por Raul Haidar
Há vários anos venho comentando na revista Consultor Jurídico os diversos projetos que diferentes governos encaminham ao Congresso a pretexto de promover uma tal de “Reforma Tributária”. Em todos eles tenho apontado os aspectos que me parecem falhos, na esperança de chamar a atenção dos estudiosos e especialmente dos nossos Congressistas.
Como se sabe, para o bem ou para o mal deputados e senadores são quem nos representam e só eles podem dar andamento a qualquer proposta de emenda constitucional. A única Reforma Tributária que merece esse nome ocorreu com a Emenda Constitucional 18/65, complementada pelo Código Tributário Nacional, a lei 5.172 de 25/10/1966.
As diversas alterações ocorridas de lá para cá, especialmente após a Constituição de 1988, não representam uma “reforma”, mas apenas ajustes e adaptações. Esses “remendos” só serviram para complicar o “sistema”, tornando-o o cipoal em que hoje todos nos enredamos.
Como advogado tributarista há mais de 3 décadas, tenho me beneficiado dessa bagunça toda, pois meu escritório, que cuida exclusivamente de contencioso tributário, vai muito bem, obrigado. Esse conforto profissional, no entanto, não me impede nem me constrange de apontar o caos em que vivemos.
A proposta encaminhada semana passada ao Congresso e que já foi até elogiada por ilustres personalidades, inclusive alguns líderes de entidades cuja representatividade é quase nula, contém vários equívocos e impropriedades.
Primeiro, que não explicita o atendimento das 3 grandes necessidades do país: redução da carga tributária, diminuição sensível da burocracia e segurança jurídica nas relações tributárias.
Um dos pontos básicos da proposta é a criação do IVA — Imposto sobre Valor Agregado, de competência federal, que iria substituir a Cofins, o PIS, a Cide e o salário-educação.
O artigo 1º da PEC altera o artigo 153 da Constituição Federal para acrescentar um inciso, o VIII. O “caput” desse artigo 153 define quais são os impostos de competência da União, atualmente apenas 7, um dos quais ainda não regulamentado (grandes fortunas).
O inciso VIII, que se pretende acrescer ao atual artigo 153 da Constituição tem a seguinte redação:
“VIII – operações com bens e prestações de serviços, ainda que as operações se iniciem no exterior.”
Esse inciso está muito mal redigido, pois o conceito de “bens” é muito mais amplo que o de “mercadorias” ou “produtos industrializados”, já consagrados respectivamente no inciso IV do mesmo artigo 153 (referindo-se ao IPI) e no inciso II do artigo 155 (que se refere ao ICMS).
Ao criar um IVA federal mantendo o IPI e o ICMS, permite-se uma confusão maior do que aquela que já temos hoje, pois um Imposto sobre Valor Agregado que incida sobre “bens e prestações de serviços”, nada mais é que um imposto sobre o consumo. E nós já temos para isso o IPI, o ICMS e o ISS.
Um leigo, mesmo auto-denominado “consultor tributário”, pode aceitar como “novidade” ou “inovação” esse tal IVA. Um ex-ministro formado em medicina também pode. Mas profissionais da área tributária, com formação acadêmica pelo menos no nível de graduação em escolas onde tributos são estudados (direito, contabilidade e economia) não podem cometer esse engano. Também não se pode admitir um debate ideológico. A questão é técnica, é científica.
Ainda que haja alguns países com esquisitices tributárias, não nos parece que sirvam de exemplo. Alguém por aí andou dizendo que na Finlândia existe um imposto sobre aquecedores, que na Espanha haveria um sobre a quantidade de janelas dos edifícios. Pouco nos importa.
O IVA é quer queiram ou não, um imposto sobre o consumo. E no mundo atual só se cobram impostos sobre consumo, patrimônio e renda.
Por isso mesmo, não tem sentido um IVA federal que possa coexistir com o IVA estadual, que usa o codinome de ICMS e nem com o IVA municipal, cujo apelido é ISS. Menos ainda com o IPI, também federal.
De igual forma, se determinado “bem”, que é também um “produto industrializado” e uma “mercadoria”, sofre a incidência de um imposto sobre o consumo, não pode ele ser concomitantemente tributado por um imposto que incida sobre propriedade. Ou bem se tributa o consumo, ou bem se tributa a propriedade. Se há dois impostos de naturezas diferentes sobre o mesmo bem, ele, na prática, está sendo confiscado. E usar tributo para fazer confisco, diz a CF, é proibido.
Tal hipótese de confisco já vem ocorrendo com a cobrança do IPVA — Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores — que é de competência dos Estados, mas cuja arrecadação é dividida com os municípios.
O IPVA jamais poderia ter sido criado, pois tributa como propriedade aquilo que é tributado em duplicidade pelo IPI e pelo ICMS, como um bem de consumo, ainda que supostamente “durável”. Se existe lógica nisso, cobre-se o IPE (imposto sobre propriedade de eletrodomésticos) pois há geladeiras que duram mais que automóveis.
Um desses “consultores tributários” que andam por aí já defendeu até o aumento do IPVA para “desestimular” o aumento da frota de automóveis.
Se ele fosse dado à leitura de jornais teria descoberto que os automóveis são importantes instrumentos do desenvolvimento econômico, não só pela geração de empregos, mas por inúmeros outros fatores. Usa o “consultor” exemplos da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos, países onde há transporte coletivo razoável e onde a tributação dos veículos é muito menor e onde não existe IPVA…
Fala-se em cobrar o ICMS no destino, o que é correto, mas que já está sendo distorcido há muitos anos com esses mecanismos de substituição tributária hoje existentes.
Se o IVA e o ICMS são impostos sobre o consumo, parece claro que devem ser pagos pelo consumidor. E o mais lógico é que o seja onde o consumo ocorra, ou seja, no destino. Todavia, ao criar um mecanismo de redução da alíquota que vai depender de um espaço de quase dez anos para se efetivar a mudança, a proposta acaba por ampliar a insegurança existente, pois que nesse espaço de tempo a economia mundial poderá nos obrigar a uma revisão completa dessas questões, sob pena de sermos “engolidos” pelos países onde a carga tributária já é bem menor que a nossa.
O nosso atual “sistema” tributário é incomparável, incompreensível e intolerável.
INCOMPARÁVEL, por exemplo, com o Chile, cuja economia é menor do que a do município de São Paulo ou com aqueles países de 15 ou 20 milhões de habitantes, que não estão entre as 20 maiores economias do planeta. Já vi um “consultor” querendo comparar nossos tributos com os da Finlândia…
INCOMPREENSÍVEL é um sistema onde milhões de assalariados ficam na fila da restituição, porque pagaram imposto de renda a maior. Bastaria corrigir a Tabela do IRPF, ajustando as deduções de dependentes e educação e não haveria o que restituir, a não ser em casos excepcionais.
INTOLERÁVEL é uma tributação que já se aproxima dos 40% do PIB e que tenhamos um Congresso que, em vez de nos representar, resolve nos explorar, admitindo novos aumentos e aceitando discutir uma reforma tributária que não traga, como primeiro ponto, uma redução dessa carga.
Como se percebe, a Reforma Tributária ainda vai dar grandes discussões. Será melhor para todos se essas discussões forem racionais, sem colocações preconceituosas, de preferência por pessoas habilitadas tecnicamente ao debate. Debates ideológicos, passionais, emocionais ou irracionais, já possuem seu ambiente natural: o Congresso Nacional. Cada profissional da área tem, pois, o direito e o dever de encaminhar aos deputados ou senadores os resultados de seus estudos, seja através de entidades de classe ou mesmo na condição de simples eleitor.
Revista Consultor Jurídico