O Direito e o direito ao aborto

Lucy Mastellini Fernandes

Delegada de Polícia em São Paulo – SP
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos

Sumário

Introdução; 1.Definição legal de aborto; 2.Aborto legal: a gestante em risco; 3.Aborto legal: gestante vítima de estupro ou de atentado violento ao pudor; 4.A vida como direito relativo; 5.Conclusão.

Resumo

O presente artigo tem a pretensão de demonstrar a visão contraditória do legislador penal acerca do polêmico tema do aborto e justificar sua liberação, como reflexo do anseio de nossa sociedade democrática e, ainda, diante da realidade de que o aborto é uma prática socialmente aceitável pela maioria dos membros de nossa sociedade e do fato de que as mulheres que se decidem por fazê-lo não se amedrontam diante do fato de que se trata de um ato ilegal.

Palavras-chave

Aborto; gravidez resultante de aborto; direito de escolha; legalização.

Introdução

Quando nos aventuramos pelo mundo do direito, não podemos nos esquecer quão importante ele é e o quanto ele pode afetar a vida das pessoas, de uma forma positiva ou negativa.
O direito surgiu como uma necessidade, com a finalidade de regrar a vida em sociedade e permitir que ela seja possível. Portanto, não pode o direito se afastar do anseio dessa mesma sociedade, sob pena de não alcançar seu objetivo, além de se tornar fonte de injustiça.
No caso específico do aborto, não são necessárias extensas pesquisas para se constatar o que já se sabe: que uma mulher, quando tem intenção de praticar um aborto, raramente deixará de fazê-lo. E mais, se uma mulher quiser fazer um aborto ela o fará com os meios que tiver à sua disposição: seja nas inúmeras clínicas de alto padrão que existem para esse fim, seja com a ajuda de uma “curiosa” ou mesmo, sozinha, utilizando-se de algum medicamento, como o já conhecido Cytotec ou mesmo de uma agulha de tricot.
Discussões doutrinárias, éticas, religiosas e médicas à parte, essa é a realidade brasileira, aquela que muitos não querem admitir, seja lá quais forem os motivos alegados.
Por isso, esse trabalho não tem outra pretensão a não ser mostrar a realidade, realidade essa a que o direito, como ciência humana e dinâmica que é, ou que, ao menos, deveria ser, não pode e não deve ficar alheio.

1. Definição legal de aborto
O aborto é sempre uma questão polêmica, qualquer que seja o tempo, qualquer que seja o lugar. Em nosso país, não poderia ser diferente, o tema seduz apaixonados defensores e ofensores. Paixões à parte, passamos a discutir, tecnicamente, a questão.
Legalmente, o aborto é entendido como a expulsão do produto da concepção antes do parto. Ou seja, no aborto, a proteção legal se volta para o produto da concepção, ou seja, o feto ou embrião vivo.
Esse ato, em regra, é ilegal. Portanto, é criminoso o ato de retirar do útero de uma mulher o feto ou embrião vivo.
Como, porém, toda regra tem sua exceção, a lei considera lícito o aborto se realizado quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante ou é resultante de estupro ou atentado violento ao pudor. Nessas situações, o feto ou embrião vivo pode ser, impunemente, retirado do útero da gestante. É o que dispõe o artigo 128 do Código Penal.
Nesse último caso, atentemos para a falta de sorte do ser humano que, embora vivo e em perfeitas condições de saúde física e mental, não é digno de ser dado à luz, pelo fato de ter, como pai, um criminoso. Evidencia-se, aqui, a preocupação da lei exclusivamente para com a gestante – figura central da gravidez, sem o qual o feto não teria condições de sobreviver. Então, perguntamos: porque esse feto, fruto de um aborto, não merece viver?

2. Aborto legal: a gestante em risco
No primeiro caso citado de aborto legal: quando a gravidez se torna um risco para a vida da gestante, sequer seria necessária sua expressa menção na parte especial do Código Penal, pois o caso se encaixa perfeitamente na definição de estado de necessidade, excludente de ilicitude prevista na parte geral do Código Penal.
A lei penal permite o sacrifício de um bem jurídico tutelado (no caso, a vida do feto ou embrião) para que outro bem jurídico tutelado, de igual valor (no caso, a vida da gestante), subsista.
Nesse caso, ocorre o estado de necessidade, e não há crime nessa conduta. Isto porque é lícito, lógico e justo, portanto, sacrificar a vida do feto quando a da gestante está em risco, justamente por causa dessa gravidez. Esse tipo de aborto não chega a causar grandes discussões no meio acadêmico – pacífica que é a questão, ao menos legalmente.

3. Aborto legal: gestante vítima de estupro ou de atentado violento ao pudor
Os crimes sexuais, considerados hediondos pela lei, são considerados uns dos piores crimes capitulados em nosso Código Penal. Além das seqüelas psicológicas que deixa na vítima, o crime sexual pode causar estragos ainda maiores quando do ato sexual violento decorre a gravidez: não bastasse a lembrança e as marcas da violência, a vítima ainda carrega, dentro de si, o filho de seu agressor. Evidente que aquele ser vivo, ainda em formação, não tem culpa nenhuma, mas por outro lado, como permitir que a vítima prorrogue ou intensifique seu sofrimento por mais tempo?
É lícito sacrificar uma vida por outra vida, mas seria lícito sacrificar uma vida em nome do bem estar psíquico de uma pessoa?
O fato é que o feto ou embrião está vivo e saudável e a gestante está em perfeitas condições físicas podendo prosseguir na gestação sem qualquer risco.
Fisicamente, o feto não oferece riscos à saúde da gestante. Emocionalmente, entretanto, sim, pois a gestante carrega dentro de si o fruto de uma relação sexual que ela nunca quis praticar e que só praticou mediante o recurso da violência ou da grave ameaça por parte de seu ofensor e o feto ou embrião é a recordação viva de um ato covarde cuja lembrança põe em risco a saúde psicológica da gestante.
Chegando à conclusão de que não seria justo prolongar o sofrimento da vítima e que o bem estar psíquico da gestante estaria acima até mesmo da vida de um ser humano em franco desenvolvimento, o legislador penal resolveu não considerar esse tipo de aborto como criminoso.

4. A vida como direito relativo
A vida é o mais importante bem jurídico do homem: quanto a isso não há qualquer discussão.
A grande questão é: quando, exatamente, a vida se inicia? Porque, só a partir daí é possível precisar o exato momento em que se inicia sua proteção legal.
Do ponto de vista religioso, a vida se inicia com a união do óvulo e do espermatozóide e é sagrada, nada justificando seu encerramento.
Do ponto de vista científico, a vida se inicia com a fixação, no útero, do ovo resultante da união do óvulo e do espermatozóide.
Nossa legislação não diz, expressamente, qual desses pontos de vista adotou. A lei se limita a dizer que a personalidade civil se inicia com o nascimento com vida e resguarda, desde a concepção, os direitos do ser em formação, chamado de nascituro.
Omitindo-se, a lei, sobre o exato momento em que se inicia a vida ou o que entende por concepção, a tarefa de dar essas respostas foi passada aos doutrinadores e à jurisprudência que, em sua grande maioria adotou o ponto de vista científico, até porque, se não fosse assim, a interrupção da gravidez tubária e a utilização de muitos métodos anticoncepcionais, tais como o DIU (impede a fixação do ovo no útero) e a “pílula do dia seguinte” (impede a ovulação ou a fixação do ovo no útero), seriam considerados abortivos e, portanto, proibidos.
Como já se disse, com o início da vida, inicia-se, também, sua proteção legal.
Entretanto, esse direito à vida não é absoluto e, tanto é verdade, que a própria Constituição admite a pena de morte nos casos de guerra declarada.
Também o Código Penal admite a pena de morte para o feto ou embrião que se constituir em risco à vida da gestante ou que for fruto de uma relação sexual levada a efeito através de violência ou grave ameaça, com a agravante, que esses seres ainda em formação nenhuma culpa têm.

5. O aborto seletivo
Quando o Código Penal entrou em vigor, no ano de 1.941, não haviam os modernos equipamentos de que hoje dispõe a medicina. Se antes não era possível saber o sexo do feto, hoje não só é possível sabê-lo, como é possível, através do exame ultrassonográfico em terceira dimensão, ver suas feições.
Atualmente, é possível, através de muitos exames, detectar várias anomalias no feto, tais como a síndrome de down, entre muitas outras doenças incuráveis, que acompanharão o ser até o fim de sua vida. Nos dias de hoje, com o avanço da medicina, é possível, até, submeter um feto ou embrião a uma intervenção cirúrgica.
Apesar de todo esse progresso científico a legislação continua a mesma do século passado, como se nada tivesse mudado: como se as mulheres continuassem parindo seus filhos em casa, sem anestesia, com a ajuda de uma parteira e curiosa por saber o sexo do filho até o momento do nascimento, torcendo para que ele não seja portador de nenhuma moléstia ou anomalia física ou mental.
À mulher estuprada é dado o direito de interromper a gravidez indesejada para poupá-la do sofrimento, mas por outro lado, esse mesmo direito não é dado à mulher que carrega um feto com alguma anomalia. Essa última terá que sofrer duplamente: sofrerá por ela e pelo filho até o dia da morte de um deles.
Não seria lógico e justo permitir-lhe o mesmo direito? Porque se permite que uma mulher interrompa a gestação de um feto ou embrião saudável, mas indesejado e não se dá o mesmo direito à mulher que gerou um filho desejado, mas irremediavelmente doente?
Em muitos casos, a própria gestante de um bebê portador de alguma anomalia não interromperia a gestação, mas, é preciso dar o direito à escolha. Afinal, é preciso lembrar que o ônus material e moral da criação de um filho problemático é dos pais e não daqueles indivíduos, associações ou instituições que muito gritam contra o aborto, mas pouco ou em nada se comprometem com essa questão.
Em outros países, o aborto é legal, em qualquer situação. São países conscientes de que a mulher tem o direito de escolha, ao menos de dar à luz a um filho saudável, nesse mundo tão competitivo, em que os indivíduos considerados normais e perfeitos já encontram dificuldade, que dirá um indivíduo que já nasce em desvantagem.
No Brasil, o aborto só é permitido nos casos já citados, mas o legislador fecha os olhos para uma realidade gritante: embora proibido, ele é realizado, como já dissemos, seja com a ajuda de um profissional ou não. E, pior, se o procedimento abortivo já é um risco, mesmo quando realizado por um profissional, esse risco é extremamente majorado quando realizado sem ajuda profissional e o resultado disso é um grande número de mortes de mulheres que se arriscam a realizar um aborto sozinhas, com a ajuda de algum medicamento ou com a ajuda de não profissionais.

5. Conclusão
Num país que se diz democrático, vale dizer, num país onde a vontade da maioria é que deve prevalecer, perguntamos: quem são os nossos legisladores para se colocarem acima dessa vontade?
O Direito não pode se quedar hipócrita como as pessoas. As pessoas a quem incumbimos a missão de falar pelo Direito não podem se deixar afetar pelas paixões pessoais, pois o compromisso dessas pessoas, que personalizam o Direito, é para com a sociedade como um todo, e não com um ou mais grupos que são apenas uma pequena parte dela.
Quanto à questão do aborto, melhor seria que nossos legisladores e administradores se ocupassem melhor da questão da prevenção, para que não se precisasse recorrer a esse expediente. Ideal seria que nossos governantes adotassem uma política séria de natalidade, de planejamento familiar e, principalmente, de paternidade responsável. Mas a realidade é que nossos governantes parecem não se preocupar muito com a questão da prevenção, em nenhum campo. Tampouco nossos legisladores.
Diante disso, não resta à mulher brasileira, grávida de um doente mental, ou pobre e já com uma extensa prole, recorrer às aborteiras de plantão, ou aos chazinhos milagrosos, ao cytotec ou, as mulheres mais afortunadas, que podem buscar a solução para seus problemas em uma clínica de alto padrão. O fato é que, decididas a fazerem o aborto, é certo que elas farão, independentemente de se tratar de um ato que fira a lei, a ética e a religião. E é fato, também, que muitas delas, especialmente as primeiras, morrerão em virtude disso.
Será que ninguém se pergunta porque uma mulher afronta a lei, correndo o risco de ser condenada e a religião, que a considera uma pecadora? Acreditamos que, talvez porque para essa mulher, decidida a fazer um aborto, em face de suas condições pessoais, um filho representaria um ônus muito maior do que todos aqueles medos, ônus esse que ninguém irá dividir com ela: nem o padre, nem o político, nem o médico, nem o advogado, nem o juiz e, muitas vezes, nem o próprio pai. Desde o momento da concepção, a única certeza da mulher é a que terá uma responsabilidade eterna e, não raro, exclusiva, responsabilidade essa que, muitas vezes, ela antevê que não poderá abarcar.
Ora, aborto não é cirurgia plástica, não é como trocar de roupa. Nenhuma mulher em sã consciência resolve fazer um aborto de caso pensado, como se resolvesse se submeter a um implante de silicone. Com raríssimas exceções, é uma decisão difícil e dolorosa, que sempre acompanhará a mulher.
Sejamos sensatos, pois trata-se de uma prática socialmente aceitável pela maioria das pessoas. Várias pesquisas já confirmaram isso. E, sobretudo, sejamos justos, ao reconhecer que o Código Penal admite o aborto de um feto saudável e inocente, apenas porque foi gerado em razão de um estupro ou de atentado violento ao pudor e, dessa forma, se constitui em uma ameaça à saúde psicológica da gestante.
Portanto, entendemos que a legalização do aborto é algo reclamado por nossa democrática sociedade. É questão social, de saúde pública e de justiça. Pouco importa se o feto é inviável, nesse caso com maior razão, ou se é viável e saudável.
Nossa conclusão é baseada na lei e na justiça. Nos abstemos aqui de abordar questões éticas e religiosas porque, nossa sociedade é composta de pessoas, dotadas desses valores e é justamente a maioria delas que, analisando e confrontando cada um desses valores, reclama a legalização dessa prática.
E, como já dissemos, se o direito deve refletir aquilo que nossa sociedade pensa, a outra conclusão não pode chegar o operador do direito, em que pese as opiniões e os argumentos de outros setores da sociedade.

Referências bibliográficas

COSTA Junior, Paulo José da. Curso completo de Direito Penal. 7 ed., São Paulo: Saraiva, 2000.

DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 5 ed., São Paulo: Renovar, 2000.

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LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Código Penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 1999. 15 ed. Vol. 1.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípio do Direito Político. São Paulo: Martin Claret, 2000. Trad. Pietro Nassetti.

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