiu no seu art. 98 que:

“Art. 98 – OS tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha.”

Portanto, fica evidenciado que “A legislação interna deve observar as normas contidas em tratados e convenções internacionais (art. 98, CTN)…”(TRF 1ª R, 3ª T., REO 91.01.00254-6/BA, Rel. Juiz Vicente Leal, DJ de 14/05/92, p. 12.500), até mesmo porque “o art. 98 do CTN com hierarquia de lei complementar, estabelece que os tratados e convenções internacionais, na matéria tributária, revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pelas que lhes sobrevenha. Assim, uma vez convertidas as cláusulas do tratado ou convenção em lei interna pelo decreto legislativo, não poderá, então, essa lei tributária interna ser desrespeitada por posterior lei ordinária, ou outra qualquer norma de herarquia inferior à lei complementar”(STJ, 1ª T., REsp nº 302.323-RJ, Rel. Min. José Delgado, Dj 30.03.2001).

04.04. Por esta perspectiva, no caso em exame o dispositivo contido no art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001 deveria observar a irretroatividade determinada pela inteligência do art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil através do Decreto nº 678/92, estabelecendo que:

“… toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido com anterioridade por uma lei para a determinação de seus direitos e obrigações de ordem … fiscal”

Portanto, como no caso em exame não se pode emprestar efeito retrooperante ao art. 1º da Lei nº 10.174, de 09 de janeiro de 2001, sob pena de violação do art. 5º, §2º da CF/88, art. 98 do CTN e art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica, ficando claro que o Mandado de Procedimento Fiscalizatório (MPF) em exame foi irregularmente instaurado (art. 11, §3º, da Lei nº 9.311/96), razão pela qual no curso deste MPF irregularmente instaurado não é licito nem admissível que a autoridade impetrada determine inclusive a quebra de sigilo bancário administrativamente (CF, art. 5º, LVI).

04.05. Assim, o procedimento foi instaurado irregularmente, representando um abuso de poder e por isso não se coaduna com a ordem legal (art. 98 do CTN c/c art. 8º, I, do Pacto de San José da Costa Rica) e ordem constitucional (art. 5º, §2º da CF/88).

V. SIGILO BANCÁRIO. ART. 5º, XII E X DA CF/88. CLÁUSULA PÉTREA. LEI COMPLEMENTAR Nº 105/2001. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO ORGÂNICA DO PODER. PRINCÍPIO DA INDELEGABILIDADE DE ATRIBUIÇÕES. PRINCÍPIO DA IMPOSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO SIMULTÂNEO DE FUNÇÕES. PRINCÍPIO DA RESERVA DE JURISDIÇÃO. NÃO É COMPATÍVEL COM A CF/88 NORMA QUE AUTORIZA A QUEBRA DE SIGILO POR DECISÃO EXCLUSIVA DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA, INDEPENDENTE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DOUTRINA SÓLIDA. PRECEDENTES DO STF

05.01. Dentre algumas definições de sigilo bancário elaboradas pelos estudiosos da matéria, a ensinada por JUAN CARLOS MALAGARRIGA, é a que detém maior prestígio, na medida que conceitua o instituto da seguinte forma:

“O sigilo bancário é obrigação de não revelar a terceiros, sem causa justificada, os dados referentes a seus clientes que cheguem a seu conhecimento como consequência das relações jurídicas que os vinculam”. 6

________________________
6. El Secreto Bancario, Abeledo, 1970, p. 15.
05.02. Já no ambiente constitucional o sigilo bancário encontra respaldo no art. 5º, X, CF/88, na medida que deve ser considerado como sendo uma das “projeções específicas do direito à intimidade”, na feliz expressão do Ministro Celso de Melo (STF, MSMC – 23639/DF).

Neste mesmo sentido, do ponto de vista do direito individual fundamental, a Desembargadora Federal do TRF da 3ª Região – DIVA MALERBI – entende que o sigilo bancário também “acha-se inscrito na cláusula da inviolabilidade aos dados, inovação da Constituição Federal de 1988, pois que o âmbito de proteção do direito não se restringe à proibição à violação, mas compreende também o dever de terceiros que estejam colocados na contigência de ter de divulgá-los”. 7

Desta forma, o sigilo bancário está protegido, em nossa Carta Magna, no art. 5º, X e XII, como se vê:

“Art. 5º.
………
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
……….
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução penal processual”.

Ao analisar a matéria do sigilo bancário sobre o prisma constitucional, JOSÉ DELGADO, Ministro do STJ, ensina que:

________________________
7. Direitos Fundamentais do Contribuinte. “Direitos Fundamentais do Contribuinte”, RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, pp. 163/164.

“Em face dessa elevação no panorama constitucional concedida ao sigilo bancário, deve ser tratado como sendo direito fundamental do indivíduo, portanto, merecedor de ser inserido no rol dos protegidos pelo art. 60, §4º, IV, da CF. Insuscetível passa a ser de sofrer qualquer modificação por via de Emenda Constitucional, isto é, pelo Constituinte Derivado. 8

Neste mesmo sentido, em laborioso artigo sobre a matéria, o ilustre IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, conclui que:

“Sempre estive convencido de que a expressão ‘sigilo de dados’ hospeda aquela de ‘sigilo bancário’. Esta é espécie daquele gênero.

Por outro lado, nos direitos e garantias individuais, claramente, o constituinte assegurou a preservação da intimidade e privacidade das pessoas e a preservação do sigilo de dados.

Trata-se de cláusula imodificável, de acordo com expressa manifestação da Câmara dos Deputados, ao rejeitar o projeto governamental, e do STF ao inadimitir que o Ministério Público pudesse ter acesso aos dados bancários sem autorização judicial.” 9
(grifos aditados)

Para arrematar de vez a questão, o renomado tributarista PLÍNIO JOSÉ MARFON é definitivo em afirmar que:
________________________
8. Direitos Fundamentais do Contribuinte. “Direitos Fundamentais do Contribuinte”, RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, p. 111.
9. Sigilo Bancário. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 01, pp. 20/21.
“Com efeito, a doutrina não diverge quanto ao fato de que tais direitos (privacidade/intimidade) são protegidos pelo disposto no art. 60, §4º, da CF/88, donde se conclui que o sigilo bancário é considerado cláusula pétrea.” 10 (grifos nossos)

Portanto, o direito ao sigilo bancário, por ser uma extensão do direito à intimidade, integra a categoria dos direitos da personalidade, sendo consequentemente, de natureza fundamental e por isso mesmo cláusula pétrea protegida pelo manto do art. 60, §4º, IV, da CF/88, não sendo suscetível de ser abolido sequer por Emenda Constitucional.

05.03. Entretanto, sob o pretexto de regular o sigilo das operações financeiras foi recentemente editada a Lei Complementar nº 105, de 10.01.2001, passando a permitir a inusitada forma de quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da autoridade administrativa, independente de autorização judicial, como se observa:

“Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.
……….
§3º Não constitui violação do dever de sigilo:
………
VI – a prestação de informações nos termos e condições estabelecidos nos artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 9º desta Lei Complementar.
………..
Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”.
________________________
10. Direitos Fundamentais do Contribuinte. “Direitos Fundamentais do Contribuinte”, RT, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, p. 444.

Já no nível infralegal, o Presidente da República regulamentou a matéria através do Decreto nº 3.724, de 10.01.01, da seguinte forma:
“Art. 1º Este Decreto dispõe, nos termos do art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001 sobre a requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal e seus agentes, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas, em conformidade com o art. 1º, §§ 1º e 2º, da mencionada Lei, bem assim esclarecer procedimentos para preservar o sigilo das informações obtidas.
Art. 2º A Secretaria da Receita Federal, por intermédio de servidor ocupante do cargo de Auditor Fiscal da Receita Federal, somente poderá examinar informações relativas a terceiros, constantes de documentos, livros e registros de instituições financeiras e de entidades a elas equiparadas, inclusive os referentes a contas de depósitos e de aplicações financeiras, quando houver procedimento de fiscalização em curso e tais exames forem considerados indispensáveis.
………
§2º O procedimento de fiscalização somente terá inicio por força de ordem específica denominada Mandado de Procedimento Fiscal (MPF), instituído em ato da Secretaria da Receita Federal, ressalvado o disposto nos §§ 3º e 4º deste artigo.
………
Art. 4º Poderão requisitar as informações referidas no caput do art. 2º as autoridades competentes para expedir o MPF.
§1º A requisição referida neste artigo será formalizada mediante documento denominado Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) e será dirigida, conforme o caso, ao:
……….
III – presidente da instituição financeira, ou entidade a ela equiparada, ou a seu preposto;
IV – gerente de agência.
§ 2º A RMF será precedida de intimação ao sujeito passivo para apresentação de informações sobre movimentação financeira, necessária à execução do MPF.”

Desta forma, consoante se observa dos enunciados normativos acima dispostos, a legislação infraconstitucional e regulamentar passou a outorgar ao Poder Executivo a “legitimidade” de resolver o confronto entre o interesse público e o direito fundamental individual (cláusula pétrea) para determinar e promover a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva sua, independentemente de autorização judicial para fazê-lo, o que diga-se de passagem não se coaduna com o art. 5º, X e XII e art. 60, §4º, IV, da CF/88.

No particular, já existe precedente da Justiça Federal – Seção Judiciária da Bahia que se posicionou contra a quebra de sigilo bancário por decisão exclusiva da administração sem autorização judicial.

O Jornal Gazeta da Bahia, que é caderno estadual do Jornal Gazeta Mercantil, no 24/05/01, noticiou matéria sob o título “Sai primeira liminar no Estado contra efeito da 105”, esclarecendo que o Juiz Federal da 14ª Vara da Seção Judiciária da Bahia – MOACIR FERREIRA RAMOS – concedeu liminar (Mandado de Segurança nº 2001.33.00.007229-6) para impedir a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial, por entender que “o sigilo bancário é uma garantia individual enquadrada no artigo 5º da Carta Magna”, e por isso “o sigilo bancário se insere nas cláusulas pétreas da Constituição Federal, não podendo ser modificado nem por Emenda Constitucional”, pois “O que se procura resguardar é o direito do cidadão de não ver sua vida privada invadida por quem legalmente não está investido de competência para esse proceder”. 11

Portanto, conclui-se facilmente que a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial não se coaduna com o art. 5º, X e XII e art. 60, §4º, IV, da CF/88.
________________________
11. Gazeta da Bahia, 24/05/01, página 06, “Saia primeira liminar no Estado contra efeito da 105” – 14ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia, Mandado de Segurança nº 2001.33.00.007229-6, Liminar deferida em 18/05/01.
05.04. Todavia, se já não fossem suficientes os argumentos supra, cabe ainda ressaltar que a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial não se coaduna com os princípios da separação orgânica dos poderes e indelegabilidade de atribuições consubstanciados no art. 2º; art. 60, §4º, III, c/c a inteligência do art. 68 da CF/88.

Em verdade, fala-se em funções do Estado como exteriorização de seu poder, uma vez que antes de tudo o Ente estatal vem a ser uma organização jurídica personificada, com âmbito de validez próprio. Deste modo, o Estado pode aquilo que a sua Constituição determina ou permite, ao passo que a Constituição é ditada pelo Poder Político (soberano), exercido num determinado instante.

Desta forma, o Poder Político é um só, indivisível, dele necessitando o Estado para organizar-se, para manter a ordem e em subsistir. O Estado sem poder se converte em um inerte, vazio de substância, em um não Estado, razão pela qual esse poder é essencialmente uno. Neste contexto, as funções do Estado são separadas e não o seu Poder. Podem ser criados órgãos distintos para o desenvolvimento dessas funções, sem que a unicidade do Poder reste comprometida. 12

Devemos ao Barão de Montesquieu a sistematização final da repartição de poder, através da criação de órgãos distintos e independentes uns dos outros para o exercício de certas e determinadas atividades.

Foi observando a sociedade que Montesquieu verificou a existência de três funções básicas: 1ª) produtora do ato geral; 2ª) produtora do ato especial; e 3ª) solucionadora de controvérsias. No particular, apesar das duas últimas aplicarem o disposto no ato geral, porém, seus objetivos eram diversos, pois enquanto uma visava executar, administrar e dar o disposto no ato geral para desenvolver a atividade estatal, a outra tinha por objetivo solucionar controvérsias entre os súditos e o Estado ou entre os próprios súditos.

No absolutismo o Príncipe concentrava o exercício do poder de forma absoluta, exercitando-o por si ou por meio de auxiliares as distintas funções, sem a existência de órgãos independentes uns dos outros, pois a vontade do Príncipe era a fonte do ato geral, do especial e daquele solucionador de controvérsia. Em síntese, legislação, execução e jurdisdição dependiam de seu querer. “L’État c’est moi” (Luís XIV).

Por isto, MICHEL TEMER, esclarece que:

________________________
12. J. Blanco Ande. Teoria del poder, Pirâmide, Madrid, p. 191.

“O valor da doutrina de Montesquieu está na proposta de um sistema em que cada órgão desempenhasse função distinta e, ao mesmo tempo, que a atividade de cada qual caracterizasse forma de contenção da atividade de outro órgão do poder. É o sistema de independência entre os órgãos do poder e da inter-relacionamento de suas atividades. É a fórmula dos ‘freios e contrapesos’ a que alude a doutrina americana”. 13

Neste mesmo sentido, VALMIR PONTES FILHO, adverte:
“O Poder não deve ser exercido incontroladamente, sob pena de vermos instaurada uma ditadura. Sem a separação funcional – à qual está incita a idéia de independência dos órgãos, a sua colaboração recíproca e o sistema de checkes and balances – os direitos individuais não poderiam estar garantidos, diante da onipotência do Ente estatal”. 14

Abraçando estes mesmos princípios, o jurista argentino AGOSTIN GORDILHO, adverte:

“Também é importante advertir acerca da fundamental importância política que tem a interpretação que se dá à teoria da divisão dos poderes; ela foi concebida como garantia da liberdade, para que o poder através de mútuo controle e interação dos três grandes órgãos do Estado: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. Falar, portanto, em divisão de poderes – no sentido de outorga das funções estatais, em regime de exclusividade, a órgãos distintos e independentes – é defender a liberdade, é impedir o absolutismo.” 15
________________________
13. Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, p. 118.
14. Curso Fundamental de Direito Constitucional, Dialética, p. 150.
15. Tratado de Derecho Administrativo, Fund. de Derecho Administrativo, p. 15.

Esta concepção está totalmente impregnada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, uma vez que observamos no seu art. 2º e art. 60, de forma categórica, tal concepção:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
……….
§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
………
III – a separação dos Poderes”.

Portanto, fica evidenciado como ensina MICHEL TEMER que cada órgão do Poder exerce, preponderantemente, uma função, e, secundariamente, as duas outras. Da preponderância advém a tipicidade da função; da secundariedade, a atipicidade. Neste passo, as funções típicas do Legislativo, Executivo e Judiciário são, em razão da preponderância, legislar, executar e julgar. 16

Quanto ao Executivo se tem reconhecido atipicamente, até possibilidade de legislar em situações especialíssimas através de Leis Delegadas mediante expressa delegação do Congresso Nacional (CF, art. 68, caput, e §2º), ou através de Medidas Provisórias de forma transitória e nos casos de relevância e urgência (CF, art. 62).

Neste particular, é importante frisar que a atipicidade da função no caso das Leis Delegadas o Poder Executivo é tão proeminente que o Executivo deverá solicitar autorização ao Congresso Nacional para que este lhe delegue competência para editar instrumento normativo com força de lei sobre matérias específicas (CF, art. 68), sendo expressamente vedada a delegação de competência para editar Lei Delegada sobre os direitos individuais (CF, art. 68, §1º, II).
________________________
16. Michel Temer, Ob. Cit., p. 120.
Já no que se refere as Medidas Provisórias, cumpre ressaltar também a atipicidade da função, tanto que a própria CF prevê esta transitória hipótese do poder de legislar (30 dias de eficácia) nos casos de relevância e urgência, mas por outro lado não autoriza que esta modalidade legislativa de hierarquia de lei ordinária possa disciplinar ou restringir os direitos individuais porque cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV), e ainda assim tal instrumento normativo para ser convertido em lei deverá ser submetido ao exame do Congresso Nacional.

Portanto, percebe-se a grande preocupação da Constituição com a ingerência do Poder Executivo no campo dos direitos e garantias individuais, e talvez devido a lembrança do passado recente a Assembléia Constituinte ter procurado afastar de todas as formas das atribuições do Poder Executivo, seja através da tipicidade ou atipicidade da função, qualquer ingerência neste campo que envolve a própria consistência do Estado Democrático de Direito.

De igual modo, deve ser reconhecida a atipicidade da função jurisdicional atribuída ao Poder Executivo que até pode organizar instâncias recursais para apreciar defesas e recursos administrativos, mas encontra a barreira intransponível no desempenho desta atividade atípica no que diz respeito a solucionar litígio que importe em restrição ao direito individual porque cláusula pétrea (CF, art. 60, §4º, IV), inclusive porque isto é uma função típica do Poder Judiciário e por isso não poderia sequer ser delegada sem a autorização expressa e específica da Constituição.

Tais conclusões se extraem do ordenamento jurídico em razão da regra maior da indelegabilidade de atribuições de um para o outro Poder, salvo as exceções previstas na Constituição de forma expressa e específica.

No momento que a Constituição assinalou a independência entre os Poderes, naturalmente pressupôs a separação (CF, art. 2º c/c art. 60, §4º, III), portanto não seria de boa lógica ver a vontade soberana da Assembléia Constituinte ser ultrapassada pela vontade secundária dos órgãos de delegar suas funções típicas uns para os outros, pois se a delegação pudesse ser feita ao talante de cada Poder não haveria necessidade da autorização delegatória constitucional.

Particularmente, a Constituição prevê exaustivamente as hipóteses de delegação, e quando não desejou que tais delegações ocorressem, obviamente não as determinou, consoante regra de hermenêutica consubstanciada no brocardo latino: ubi lex voluit dixit, ubi noluit tocuit, isto é, quando a lei quis determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio.17

Neste mesmo sentido, JOSÉ AFONSO DA SILVA esclarece que o Princípio da Separação ou da Divisão dos Poderes está na raiz do sistema federativo, sendo aduzido logo no art. 2º da Constituição, estando ao seu lado o Princípio da Indelegabilidade de atribuições, e em razão disso as exceções a esta regra devem ser expressamente previstas na Constituição.18
________________________
17. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª ed., 1981, p. 243.

Na jurisprudência, os tribunais já vem adotando posicionamento firme que o princípio da indelegabilidade de atribuições e o princípio da separação orgânica dos poderes, apenas admitem a delegação de atribuições expressamente prevista na Constituição, como se vê:

“………
A Carta Constitucional de 1967 com a Emenda nº 1/69 estabeleceu, no art. 6º, parágrafo único, o princípio da indelegabilidade de atribuições, preceito aliás não repetido pela Constituição da República de 1988, uma vez que se extrai a disposição do próprio sistema.
Assim, os poderes são independentes e harmônicos, exercendo cada um sua função precípua.
………
De pronto concluir-se da inconstitucionalidade do art. 66 da Lei nº 7.450/85, que delega poderes ao Ministro da Fazenda, com ofensa ao princípio da separação de Poderes porque a fixação do prazo para recolhimento de tributo é matéria reservada à lei.” (grifamos)
(TRF 3ª R., REO MS nº 7.118, Rel. Juíza Annamaria Pimentel; RTRF 3ª, v. 9, p. 248/251)

Foi Abraçando estes mesmos princípios que a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sob o prisma eminentemente constitucional, ao analisar o art. 129, VIII, da CF/88 decidiu que somente autorização delegatória expressa da Constituição poderia legitimar o Ministério Público a promover a quebra do sigilo bancário diretamente sem a autorização judicial, como se vê:
________________________
18. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 18ª ed., 2000, pp. 101/102.

“CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA. C. F., ART. 129, VIII.
I – A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza ao Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade, que a C.F. consagra, art. 5º, X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.
II – R.E. não conhecido.” (grifamos)
(STF, 2ª T., RE nº 215.301-0, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.04.99, DJ 28.05.99, cópia em anexo)

Neste julgamento do RE 215.301-0, conforme se observa do extrato de ata em anexo, o Ministro Carlos Velloso, foi também acompanhado pelo voto dos Ministros Marco Aurélio, Maurício Corrêa e Nelson Jobim, resultando que a 2ª Turma do STF, por unanimidade, não conheceu do recurso interposto pelo Ministério Público Federal, ficando claro as seguintes premissas no voto condutor:

“VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator):
………
Ora, no citado inc. VIII, do art. 129, da C.F., não está escrito que poderia o órgão do Ministério Público requerer, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de alguém. E se consideramos que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade que a Constituição consagra, art. 5º, inc. X, somente autorização expressa da Constituição legitimaria a ação do Ministério Público para requerer, diretamente, sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.” (grifos aditados)

No caso em exame, quando o art. 1º, §3º, VI e art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 c/c art. 1º; art. 2º, §2º; art. 4º, III e IV, §2º do Decreto nº 3.724/2001 autorizam a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial, traz a baila situação onde o Poder Executivo pretende ter legitimidade para exercer uma função típica do Poder Judiciário, o que contraria o princípio da independência e separação orgânica dos Poderes e o princípio da indelegabilidade de atribuições, justamente por faltar a autorização delegatória expressa e específica da Constituição neste sentido.

Assim, não se coaduna com os princípios da separação orgânica dos poderes e indelegabilidade de atribuições (art. 2º; art. 60, §4º, III, c/c a inteligência do art. 68 da CF/88) situação onde se realize a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII) por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial, sem a devida autorização delegatória expressa e específica da Constituição.

05.05. Ademais, cumpre ressaltar ainda que também não se coaduna com o princípio da impossibilidade de exercício simultâneo de funções a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial.

No ordenamento constitucional também se extrai o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções, segundo o qual “quem for investido na função de um deles não poderá exercer a de outro” (…) “ficando evidente que o exercício simultâneo de funções não é tolerado pela Constituição (salvo as hipóteses expressamente mencionadas)”, pois o objetivo constitucional é cristalino: “quer-se preservar a independência de cada órgão do Poder”.19

Ora, se o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções se manifesta na convicção do nosso sistema constitucional (CF, art. 56, I), com mais força ainda, e por que não dizer ostensivamente, com relação ao Poder Judiciário e a função jurisdicional, quando se observa o contexto do art. 2º; art. 95, Parágrafo único, I c/c art. 5º, XXXVII e LIII, da CF/88.

________________________
19. Ob. Cit., p. 124

“CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
……….
Art. 95. Os juizes gozam das seguintes garantias:
……….
Parágrafo único. Aos juizes é vedado:
I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
……….
Art. 5º
………
XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;
………
LIV – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”

Desta forma, quando a legislação infraconstitucional e regulamentar passou a outorgar ao Poder Executivo a “legitimidade” de resolver o confronto entre o interesse público e o direito fundamental individual (cláusula pétrea) para determinar e promover a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva sua, independentemente de autorização judicial para fazê-lo, na verdade estava autorizando ao mesmo funcionário subordinado ao Poder Executivo a legitimidade para instaurar a acusação (art. 2º, §2º, do Dec. nº 3.724/2001) e efetivar a quebra do sigilo bancário garantido constitucionalmente (art. 4º, do Dec. nº 3.724/2001).

Logo, se o funcionário que instaura a acusação (art. 2º, §2º, do Dec. nº 3.724/2001) exerce função típica do Poder Executivo, então, esse mesmo funcionário subordinado ao Poder Executivo não pode ao mesmo tempo exercer função típica do Poder Judiciário (art. 4º, do Dec. nº 3.724/2001) que importe em quebra de um direito inerente à privacidade garantido pela Constituição, sob pena de violação ao princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções.

Assim, não se coaduna com a Constituição Federal, nem com o princípio da impossibilidade do exercício simultâneo de funções (art. 2º; art. 95, Parágrafo único, I c/c art. 5º, XXXVII e LIII, da CF/88) situação onde o mesmo funcionário do Poder Executivo é quem tem legitimidade para instaurar a acusação e efetivar a quebra do sigilo bancário (CF, art. 5º, X e XII), independente de autorização judicial.

05.06. Ademais disso, cumpre ressaltar ainda que também não se coaduna com o princípio da reserva de jurisdição a quebra do sigilo bancário por decisão exclusiva da administração, independente de autorização judicial.

É importante ressaltar que o princípio da reserva constitucional de jurisdição foi disseminado pelo ilustre constitucionalista lusitano J. J. GOMES CANOTILHO, para quem por efeito de uma verdadeira discriminação material de competência jurisdicional fixada no texto da Carta Política, a prática de determinados atos que impliquem em restrições a direitos resguardados pela Constituição somente podem ser ordenados por magistrados. 20

No particular, o Ministro do STJ – ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO – ao comentar sobre o princípio da reserva constitucional de jurisdição já esclareceu que:

“A função específica, atribuída pela Constituição ao Poder Judiciário, é a de compor os litígios em nome do Estado. É a denominada função jurisdicional, que na sua essência, se funda no inciso XXXV do art. 5º daquela Lei Maior, nestes termos: ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’. Ao lado dessa função típica, os órgãos do Poder Judiciário exercem outras, previstas na própria Constituição”. 21

Abraçando este mesmo princípio, e desdobrando-o no caso concreto de forma lapidar, o Ministro Carlos Velloso ao relatar o já citado RE 215.301-0, foi acompanhado pelo voto dos Ministros Marco Aurélio, Maurício Corrêa e Nelson Jobim, realizou as seguintes ponderações no seu voto condutor:
________________________
20. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, pp. 580/586.
21. O Judiciário e a Constituição. “O Poder Judiciário: Algumas Reflexões”, Saraiva, p. 40.

“VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator):
………
Todavia, já deixei expresso no voto que proferi no MS 21.729-DF, por se tratar de um direito que tem status constitucional, a quebra não pode ser feita por quem não tem o dever de imparcialidade. Somente a autoridade judiciária, que tem o dever de ser imparcial, por isso mesmo procederá com cautela, com prudência e com moderação, e que, provocada (…) poderá autorizar a quebra do sigilo.
……….
Então, como poderia a parte, que tem interesse na ação, efetivar, ela própria, a quebra de um direito inerente a privacidade, que é garantido pela Constituição? (…) Há órgãos e órgãos … que agem individualmente, e alguns, até, comprometidos com o poder político. O que não poderia ocorrer, indago, com o direito de muitos, por esses Brasis, se o direito das pessoas ao sigilo bancário pudesse ser quebrado sem maior cautela, sem a interferência da autoridade judiciária” (grifamos)
(STF, 2ª T., RE nº 215.301-0, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.04.99, DJ 28.05.99, cópia em anexo)

No particular, é importante ressaltar que mesmo nos casos das CPIs onde existe autorização delegatória expressa e específica da Constituição no seu art. 58, §3º, para que o Poder Legislativo no âmbito dessas comissões tenham os mesmos “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, ainda assim, mesmo quando existe essa expressa delegação constitucional (o que não é o caso dos autos) o Poder Judiciário através da sua Corte Constitucional já tem firmado entendimento que tais poderes excepcionais não podem ser exercidos legitimamente quando se opõe aos direitos individuais da liberdade, privacidade e propriedade (CF, art. 5º), por força do princípio da reserva constitucional de jurisdição.

No SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, o Ministro Celso de Mello, reportando-se ao princípio da reserva constitucional de jurisdição decidiu que:

“DECISÃO:
……….
O postulado da reserva constitucional de jurisdição – consoante assinala a doutrina (J. J. GOMES CANOTILHO, ‘Direito Constitucional e Teoria da Constituição’, p. 580 e 586, 1998, Almedina, Coimbra) – importa em submeter, à esfera única dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’.
Isso significa – considerada a cláusula da primazia judiciária que encontra fundamento no próprio texto da Constituição – que esta exige, para a legítima efetivação de determinados atos, notadamente daqueles que implicam restrição a direitos, que sejam eles ordenados apenas por magistrados.
………
Assim sendo, tendo presentes as razões expostas, considerando o relevo jurídico da tese suscitada nesta impetração – especialmente a alegação de ofensa ao princípio da reserva constitucional de jurisdição -, defiro a liminar ora postulada (fls. 10, item n. 1), para, até a prestação de informações pela autoridade ora apontada como coatora, suspender a eficácia do ato ora impugnado (ato este que resultou da aprovação de Requerimento nº 81) e sustar a execução de qualquer medida de busca e apreensão e de quebra dos sigilos telefônico, bancário e fiscal do impetrante.”
(STF, MS 23.452/RJ, Min. Celso de Mello, j. 01.06.99, DJ 08.06.99, p. 11, cópia em anexo)

De igual modo, o Ministro Carlos Velloso, quando na Presidência do STF, deferiu diversas liminares para sustar eficácia de determinações de quebra de sigilo bancário, vazada nos seguintes termos:

“DESPACHO – Vistos, Despachei dois casos semelhantes a este, em 20 e 21 de dezembro p. passado, os MMSS 23.599-DF e 23.602-DF, impetrados, respectivamente, por Dório Antunes de Souza e Solange Antunes Resende. Em ambos, deferi a medida liminar. Assim a decisão que proferi no MS 23.602-DF:
‘DESPACHO: – Vistos.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as decisões das Comissões Parlamentares de Inquérito, que decretam a quebra do sigilo bancário, fiscal e/ou telefônico, devem ser fundamentadas, tal como ocorre com as decisões das autoridades judiciais.
Indico, por exemplo, o decidido no MS 23.452-RJ. No voto que proferi por ocasião do citado julgamento, deixei expresso o meu entendimento no sentido de que adoto o princípio da reserva de jurisdição. É dizer, certos atos, relacionados com os direitos e garantias fundamentais, a Constituição reservou aos juizes, exclusivamente. É o que Canotilho denomina de ‘reserva constitucional de jurisdição’.
Assim posta a questão, vejo configurados, no caso, os pressupostos do fumus boni juris e do periculum in mora. Por isto, defiro a liminar requerida, pelo que suspendo a eficácia do ato impugnado, sustando-se a execução de qualquer providência para efetivá-lo.”
(STF, MSMC 23614/DF, Min. Carlos Velloso, j. 12.01.00, DJ 01.02.00, p. 118)
(Neste mesmo sentido: MMSS 23.599-DF; MMSS 23.602-DF; MSMC 23.612-DF)

Com base neste mesmo princípio, o atual PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, o Ministro Marco Aurélio, já decidiu que:

“DESPACHO: DECISÃO – LIMINAR – COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – ATO DE CONSTRIÇÃO – PESSOAS NATURAIS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO – PRÁTICA DIRETA – INVIABILIDADE – LIMINAR CONCEDIDA.
………
A partir do momento em que elementos tidos por indispensáveis, pela Comissão Parlamentar de Inquérito, dependam da prática de atos que impliquem efetivo constrangimento, atingindo a liberdade e a privacidade de pessoas de direito privado, há de atentar-se para a necessária atuação do Estado-Juiz, de quem competir a função jurisdicional.

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