por Alessandro da Silva
Nos últimos dias nosso meio jurídico ficou estarrecido com a revelação de que um juiz federal foi vítima de violência e abuso de autoridade, ao ser preso e algemado arbitrariamente por policiais de elite da Polícia Civil do Rio de Janeiro (Core). Como era de se esperar, as reações foram imediatas, indignadas e de todo justificadas.
Várias associações corporativas de juízes, procuradores e advogados do país publicaram notas de repúdio à conduta ilegal e truculenta daqueles que deveriam garantir a segurança dos cidadãos. O magistrado recebeu a solidariedade de ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, de desembargadores e de colegas de todo o Brasil. O Conselho Nacional de Justiça acolheu pedido de repúdio à arbitrariedade e de acompanhamento formal do caso pelo corregedor nacional de Justiça na corregedoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Dentre outras manifestações, os juízes de Ribeirão Preto destacaram que a polícia não está acima da lei e os juízes de Alagoas afirmaram que os cidadãos estão em apuros com a segurança pública em nosso país. Os autores da ofensa foram afastados da polícia e suas armas foram recolhidas.
No dia 13 de fevereiro foi realizado ato público de desagravo ao magistrado atingido, do qual participaram mais de cem pessoas, em especial juízes e outros operadores do direito. Os discursos tiveram como traço comum a preocupação com o desrespeito às prerrogativas do Poder Judiciário e um alerta aos cidadãos para que denunciem as arbitrariedades.
De todo esse episódio, uma pergunta não quer calar: “Se a polícia trata assim um juiz federal, como são tratados os demais cidadãos?”.
Em verdade não se faz necessário grande esforço imaginativo. Basta contar os corpos após as operações nas favelas cariocas. Basta ter ouvidos para os lamentos dos que sobreviveram. Basta observar a idade dos mortos, como o menino Jorge Cauã da Silva Lacerda: 4 anos. Causa da morte: um tiro de fuzil no peito. Vitimado durante operação policial do mesmo Core na favela da Coréia, em outubro passado. Morreu dentro da casa da avó. Nos braços da mãe.
O pequeno Jorge foi sepultado no cemitério do Irajá. Não havia autoridades presentes. A última homenagem foi organizada pelo coveiro, que abriu o pequeno caixão branco à beira da sepultura e pediu que os presentes fizessem fila para olhar o menino. Passou a ser mais um número no Mapa da Violência no Brasil. Mera estatística. Raras foram as manifestações de repúdio.
Adam Smith já dizia que:
Por intermédio da imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando, assim, alguma idéia das suas sensações, e até sentido algo que, embora em menor grau, não é inteiramente diferente delas1.
Tal capacidade seria a fonte da solidariedade para com a desgraça alheia, pois possibilitaria ao espectador conceber o que o indivíduo afetado sente.
Mas não só as circunstâncias de tristeza e dor teriam a característica de despertar nossa solidariedade. Qualquer paixão que proceda de um objeto na pessoa primeiramente atingida, inclusive alegria e euforia, geraria uma emoção análoga no peito do espectador2.
A esta capacidade de partilhar dos sentimentos do outro, colocando-se em seu lugar, Smith denominou “simpatia”. Fundamental para o seu despertar seria o conhecimento das causas que originaram o sentimento de dor ou de alegria, especialmente da situação que os provoca3.
Do ponto de vista daquele que é objeto da simpatia, haveria um sentimento mútuo, pois lhe seria agradável perceber a solidariedade do outro e, pelo contrário, causaria choque a percepção de indiferença.
Tais esclarecimentos talvez expliquem porque nos solidarizamos de modo tão profundo com o magistrado vítima da arbitrariedade e praticamente ignoremos os inúmeros casos de abusos policiais, que vão desde extorsões e agressões até execuções sumárias, especialmente em comunidades carentes.
No primeiro caso pensamos: “poderia ser eu”, já no segundo não conseguimos nos colocar no lugar dos atingidos.
Esse mesmo sentimento nos deixa impressionados durante dias com os freqüentes massacres de dezenas em escolas e shoppings americanos, mas nos faz passar despercebida a carnificina diária de centenas no Iraque, no Afeganistão ou em Darfur.
Conquanto esse tipo de sentimento seja compreensível, a virtude não está no comportamento mediano, mas sim na sua superação, conforme lição do filósofo escocês:
Do mesmo modo como no grau comum das qualidades intelectuais não há talentos, no grau comum da moral não há virtudes. A virtude é a excelência, algo excepcionalmente grande e belo, que se eleva muito acima do que é vulgar e ordinário. As virtudes amáveis consistem no grau de sensibilidade que surpreende pela sua refinada e inesperada delicadeza e ternura4.
Aos operadores do direito, em especial aos juízes, pela importância da função que exercem na sociedade, cabe um compromisso ético, buscando sempre o aperfeiçoamento da noção de justiça, colocando-se no lugar também daquele que é diferente. Somente aí haverá virtude, pois solidariedade com os iguais não passa de sentimento ordinário.
É com esse espírito que faço um desagravo à memória de Jorge Cauã Silva de Lacerda, cuja vida foi precocemente ceifada pela ação dos representantes do Estado. Tragédia que pouco nos comoveu.
Que a memória dessa criança sirva de incentivo à denúncia por parte daqueles que são vítima de violência policial e estimule os operadores do direito a se mobilizarem na defesa dos direitos e garantias dos cidadãos, em especial dos desfavorecidos!
Notas de rodapé
1. SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 06.
2. Idem, p. 07.
3. Idem, p. 09.
4. Idem, p. 26.
Revista Consultor Jurídico