Fim do litígio – Crédito tributário poderá acabar na fase administrativa

por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Desdobra-se junto à Procuradoria da Fazenda Nacional um projeto de lei que dispõe sobre a transação em matéria tributária. Tem-se como objetivo possibilitar a composição de conflitos e terminar com litígios, extinguindo-se o crédito tributário, ainda em âmbito administrativo. O acompanhamento das manifestações dos críticos do projeto pode revelar que há quatro fantasmas que rondam as discussões sobre o referido projeto de transação. Refiro-me, explicitamente, à escravidão para com o passado, à falta de imaginação institucional, a uma certa monoglossia crônica, bem como a uma cultura patologicamente macunaímica, que tem como premissa a idéia de que seríamos sistematicamente corruptos.

Essa antropologia negativa é sintoma de idiossincrasia freudianamente explicada na tese de que seríamos culpados por tudo quanto não somos. As razões de nosso atraso, nos termos desse intrigante complexo de inferioridade, que se percebe nas várias e precipitadas manifestações contrárias ao projeto, estariam no fato de que nossa devassidão moral seria endêmica. Não poderíamos inovar. Estamos condenados. No ânimo de mudança se enclausuraria nossa perversão prevaricadora.

A discussão sobre o projeto de transação reanima velho patrulhamento ideológico. Retoma maniqueísmo que se julgava esquecido. De um lado, contra o projeto, serafins, querubins, um coro, qual cardume de teóricos bem intencionados, na síndrome do pânico que plasma o sobressalto para com o desconhecido. Acena-se com a ruptura da legalidade, canonizam-se as autoridades fiscais, ameaça-se com a imprestabilidade futura de toda a ação burocrática. Lê-se Max Weber com as tintas do Apocalipse. O enterro coletivo do animado coro de críticos que metralham a transação suscitará epitáfio corrosivo: eles amavam o carimbo.

Do outro lado da trincheira, na defesa do projeto, a razão faustiana dos que teriam pactuado com Mefistófeles. A prenda, da bela Margarida, transitaria para remissões e anistias perigosas. A ressurreição coletiva dessa farândola malvada seria saudada pelo mote dos audaciosos: a perfídia é mais que púnica. De brinde, apontam o crédito prêmio do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Para os querubins, o projeto de transação tributária ameaça a candura do modelo burocrático-fiscal que se tem presente. Como exemplo da advertência de Walter Benjamim, os querubins dão um salto ao passado e da história só apanham o que convém. Anjos transformam-se em tigres. É que, na lembrança de Roberto Mangabeira Unger, “a ameaça de nossos interesses e ideais depende de nossa capacidade de avançar, também, no terreno das alternativas ainda desconhecidas”.

A falta de imaginação institucional, do alegre coro, avança a ponto de que se esqueça que transação é circunstância já prevista no Código Tributário Nacional. Refiro-me ao artigo 171, que dispõe que a lei pode facultar, nas condições que estabeleçam aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, implique em término do litígio e conseqüente extinção do crédito tributário. É dessa lei que o projeto trata. Como diria Gilberto Amado, é difícil achar um brasileiro capaz de ligar causa e efeito. É essa falta de imaginação institucional que nos mantém prisioneiros de um custo de aquiescência que consome energias empresariais, que Roberto Campos diria gastas na engenharia da evasão.

A transação tributária poderia acenar com a possibilidade de que discussões entre fisco e contribuinte fossem estancadas na própria administração. Poderia se evitar a judicialização. Poderia haver um maior diálogo entre o fisco e o contribuinte. Dessa angústia já compartilhava Rubens Gomes de Sousa, que em carta a Aliomar Baleeiro, datada de 25 de setembro de 1944, já colocava a sobrecarga do judiciário na ordem do dia.

A adesão principal do modelo de transação para a veracidade, lealdade, boa-fé, confiança, colaboração e celeridade é fundamento pragmático que formata um escudo, nos defendendo contra aqueles que princípios são guarda-roupas, onde cabem todas as fantasias. Princípios são valores factíveis. Indicações de alçada, tal como se lê no projeto, temperadas por rígido modelo de fundamentação e de publicidade, dissolveriam a maldosa premonição do favoritismo.

A transação, em princípio, repele qualquer negociação do montante do tributo devido. Bem entendido, a transação poderá dispor somente sobre multas, de mora e de ofício, juros de mora, encargos de sucumbência e demais encargos de natureza pecuniária, bem como valores oferecidos em garantia.

A transação é modelo conhecido na Espanha reclamaciones economico-administrativas , na Itália accertamento con adesione, que substitui o concordato tributário , na Alemanha, onde a Tatsächliche Verständigung suscita acordo sobre os fatos. Nos Estados Unidos da América há os acordos conclusivos close agreements e as promessas de compromisso offerts in compromis . Como observou José Casalta Nabais, “(…) os países mais progressivos, com o estado de direito estabilizado, há centenas ou várias dezenas de anos, solucionam a maior parte dos litígios, incluindo os que surgem no agitado domínio do direito dos impostos, em sede administrativa lato sensu ”.

O projeto de transação ameaçaria eventual e imaginário advogado de plantão, que poderia ganhar a vida na exploração da miríade de alternativas que a litigância oferece. Reporto-me ao filoxera social, na deliciosa imagem de Monteiro Lobato. O projeto de transação, no entanto, quebra o tédio das discussões analíticas, entoadas por oradores que se disfarçam de lógicos, e que esquecem que o direito é menos lógica do que experiência. E também que vivem no frustrante debate entre os limites da lei complementar e da lei ordinária. Faz exatamente 20 anos que não passam disso. É hora de mudar.

O projeto de transação inova, avança, desafia, instiga. É talvez por isso que assusta. E é justamente por isso que revela nossos medos, angústias e fraquezas. E que nos torna tão agressivos em momento que exige esforço único para o fortalecimento das instituições democráticas, centradas no diálogo e na confiança.

Revista Consultor Jurídico

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