Tiro no pé – Jornalistas batalham para revogar lei que os protege

por Victor Gabriel Rodriguez

[Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo desta terça-feira (4/3)]

O julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que incide sobre a Lei de Imprensa, enche de esperanças os jornalistas, ansiosos em ver declarada a inconstitucionalidade de um resquício da idade das trevas das liberdades públicas. Posso demonstrar aqui que, no jogo de equilíbrio necessário entre liberdade de informação e direitos individuais, a Lei de Imprensa é o menor dos males.

Fixe-se, antes, a premissa de que a Lei de Imprensa só excepcionalmente foi utilizada como repressora da liberdade de expressão. Desde a independência, o imperador implantou um método bem característico de perseguição aos jornalistas impertinentes: liberalismo na lei e repressão nos porretes das milícias do regime.

Foi essa a filosofia da Lei de Imprensa atual: feita às vésperas do AI-5, delegou às normas de segurança nacional — ou ao arbítrio puro — a repressão às vozes dissonantes. Proponho a comparação de cinco institutos da lei reservada aos jornalistas e da lei geral (Código Penal, no caso), para ilustrar o que digo.

Primeiro, as penas dos crimes contra a honra. Tem sido dito que as penas previstas para os delitos de calúnia, injúria e difamação cometidos pelo jornalista (arts. 20, 21 e 22 da Lei de Imprensa) são mais graves do que as cominadas para os crimes equivalentes, no Código Penal (arts. 140 a 142). Tal afirmação é fruto, perdoem, de pura falta de técnica. Quem a faz simplesmente desconsidera que, se o juiz, à falta de lei específica de imprensa, condenar um jornalista na lei comum, será obrigado a aplicar o dispositivo genérico do Código Penal e então aumentará a pena em um terço, porque o fato é cometido “na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”, ou simplesmente a aplicará em dobro, se entender que “o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa” (art. 141 do Código Penal).

Agora é só fazer contas.

Segundo e terceiro pontos: a decadência e a prescrição. São dois institutos que determinam prazos para que, respectivamente, o ofendido e o Estado ajam para garantir seu direito de viabilizar a punição. Ao perseguido interessa, portanto, que a lei preveja prazos mais exíguos. Assim é: no Código Penal, a decadência ocorre em seis meses (art. 103), enquanto a Lei de Imprensa reduz o prazo a três meses (art. 41), na vantajosa contagem a partir da data de publicação. O mesmo na prescrição: o crime de calúnia prescreve abstratamente, na legislação comum, em oito anos (109, IV, Código Penal). Favoravelmente ao jornalista, o lapso é de dois anos (art. 41 da Lei de Imprensa).

A previsão de defesa prévia é o quarto ponto. Pela especial condição do jornalista, a Lei de Imprensa prevê um direito de defesa a mais àqueles processados por suas linhas (art. 43).

Na legislação comum, não há oportunidade equivalente. O último ponto é a responsabilidade penal sucessiva. De origem nacional, o instituto determina o responsável pelo crime por um modo especial, de acordo com uma hierarquia presumida. Esse sistema está previsto hoje nos artigos 37 e 38 da Lei de Imprensa e é adotado em eficazes legislações de construção recente, como o Código Penal Espanhol, de 1995. Se bem utilizado -e aí sim é necessária a revogação do parágrafo 3º do art. 37 da Lei de Imprensa-, o instituto estreita os limites punitivos do Estado em relação aos profissionais da comunicação, pois veda a obrigatória consideração de concurso de agentes da lei comum (arts. 13 e 29 do Código Penal).

Com tudo isso, nem sequer toquei no assunto do direito a cela especial do jornalista ou no impedimento à sua prisão processual (art. 66 da Lei de Imprensa), ou nas condições de fixação da pena (art. 69), ou nas estritas margens da reincidência (a reincidência específica do art. 73). Não abordei a questão indenizatória, em que, à diferença da legislação comum, a Lei de Imprensa prevê a cessação da responsabilidade civil (art. 49) e, ainda, faz uma limitação do valor de reparação de dano (art. 51, I a IV), em valores irrisórios se comparados aos fixados pelas regras do Código Civil.

Não se iludam os jornalistas: na mais livre das democracias, sempre haverá instrumentos estatais de controle aos abusos de liberdade, porque esta não existe na forma absoluta.

A suspensão da eficácia da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal já conduz a que sejam aplicadas as regras comuns aos delitos ou meros abusos da informação. E, se me permitem a conclusão, será o momento em que a classe jornalística notará haver batalhado por revogar a lei que a protegia.

Revista Consultor Jurídico

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