por Priscyla Costa
A Polícia Federal desqualifica juízes, planta notícias falsas e não toma nenhuma atitude para se disciplinar. A observação foi feita pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, no voto que confirmou a liminar que deu liberdade para Pedro Passos Junior, investigado na Operação Navalha. A operação da PF, que investiga suposto esquema de fraude em licitações públicas federais, foi deflagrada em 17 de maio do ano passado, mas a denúncia só foi apresentada esta semana, em 13 de maio de 2008.
O ministro afirma que a Polícia Federal usa “terrorismo estatal como método” para intimidar e desqualificar juízes. Diz também que foi alvo de grampo ilegal feito pela PF. Gilmar Mendes fez a afirmação em um relatório apresentado à 2ª Turma do STF no voto que confirmou a liberdade de Pedro Passos Jr, no mês passado. O objetivo do ministro foi produzir um registro histórico de um momento em que as forças policiais extrapolam seu papel. Ou seja, deixam de aceitar que a Justiça rejeite suas proposições. Constrangem e intimidam. Usam a força do Estado para coagir.
Além de relatar vários episódios em que ele próprio foi vítima de ações deliberadas da Polícia Federal com o propósito de constrangê-lo e pressioná-lo, o ministro reclamou que mesmo depois de provocados para apurar responsabilidades, nem o Ministério da Justiça, a quem responde a Polícia Federal, nem a Procuradoria-Geral da República tomaram qualquer providência. “Até agora, não tenho ciência de quaisquer medidas tomadas pelas autoridades competentes para apurar eventual responsabilidade penal e disciplinar no caso”, afirma o ministro em seu relatório.
A suspeita do grampo do ministro nasceu quando ele deferiu o primeiro pedido de liminar em Habeas Corpus para um acusado na Operação Navalha. Tratava-se de Ulisses Cesar Martins de Souza, ex-procurador-geral do estado no Maranhão. Um dia depois de dar liberdade para o acusado, o ministro recebeu uma ligação do Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza, sobre o inquérito em tramitação no Superior Tribunal de Justiça.
Na oportunidade, o PGR informou que a ministra Eliana Calmon, relatora do caso no STJ, pretendia revogar as prisões tão logo os suspeitos fossem ouvidos pela Polícia. Gilmar conta que perguntou se Eliana Calmon ouviria os suspeitos no final de semana, e a resposta foi negativa. O ministro, então, observou que a jurisprudência do tribunal sobre prisões preventivas era conhecida e que prosseguiria no exame dos pedidos de HC.
Cerca de uma hora depois dessa conversa, Gilmar recebeu o telefonema de uma jornalista, que o indagou sobre detalhes da ligação feita por Antonio Fernando Souza e disse que “fontes” da Polícia Federal comentaram com ela que o ministro libertaria todos os presos na Operação Navalha. Gilmar Mendes retornou a ligação para o PGR, que disse que estava em um evento no Amapá e que não tinha comentado o teor da conversa com qualquer pessoa. “Fica então a indagação: estávamos, o procurador-geral e eu, a ser monitorados por essas tais fontes?”, indaga o ministro no relatório.
O presidente do Supremo lembrou também o episódio em que a PF repassou para jornalista uma versão deliberadamente distorcida de grampo para tentar incriminá-lo. Segundo Gilmar, o blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, divulgou, também com base “em alta fonte da Polícia Federal”, diálogo de um advogado preso na Operação Furacão com um colega. A conversa é a seguinte: “De colega para colega. O rapaz lá é meu amigo de infância. Quando meu pai era prefeito na cidade, o pai dele era secretário. Quando o papai voltava para o cartório, o pai dele assumia a prefeitura. E os dois governaram Diamantino por 30 anos”.
Paulo Henrique Amorim diz no blog: “Tanto Emanoel quanto Gilmar Mendes são de Diamantino, cidade de Mato Grosso. Gilmar Mendes concedeu um Habeas Corpus a Ulisses Martins de Souza, preso na Operação Navalha, sem conhecer os autos — segundo informação da Polícia (Republicana) Federal. Ulisses Martins de Souza, ex-procurador geral do Maranhão, aparece na investigação da Polícia (Republicana) Federal como um dos intermediários da empreiteira Gautama. Emanoel atuou em “embargos auriculares” para obter o HC do Ulisses. A transcrição de gravações telefônicas não prova nada. São apenas elementos autorizados pela Justiça e que a Justiça julgará”. No relatório, Gilmar Mendes classificou a conduta das fontes e do jornalista como “sórdida” ou “torpe”.
Outro exemplo de perseguição pela Polícia Federal dado por Gilmar Mendes é de uma reportagem publicada pela Agência Estado que diz que fontes da PF “estranharam” o fato de o ministro ter concedido HC para Ulisses de Souza sem ter ouvido a relatora do inquérito no STJ, Eliana Calmon, ou ter se informado com a PF sobre as acusações contra o suspeito, além de não ter ouvido Fernando Antonio Souza, que fez o pedido de prisão preventiva.
“Evidente a total ignorância de regras elementares de processo penal pelas citadas ‘fontes’. Como sabe qualquer estudante iniciante de Direito, o relator não precisa pedir informações antes de decidir pedido de liminar em HC”, comenta Gilmar Mendes.
Em outro episódio, o nome de Gilmar Mendes foi, também de forma deliberada, confundido pela PF com o de um homônimo suspeito de ser um dos beneficiários do esquema investigado na Operação Navalha. A PF disse que o nome “Gilmar Mendes” constava da lista de “mimos e brindes” da Gautama, a empreiteira acusada de distribuir propinas para liberar recursos públicos. A afirmação foi feita, segundo Gilmar, pelo “responsável pelo contato com jornalistas no próprio Departamento da Polícia Federal”.
Na verdade, as suspeitas envolviam Gilmar de Melo Mendes, ex-secretário de Fazenda do Sergipe. “Surpreendeu-me a torpeza da atitude daqueles que divulgaram essas informações, conscientes de que se cuidava de manipulação dolosa de um lamentável caso de homonímia. Parecia estar em gestação no Brasil um modelo de Estado Policial”, afirma o ministro.
Gilmar Mendes repeliu, também, as afirmações que o procurador-geral da República Antonio Fernando Souza fez à imprensa, na época, dizendo que Eliana Calmon teria “mais condições” de tomar qualquer decisão sobre o inquérito. Para Gilmar, “a declaração do procurador-geral da República revelava confusão conceitual entre os fundamentos da prisão preventiva e aqueles pertinentes ao recebimento da denúncia”, diz Gilmar. “Percebeu-se que se cuida do uso de uma espécie de terrorismo estatal como método”, observa o presidente do STF em seu relatório.
Gilmar Mendes lembrou, ainda, o caso do ministro Sepúlveda Pertence, vítima da divulgação irresponsável de telefonemas grampeados. A PF interceptou e divulgou conversa entre um advogado e um lobista sobre uma decisão do ministro, que beneficiou o Banco do Estado de Sergipe. A decisão em discussão era uma daquelas em que o tribunal já fechou questão sobre o tema e decide da mesma forma em milhares de casos iguais. Ainda assim, surgiu a insinuação de que Pertence teria recebido R$ 600 mil para dar a decisão. Pertence diz que a PF divulgou a gravação para constranger o ministro no momento em que foi sondado para chefiar o Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está subordinada.
“Lembro o que a história verificou em todos os tempos: onde a Polícia se tornou poder, a democracia feneceu”, finaliza Gilmar Mendes em seu relatório.
Juiz perseguido
A história contada por Gilmar Mendes confirma o relato do juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo, em depoimento à CPI das Escutas Telefônicas da Câmara dos Deputados, nesta quinta-feira (15/5). Mazloum chamou atenção para a gravidade do grampo ilegal e o uso de conversa de terceiros como prova para acusação. “Os juízes estão constrangidos, coagidos e são grampeados ilegalmente. Os juízes estão com medo”, afirmou.
Ali Mazloum, que já foi alvo de interpretação em conversa de terceiros e manipulação de escutas, afirmou ainda à CPI que os juízes têm permitido o grampo, pressionados pelo teor dos pedidos de interceptação telefônica. “Criou-se um grande discurso maniqueísta, um padrão em todos os pedidos de interceptação telefônica. Algumas expressões recorrentes são verdadeiras chaves: combate à corrupção e ao crime organizado, e envolvimento de pessoas públicas. Isso é uma mensagem para o juiz: “Se não está conosco, está do lado de lá”, disse em tom de denúncia.
O presidente da comissão, deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), considerou as declarações de Mazloum graves. “Não podemos permitir a utilização do grampo ilegal como forma de prova”, afirmou.
Revista Consultor Jurídico