Justiça Internacional – Crimes contra o meio ambiente estão acima da soberania

por Manoel Leonilson Bezerra Rocha

Atualmente, em relação às questões ambientais, o homem vê-se em um conflito, um embate que trava consigo mesmo diante da dificuldade de se harmonizar ecologia com economia. Aliás, esta última tem demonstrado, fartamente, que é a grande inimiga da primeira, apesar de ambas possuírem a mesma raiz grega — ekos, oikos, eco (nossa casa). É exatamente nesta “casa” que o homem tem se convertido em um perigo para si mesmo e para a biosfera.

É impossível conceber interesses econômicos ignorando valores humanos e direitos fundamentais. Não resta a menor dúvida de que a questão do meio ambiente é um problema global que reclama a responsabilidade de todos, indistintamente, e, na ausência de mecanismos político-jurídicos que enfrentem com seriedade e eficácia a degradação ambiental a nível interno, de suas fronteiras, faz-se necessária a adoção de medidas de alcance além-fronteiras.

Desenvolvimento sustentável se define como sendo a satisfação das necessidades das gerações presentes e próximas, sem comprometer a capacidade de gerações futuras para satisfazer às suas. A felicidade de algum grupo econômico presente não pode ser construída à custa da infelicidade de gerações futuras. Existem diversos instrumentos de iniciativa de entidades internacionais ou ONGs, que reclamam providências de uma Justiça Universal. São iniciativas como o Projeto Princeton sobre Jurisdição Universal, a Cruz Vermelha Internacional, a Lawyers Committee for Human Rights e mesmo a ONU que, ao elaborar a Carta da Terra, traça planos de conservação e delineia princípios e valores éticos que justificam a instituição de uma Corte ou Órgão Internacional com competência para julgar crimes contra o meio ambiente.

O princípio 2 das Normas de Princeton estatui que para efeitos dos presentes princípios, se entenderá por crimes graves sob o Direito Internacional a pirataria, a escravidão, os crimes de guerra, os crimes contra a paz, os crimes contra a Humanidade, o genocídio e a tortura. O Estatuto de Roma contém uma enumeração dos delitos sujeitos à Jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Constitui-se, desta forma, em um verdadeiro código criminal internacional, prevendo os seguintes crimes: o genocídio, os crimes de guerra, a agressão e os crimes contra a Humanidade.

É justamente nesta última figura criminal, em seu artigo 7, do Estatuto, que defendemos a ampliação do seu conceito para incluir os crimes graves contra o meio ambiente. O preâmbulo da Carta da Terra conduz-nos a este entendimento. “A Humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando”.

Depreende-se que a Carta da Terra, baseada em princípios e valores fundamentais, que norteiam pessoas e Estado no que se refere ao desenvolvimento sustentável, servindo como um código ético planetário, é uma legítima fonte formal de lei positiva.

Muitas opiniões surgem diante de uma proposta como esta. Algumas favoráveis, muitas contrárias. É natural. A maior característica daquilo que é novo é assustar e incomodar o arcaico. Dentre tantos argumentos que surgem contra a instituição de uma Jurisdição Internacional com competência para se julgar crimes contra o meio ambiente, destacamos dois deles. Primeiro, de que fragilizaria as instituições nacionais. Segundo, que afrontaria a soberania do país.

O primeiro argumento não merece maiores considerações, pois o Órgão Internacional somente poderia proceder com base no Princípio da Complementariedade. Ou seja, funcionaria como um complemento à Jurisdição nacional do Estado que não tenha tomando providências efetivas, sérias, contra um ou vários crimes de grave dano ambiental ou, ainda, no caso de esgotadas as instâncias jurídicas nacionais.

Desta forma, o Órgão de Jurisdição Internacional não seria, em absoluto, uma ameaça às instituições nacionais. Em verdade, é o contrário, as fortaleceriam, pois o órgão internacional só agiria em caso de ter-se verificada a negligência ou prevaricação de Jurisdição Interna, diante de fatos que caracterizam dano ambiental grave, tipificados como crimes contra a Humanidade.

O segundo argumento contrário a uma Justiça Internacional, para conhecer e julgar os crimes graves contra o meio ambiente é o de que atentaria contra a soberania do país. Refutando este argumento, para ater-se especificamente no caso brasileiro, citamos como exemplos dois episódios ocorridos no Brasil.

O primeiro episódio foi citado inicialmente em Seminário realizado em Brasília, durante palestra proferida brilhantemente pelo doutor Francisco Rezek, ex-juiz do Tribunal Penal Internacional, em Haia. Joaquim Nabuco em sua cruzada, para que o Brasil se libertasse da chaga da escravidão, repeliu o uso da soberania como escudo para a manutenção do tráfico; O Brasil revoltou-se na primeira metade daquele século, contra as medidas tomadas contra as embarcações brasileiras, incluindo os navios de guerra, pelos ingleses, para evitar o tráfico de escravos. Aquilo, na ocasião, era considerado uma violação ao Direito Internacional. Hoje em dia, ao contrário, já se reconhece que, naquela época, aquele tráfico já era um crime contra a humanidade, contra os conceitos morais de justiça.

O segundo episódio é mais recente, porém, igualmente, tem o mérito de transpor conceitos que privilegiam o status quo e, uma vez assimilado com mais serenidade, passa a ser admitido na cultura geral. Todos sabem que a tão decantada reforma do Judiciário brasileiro estava sempre em debate, no discurso, mas nunca era levada a cabo. Era um velho anseio dos advogados militantes e de diversos segmentos da sociedade.

Com a visita da relatora especial das Nações Unidas sobre execuções sumárias no Brasil, Asma Jahangir, recomendando uma inspeção da ONU no Judiciário brasileiro, apontado por ela como um dos responsáveis pela impunidade no país, vozes do conservadorismo no Judiciário brasileiro fizeram eco de descontentamento, acusando a relatora de intromissão nas questões internas de um país soberano.

De nada adiantou. A ONU enviou um perito para avaliar o Judiciário. O relator especial para independência de juízes e advogados, Leandro Despouy, avaliou o Judiciário em diversas regiões do Brasil e a conclusão, em seu relatório, não causou surpresa a ninguém, pois não expôs nenhuma novidade: justiça morosa, elitista, inacessível aos mais carentes, juízes corruptos, etc. Então, surge, finalmente, a tão esperada reforma do Judiciário, que, mesmo não havendo mudanças substanciais que refletissem positivamente os sonhos dos jurisdicionados, especialmente dos proscritos socialmente, rompeu, ainda que de maneira tímida, com conceitos sarcófagos das mentalidades mumificadas de um grande segmento do Judiciário brasileiro.

Acreditamos que o maior óbice ao que se propugna, isto é, uma Justiça Internacional com competência para julgar crimes graves contra o meio ambiente, seja a arcaica concepção do conceito de soberania. É preciso adequar essa mentalidade à realidade mundial dos nossos tempos. Com a globalização o conceito de soberania sofreu e vem sofrendo profundas modificações e, há tempos, vem sendo confundida com uma moderna forma de “poder”, aquilo que convencionalmente se chama de “mercado financeiro”, sendo este, na realidade, quem dita a política em cada país.

Quanto à discussão (interessada e mal intencionada) sobre a soberania, a experiência tem nos demonstrado que a cada vez que flexibilizamos seu conceito o resultado é o ganho de mais cidadania. O ser humano, no afã de ter um ambiente onde possa viver dignamente e assegurar a preservação da própria espécie, abre mão do conceito clássico, abstrato e embusteiro de soberania, em troca de cidadania, dignidade humana e da preservação do meio ambiente, como condições de assegurar-lhe um direito ainda maior: a própria vida. A vida desta geração e de gerações futuras.

Revista Consultor Jurídico

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