Lei truncada – Juiz não tem de se submeter ao Estatuto da OAB

Se a lista de inimigos da OAB de São Paulo tivesse ranking, o desembargador Augusto Francisco Mota Ferraz de Arruda figuraria entre os primeiros colocados. Ferraz de Arruda, que atua na 13ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, defende a tese de que nenhum juiz tem obrigação de receber advogado em seu gabinete.

As posições do desembargador ainda não haviam provocado tantas reações até serem expostas num artigo publicado na revista Consultor Jurídico — clique aqui para ler o artigo. Os termos do artigo indignou a Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), que levou o caso ao Conselho Nacional de Justiça. O colegiado decidiu transformar o Pedido de Providências em Reclamação Disciplinar e encaminhá-la à Corregedoria Nacional de Justiça.

“Não recebo advogado que venha tratar de processo que está concluso para voto”, reafirma o desembargador nesta entrevista à Consultor Jurídico. Ferraz de Arruda reclama que a direção da Aasp fez do “sopro uma ventania e da ventania um furacão”. Sustenta, mais uma vez, que gabinete de desembargador não é fórum nem cartório judicial. Também não é sala de audiência pública para atendimento de advogado.

Para ele, a prática do lobby impede o sigilo e rouba o tempo que o juiz teria para estudar o processo e redigir o voto. Ao contrário daquilo que têm bradado os advogados, Ferraz de Arruda acredita que não está violando nenhuma lei, porque, para ele, o convívio entre advogado e juiz não tem amparo na legislação processual em vigor.

A OAB de São Paulo discorda. Diz que a conduta do desembargador viola as prerrogativas profissionais dos advogados, o que significaria cerceamento de defesa dos acusados. Para a OAB-SP, esse tipo de discussão mostra que é preciso aprovar projeto de lei que criminalize a violação das prerrogativas profissionais dos advogados.

A Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) também entrou no debate, mas para defender Ferraz de Arruda. A entidade apontou que é regra nas nações livre o juiz não receber advogado em seu gabinete.

Para Ferraz de Arruda, que trabalhou como advogado antes de ingressar na magistratura, não há incoerência em dizer que tem respeito à advocacia, mas não recebe o representante da defesa em seu gabinete. “Seria incoerente se devotasse respeito à advocacia, mas franqueasse atendimento privilegiado e unilateral para um advogado em detrimento do outro”, explica.

O desembargador reclama ter sido condenado pelo CNJ sem direito a defesa e ataca a Aasp, autora da reclamação, por buscar apenas defender interesses corporativos, radicais e fora da realidade. “Os tempos são outros. Aquela advocacia inteligente, ética e cavalheiresca está chegando ao seu fim, como estão pondo fim naquela magistratura paulista que fazia a jurisprudência vigente no país. A proliferação das faculdades de Direito aviltou o próprio Direito, banalizou a Justiça e transformou a advocacia numa mera prática burocrática”, afirma.

Leia a seguir a entrevista.

ConJur — O senhor recebe advogados em seu gabinete?

Ferraz de Arruda — Não recebo advogado que venha tratar de processo que está concluso para voto e, portanto, encerrada, processualmente falando, qualquer possibilidade de o advogado, de forma privada e unilateralmente, tentar influenciar ou mudar a verdade dos fatos que está documentada no processo.

ConJur — Por quê?

Ferraz de Arruda — Quando o processo está concluso para o juiz proferir seu voto, não é mais permitida qualquer intervenção, ainda que escrita. O que vai fazer então o advogado no gabinete do desembargador para lhe falar oralmente o que não mais é permitido que o faça por escrito? É aí que está a grande questão! É aí que estão as verdades inconfessáveis quando se trata de causas que envolvem vultosas quantias em dinheiro. Posso eu então gravar a conversa com o advogado ou tomá-la por termo? Mas de que adianta se a legislação processual não permite que a tal conversa vá para os autos? Esta condenável prática que só é exercida nos grandes feitos tem de acabar. Entendo que esta prática ofende o princípio do contraditório, da imparcialidade, eqüidistância das partes, enfim, afronta os fundamentos do devido processo legal.

ConJur — Ofende de que maneira?

Ferraz de Arruda — Não está prevista na legislação processual constitucional em vigor esta conduta do advogado. O artigo 35, inciso IV, da Loman, diz que o juiz deve tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quando se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. Veja que o Estatuto da Magistratura fala do atendimento dos que procurarem o juiz, ou seja, qualquer pessoa e a qualquer momento não só pode, como deve procurar o juiz quando o caso exigir urgência e possa ser solucionado de plano. É bem diferente do que está dizendo a Aasp na sua reclamação. Ela está dizendo que o desembargador está obrigado a receber advogado em audiência privada e unilateral para tratar de processo que lhe está concluso ou já esteja em pauta para julgamento.

ConJur — E se o advogado o procura para esclarecer algum ponto que ficou meio nebuloso no processo?

Ferraz de Arruda — Escreva! Qual a razão da existência em nosso Direito processual do elementar princípio que diz “o que não está no processo, não está no mundo”? Posso eu, como juiz, dizer no dia do julgamento que compareceu no meu gabinete o advogado de uma das partes e me contou que aquilo que está nos autos não é verdade e que seu cliente está sendo processado injustamente? É válida processualmente esta decisão diante da regras do nosso Direito processual? O advogado que procura o desembargador antes do julgamento não vai esclarecer mais do que é possível esclarecer em sustentação oral pública e sobre o crivo do contraditório.

ConJur — O senhor acha que apenas o memorial é suficiente para o advogado reforçar a defesa do cliente?

Ferraz de Arruda — A judicatura de segundo grau é muitíssimo diferente da judicatura de primeiro grau. Em segunda instância, não é necessário e nem é exigido pelas leis processuais em vigor o contato direto com os advogados. O recurso se processa no juízo a quo e chega em segunda instância pronto para ser reexaminado. Nessa etapa, a lei processual permite ao advogado que junte memoriais aos autos e que faça sustentação oral. Com tudo isso, por que razão deve o juiz receber reservadamente o advogado em seu gabinete para que este lhe diga ao pé do ouvido o que ele não pode dizer por escrito nos autos? Friso e pergunto: estas audiências orais, no recesso do gabinete, quando o processo já entrou na pauta para julgamento e a parte contrária nada mais pode fazer, são lícitas? Não há a faculdade de sustentação oral pública? Por que então a privada e reservada?

ConJur — O senhor é muito procurado por membros do Ministério Público?

Ferraz de Arruda — Não. O Ministério Público se manifesta por meio de parecer.

ConJur — Por que resolveu escrever o artigo e tornar pública sua polêmica opinião?

Ferraz de Arruda — Comecei o meu artigo ressaltando que era “uma opinião para os desembargadores paulistas refletirem sobre a questão de receber advogados no gabinete de trabalho que venham tratar de interesses da parte”. Assinalei que “de outra parte está começando a se tornar uma indevida rotina o fato de alguns juízes e desembargadores aposentados, se prevalecendo da anterior condição, ingressarem livremente nos prédios dos gabinetes dos desembargadores ou nas salas das becas para interceder em favor de partes que estão em litígio”. Ressaltei no final do texto que, “nesses tempos difíceis de arapongas, lobistas e de sensacionalismos da imprensa, urge que nós desembargadores paulistas paremos para refletir sobre esta duvidosa prática que vem por quebrar os princípios processuais da eqüidistância do juiz e do equilíbrio entre as partes em litígio”. Enfim, expus o meu ponto de vista, pedindo aos colegas desembargadores para refletirem sobre a minha opinião, de tal sorte que não foi um panfleto revolucionário incitando os colegas a não mais receberem advogados, até porque todos os desembargadores são homens intelectualmente preparados, de moral irretocável e ciosos da função jurisdicional.

ConJur — O senhor afirmou, no seu artigo, que gabinete de juiz não é espaço público de livre ingresso das partes, mas um espaço privado.

Ferraz de Arruda — O gabinete de trabalho de um desembargador não é uma repartição pública, cartório ou departamento administrativo do Estado. É local público privado destinado ao desembargador para que ele trabalhe nos processos sem ser importunado por quem quer que seja. É um local privativo do desembargador, assistentes e escreventes e, até por sua natureza, é obrigatório que seja indevassável. Nos computadores dos gabinetes estão armazenados milhares de votos e decisões proferidos nos processos que irão a julgamento e que não podem ser, de forma alguma, revelados antes disso. O que quer o presidente da Aasp é inadmissível, impraticável, ilegal e inconstitucional. A interpretação que ele empresta ao artigo 7º, inciso VIII, da Estatuto da OAB, além de superficial, não condiz com a realidade dos fatos. É como pretender transformar o prédio do gabinete dos desembargadores num fórum judicial. Não é porque o dispositivo está lá palpitando ficção que deve ser aplicado cegamente. O princípio da norma é o de que ou ela vale para todos ou não vale para ninguém. Para mim, esse dispositivo é inconstitucional porque uma norma de natureza formal orgânica, portanto, estatutária, não pode criar deveres e obrigações para terceiros não associados ou não pertencentes à classe regulamentada, como não pode uma criar deveres processuais para o juiz, o que a própria legislação processual constitucional abomina. Os magistrados têm o seu próprio estatuto e se sujeitam apenas às normas nele contidas, não lhes cabendo a subserviência humilhante que se quer de postá-los perante o advogado para ouvi-lo falar de processo que está prestes a ser julgado.

ConJur — Antes de ser juiz, o senhor foi advogado. Ia até o gabinete dos juízes para conversar?

Ferraz de Arruda — Trabalhei durante os cinco anos de faculdade de Direito no escritório de advocacia de Theotônio Negrão e Paulo Fernando Lopes Franco. Formado, fui contratado para advogar no escritório dos professores José Frederico Marques, Manuel Alceu Affonso Ferreira, Helena Frascino de Mingo e Priscila Maria P. Correia da Fonseca. Tive estreita convivência com notáveis da advocacia. Com eles, aprendi a difícil, árdua e sublime arte de advogar. Nunca me ensinaram a ganhar processo, como se diz vulgarmente, no grito. Aprendi com eles o mais absoluto respeito ao advogado pelo que ele representa para um Estado que se pretende democrático de Direito. Honrei e dignifiquei a beca de advogado tanto quanto procuro honrar e dignificar a toga de magistrado. Hoje, os tempos são outros. Aquela advocacia inteligente, ética e cavalheiresca está chegando ao seu fim, como estão pondo fim naquela magistratura paulista que fazia a jurisprudência vigente no país. A proliferação das faculdades de Direito aviltou o próprio Direito, banalizou a Justiça e transformou a advocacia numa mera prática burocrática.

ConJur — O senhor diz que tem muito respeito para a advocacia. Sua posição não é contraditória?

Ferraz de Arruda — Devoto profundo respeito aos advogados porque são eles que defendem tecnicamente os direitos da parte diante do juiz. Sem advogado, não há liberdade, não há processo, não há contraditório, não há Justiça. Haveria inquisição. Não há incoerência alguma da minha parte em devotar profundo respeito à advocacia e ser contrário a esta falsa prerrogativa dos embargos auriculares pela simples razão de que do outro lado está o advogado da parte contrária. Seria incoerente se devotasse respeito à advocacia, mas franqueasse o atendimento privilegiado e unilateral para um advogado em detrimento do outro.

ConJur — De que maneira o senhor recebeu a atitude da Aasp de representá-lo no CNJ?

Ferraz de Arruda — Por trás da reclamação, há o jogo de poder. O seu presidente, com a atitude tomada, busca a prevalência de uma hermenêutica corporativista, radical e fora da realidade dos fatos no sentido de que o juiz se transforme num mero prestador de serviço público posto pelo Estado à disposição do advogado para atendê-lo em qualquer circunstância e a qualquer tempo, em manifesto e inconstitucional ofensa ao princípio do contraditório e do dever legal do juiz de “assegurar às partes igualdade de tratamento” (artigo 125, inciso I, do Código de Processo Civil). A justificativa de defesa das prerrogativas também esconde o poder de fato, a violência simbólica de que nos falava o falecido e notável cientista social francês Pierre Bordieu. A violência simbólica, a intenção manifesta de reprimir a manifestação de pensamento e obstar o pleno exercício da liberdade de informar se revelam nessa instrumentação do poder oficial em benefício de grupos, facções ideológicas e até de pessoas. Que trágica ambivalência, senhor presidente da Aasp!

ConJur — Para o CNJ, a sua posição fere a Loman e o Estatuto da Advocacia. O que senhor pretende fazer quanto a isso?

Ferraz de Arruda — A decisão do CNJ é de natureza administrativa. Só quem pode dizer se firo ou não a Loman ou o Estatuto da advocacia é o Poder Judiciário provocado por um advogado. Por isso, por enquanto, não tenho nada a fazer. Apenas aguardar a minha intimação formal pela Corregedoria Nacional de Justiça e me defender. Quero ressaltar apenas que fui condenado pelo CNJ sem que me dessem o sagrado direito constitucional de defesa. O conselho permitiu que um advogado fizesse sustentação oral acusatória contra mim sem que eu tivesse sequer ciência do que estava se passando lá. Dizem até que ele foi contundente e que não economizou adjetivos. É muito fácil julgar assim, sem a presença do advogado da parte contrária, não é mesmo? É isso que o advogado presidente da Aasp deseja? Que eu julgue o processo ouvindo só uma das partes? O fato é que CNJ está se transformando inconstitucionalmente num tribunal administrativo que legisla, julga e executa as suas decisões enquanto os falsos arautos da liberdade e da democracia se preocupam em dar uma extraordinária dimensão ao que escreveu um modesto desembargador paulista.

ConJur — O senhor conhece outros magistrados que compartilham da mesma opinião?

Ferraz de Arruda — Vou citar o Anuário da Justiça 2008, nas páginas 57 e 137. Na primeira, o ministro Joaquim Barbosa responde à pergunta se recebe advogados: “Não atende a todos os pedidos de audiência. Ele informa que dificulta, deliberadamente, o acesso de advogados a seu gabinete. Entende que receber advogado privadamente é inconstitucional, por violar o devido processo legal e a igualdade de armas entre as partes litigantes — o que favoreceria grupos e interesses hegemônicos”. Na segunda, quem responde à mesma pergunta é o ministro do STJ Francisco Falcão: “Originário do quinto constitucional da advocacia, o ministro é o campeão de reclamações dos advogados que atuam no STJ. Advogados dizem que é impossível marcar uma audiência com ele”. Quero também citar o Anuário da Justiça Paulista, na página 270, a respeito da 13ª Câmara de Direito Público, onde exerço a judicatura de segundo grau: “A 13ª Câmara é composta de desembargadores que fundamentam com vasta jurisprudência os votos, o que enriquece os debates. Não há inclinação para o Estado ou cidadão. Pelo contrário, a aparência é a de as decisões serem imparciais”.

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por Fernando Porfírio
Revista Consultor Jurídico

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