A leitura caolha da pesquisa do IBGE sobre o salário dos juízes

Marcelo Dolzany da Costa*

Recente pesquisa do IBGE sobre o mercado de trabalho volta a escancarar as diferenças salariais no Brasil. Uma leitura apressada das conclusões da pesquisa seria a de que “entre as cinco profissões mais bem pagas no País, três estão na área da Justiça”. Os salários de ministros, desembargadores, juízes, promotores e defensores estariam até superiores aos de diretores das empresas privadas.

A remuneração de juízes no Brasil é tão conhecida quanto as próprias decisões que eles proferem: são escritas, assinadas e publicadas no Diário Oficial, logo dispensaria o trabalho do IBGE. O limite de R$ 17 mil brutos constitucionalmente assegurado aos juízes do Supremo Tribunal Federal pode ter impressionado o pesquisador, que talvez desconheça que a Constituição assegura o mesmo ao presidente da República e parlamentares federais. A Emenda 19, de 1998, estipulou que nenhum outro servidor público ganharia mais do que aqueles onze brasileiros de toga que todos os anos julgam mais de 120 mil processos a discutir a vida, a liberdade e o patrimônio de outros 170 milhões de brasileiros. Se tem gente no Brasil ganhando mais do que eles é coisa que o IBGE não conseguiu apurar. O raciocínio também vale para a iniciativa privada já que a pesquisa colocou no mesmo saco diretores, gerentes de empresa e trabalhadores rurais.

De uns tempos para cá, a Receita Federal teve legalmente assegurado o acesso aos dados financeiros pessoais dos cidadãos, dispensada a autorização judicial. Contribuintes com notórios sinais de riqueza costumavam apresentar-se ao Fisco com pobreza franciscana ao declarar seus rendimentos e patrimônios. O Brasil das colunas sociais não era o mesmo dos cadastros fiscais. Agora é a pesquisa do IBGE a revelar a contradição.

Publicações especializadas em mercado de trabalho atribuem rendimentos bem superiores a executivos, diretores e gerentes na iniciativa privada. Outras publicações de leitura mais leve mostram beldades e atletas com cachês infinitamente mais polpudos que o contracheque daqueles senhores circunspetos de Brasília. A mais conhecida modelo brasileira no Exterior declara sua fortuna pessoal em US$30 milhões; um simples desfile seu basta a um ato de caridade extrema com o Programa Fome Zero. Um grande clube de futebol mineiro quase perdeu metade dos craques quando seu presidente bateu o martelo e disse que “ninguém no time ganharia mais de R$50 mil por mês”. Há outros exemplos, mas parece que o IBGE só lê o Diário Oficial para trombetear que os “ricos” do País usam toga.

A pesquisa do IBGE parece reconhecer o devido valor ao trabalho dos juízes, segundo ela bem mais aquinhoado que a turma dourada que faz a alegria da São Paulo Fashion Week ou aquela outra que diverte a massa nos estádios. Não faço idéia de quanto ganha um charmoso apresentador da tevê, mas isso nem o IBGE tem curiosidade em pesquisar.

Soube de um candidato à magistratura que, tão logo eliminado nas últimas provas do concurso, aceitou um convite de empresa multinacional de consultoria que hoje lhe paga pelo menos o triplo do que receberia caso insistisse em perseguir a toga. Sei de jovens juízes que, desiludidos com os baixos salários e as grandes responsabilidades da carreira, pediram dispensa e voltaram à advocacia. Outros, tão logo aposentados e vencida a primeira causa na volta à advocacia, confessaram-se assustados com honorários fabulosos que os clientes lhes pagavam. Mas também sei de juízes que trabalham horas a fio na solução de uma causa e depois vertem seus últimos esforços diários a formar gerações nas faculdades em troca de uma satisfação do dever cumprido. Aos últimos pouco importa o vencimento; vale a vocação.

Para não dizer que só vejo exemplos de dedicação do lado de cá, lembro que alguns ministros de Estado e presidentes de Banco Central já abriram mãos de salários em Wall Street ou dos dividendos em seus bancos. Outros, vocacionados ao palco, até já diminuíram seus espetáculos para conformar-se aos R$12,7 mil mensais de seus cargos. “Tudo pela Pátria”, diria o anedotário.

Uma leitura caolha da pesquisa é a de que o salário de juízes é a causa de nossas desigualdades sociais. A conclusão lembraria a propaganda de Goebbels, para quem os problemas da Alemanha estavam na concentração de renda nas mãos dos judeus.

Suspeito que a Justiça brasileira nem “caixa-preta” tenha porque ela mais parece um daqueles planadores de quem se dispensa gravador de vôo. As cartas de navegação dos juízes são tão públicas que dispensam peritos para decifrá-las. Por isso não me arrependo de minha escolha profissional. Tenho certeza de que muitos juízes voltam para casa todos os dias com a satisfação de que fizeram o melhor de si para diminuir as desigualdades de que fala a pesquisa do IBGE. Eles dispensam os holofotes das passarelas e dos gramados. As tragédias de Presidente Prudente e Vitória são provas de que “não é só em Berlim que ainda há juízes”.

Marcelo Dolzany da Costa é juiz federal em Belo Horizonte (MG) e ex-juiz do Tribunal da ONU para os Crimes Graves de Timor Leste.

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