Direitos do mundo – Globalização impulsiona avanço dos Direitos Humanos

por Daniel Roncaglia e Alessandro Cristo

A relutância de algumas nações, incluindo o Brasil, em incorporar preceitos defendidos internacionalmente sobre Direitos Humanos faz parte de um movimento pendular de desenvolvimento, que pressupõe avanços e retrocessos contínuos, mas sempre para frente. Otimismo em excesso? Não para o autor da afirmação, especialista no assunto. O advogado Belisário dos Santos Junior já defendeu presos e perseguidos políticos, foi secretário estadual de Justiça e da Administração Penitenciária em São Paulo durante o governo Mário Covas, e hoje é membro da Comissão Internacional de Juristas da Organização das Nações Unidas (ONU), que acompanha o progresso do Direito Internacional e o cumprimento dos Direitos Humanos ao redor do planeta.

Devoto convicto da diplomacia para a solução de conflitos, Santos Junior acredita que países resistentes aos conceitos consolidados de Direitos Humanos fatalmente mudarão de postura com a intensificação da relações internacionais. A interdependência econômica e social causada pela globalização, nesse sentido, fará com que as nações atinjam estágios próximos de práticas bem aceitas por todos, em sua opinião. O preço pela negação a essa tendência seria alto demais num mundo interligado: o isolamento.

O advogado fala com a autoridade de membro de uma comissão responsável por fiscalizar e relatar às Nações Unidas as medidas tomadas dentro dos Estados que possam violar os direitos do homem. A Comissão Internacional de Juristas, da qual ele foi eleito membro, tem direito a palavra nas reuniões da ONU, onde apresenta relatórios de missões enviadas a diversos países. Com esse propósito, Belisário esteve na cadeira de vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai, pedindo satisfações a ministros de Estado sobre repressão e prisões abusivas cometidas contra seus próprios cidadãos. E eles tiveram que explicar.

Em casa de ferreiro, porém, o espeto não pode ser de pau. Santos Junior prepara, nesse momento, um relatório sobre a independência dos juízes no Brasil, que será lido pelo representante da Comissão na ONU, diante de líderes mundiais. Ele também critica a postura dos que se opõem à revisão da Lei de Anistia, que perdoou crimes de tortura e terrorismo praticados durante os 20 anos do regime militar. Para ele, a investida armada da esquerda contra o golpe de Estado de 1964 aconteceu devido à existência de uma autoridade injusta. Mesmo sendo desaconselhável, teve motivações diferentes do que se conhece por “terrorismo”. Por isso, deve ser esquecida. Já as torturas feitas nos porões da ditadura, os desaparecimentos e as mortes causadas pela perseguição dos militares aos “subversivos” foram atitudes sistemáticas do Estado que, segundo ele, não podem prescrever ou ser anistiadas, de acordo com a jurisprudência dos tribunais internacionais.

A Advocacia Geral da União também não escapa das censuras do especialista em Direitos Humanos. Em entrevista à Consultor Jurídico, Belisário considerou “a pior notícia dos últimos tempos” a justificativa da AGU sobre a destruição de documentos oficiais do período do regime pelos militares. Os advogados da União emitiram parecer atribuindo a queima dos documentos a um decreto editado na época. Segundo ele, porém, um decreto não se sobrepõe ao Código Penal da época, que proibia a destruição de documentos. Além disso, a norma alegada pela AGU também ordenava que se registrasse quem deu a ordem para o “incêndio”, bem como que se relatasse como a medida foi tomada. Nenhuma dessas coisas aconteceu.

Leia a entrevista

Conjur — Muito se discute sobre a aplicabilidade de normas internacionais no Direito interno dos países. Os Direitos Humanos enfrentam a mesma dificuldade?

Belisário dos Santos Jr.— O Direito Internacional tem um problema, que é o da efetividade da norma internacional, mas os Direitos Humanos acabaram sendo incorporados à nossa consciência. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde que surgiu em 1948 até os anos 1970, foi assunto de muitos trabalhos sobre seu caráter jurídico. Hoje ninguém mais fala disso. O que a declaração fala é, mais ou menos, o que você ensina a seus filhos, a forma pela qual as pessoas se governam em uma comunidade, em um clube, em uma associação. Eu chamo a declaração de “manual de convivência”, um guia de tolerância. É a forma pela qual você pode começar a ensinar os seus filhos. A partir de quantos anos a criança tem um entendimento? Um ano? Você pode começar a mostrar as figuras, que as crianças entendem bem. Em um trabalho que fiz há alguns anos para a Anistia Internacional, mostrei filmetes para crianças sobre como se relacionarem. É fantástico, muito mais fácil do que explicar a adultos.

Conjur — Como os princípios da Declaração foram incorporados ao Direito das nações?

Belisário dos Santos Jr.— Eles foram ganhando força como princípio comum entre os países. Hoje há um artigo na Carta das Nações Unidas dizendo que os países respeitarão os estandartes comuns. Mas a Declaração fez nascer uma série de outros, que são os pactos internacionais. O pacto é diferente, porque implica assinatura e ratificação, como qualquer tratado. O presidente da República ou um ministro participa de um ato e assina o acordo. Quando o documento é ratificado, acaba sendo incorporado ao Direito interno do país, que fica formalmente obrigado a cumpri-lo.

Conjur — A assinatura desses pactos permite um controle maior pela comunidade internacional?

Belisário dos Santos Jr.— Os pactos vão além da Declaração, porque traduzem compromisso. Pactos como os de direitos econômicos, sociais e culturais são monitorados. Assim, os Estados são obrigados a apresentar relatórios periódicos, que hoje são acompanhados de relatórios paralelos da sociedade civil.

Conjur — Além dos relatórios feitos pela Comissão Internacional de Juristas, da qual o senhor faz parte?

Belisário dos Santos Jr.— Sim. Há entidades que estão ligadas a esta atividade, de produzir relatórios paralelos. Eles são levados em conta porque vêm da sociedade civil. As informações relevantes vêm tanto do Estado quanto da sociedade. Dessa forma, os organismos de controle podem entender melhor a realidade. Esse mecanismo de fornecimento de relatório paralelo não está necessariamente regulamentado, mas começa-se a criar um costume que é importante.

Conjur — O que obriga um país a se submeter a essas regras?

Belisário dos Santos Jr.— Hoje, uma nação não pode se sentar ao lado de outros países se não tiver assinado praticamente todos os instrumentos internacionais. A Declaração de Direitos Humanos e os pactos compõem o que se chama Carta de Direitos Humanos. Foram criados mecanismos de controle, como a Comissão — de que só participam países — e o Comitê, no qual já é admitida a participação de pessoas físicas denunciando seus próprios países. Além das instâncias universais, há também as regionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil, por exemplo, se submete a documentos do sistema universal e também dos regionais, como a Organização dos Estados Americanos, a Comissão Interamericana, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essas formas de monitoração e cobrança tornam o Direito Internacional um pouco mais efetivo.

Conjur — Quais as conseqüências em caso de descumprimento desses acordos internacionais?

Belisário dos Santos Jr.— A Comissão Interamericana, por exemplo, é um organismo quase judicial. Suas decisões têm de ser cumpridas. Do contrário, pode haver isolamento internacional, desde econômico até a exclusão do sistema. Ninguém quer isso.

Conjur — Os tratados internacionais teriam então uma força mais diplomática?

Belisário dos Santos Jr.— A força do Direito Internacional é a força da necessidade da convivência. Direito é convivência. Eu tenho que aceitá-lo, sem precisar necessariamente de sanções legais, ou alguém que me prenda ou que me multe, embora o Direito permita também isso. Os tribunais internacionais têm poderes de prender, arbitrar e decidir sobre questões delicadas até, como quem fica com qual território. Há um equilíbrio internacional que, se rompido, tem conseqüências gravíssimas. Um país não agüenta um ano se avisar os outros pólos que não vai cumprir os contratos, que não vai pagar nada do que deve internacionalmente, que não há normativa internacional que lhe afete.

Conjur — Como isso funciona concretamente?

Belisário dos Santos Jr.— A força moral dos Direitos Humanos é um bom exemplo. Dom Paulo Evaristo Arns [cardeal brasileiro com cadeira no Conselho Deliberativo do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo], gosta de contar a história de uma visita diplomática que fez ao Paraguai. Ele recebeu tratamento de vice-presidente da República. O Paraguai tinha uma relação com o Vaticano, mas não tinha cardeais. O vice-presidente da República recebeu Dom Paulo, dizendo: “O senhor aqui tem status de vice-presidente da República. Sabe disso?” Dom Paulo respondeu: “Perfeitamente”. O vice então perguntou: “Tem alguma recomendação a fazer?” Ele respondeu: “Sim, tenho uma lista de presos políticos que gostaria que fossem soltos, porque não há nada formalmente constituído contra eles”. E ele foi atendido.

Conjur — Mas os países têm sua soberania.

Belisário dos Santos Jr.— Quando chegamos em uma missão internacional, não ouvimos mais essa história de soberania. Eu participei de missões à Argentina, ao Chile, ao Uruguai. No Uruguai, falei com ministros na época da repressão, e nenhum deles me disse: “Saia daqui, você não tem direito de falar isso na minha casa”. Eles discutiam as bases das nossas informações, limitavam o acesso aos dados, mas jamais alegaram soberania. Esse é o princípio da internacionalização dos Direitos Humanos, é uma coisa moral. Para o Brasil, interessa o que está acontecendo com o Uruguai. O resultado disso é um princípio jurídico que se chama “jurisdição universal”. O juiz manda uma petição para a Inglaterra, dizendo: “Entre vocês está um cidadão chamado Augusto Pinochet, que foi responsável pela morte de muitos chilenos”. A Inglaterra teve que prender Pinochet. Foi usada a jurisdição universal nos crimes de tortura, que é prevista no artigo 5º da Convenção Universal contra a Tortura, que praticamente todos os países subscreveram.

Conjur — A interdependência é inevitável?

Belisário dos Santos Jr.— Hoje em dia, com a globalização, é muito difícil um país prosperar sem isso. Por que o Brasil pagou a sua dívida externa? Porque em um determinado momento pode precisar novamente de dinheiro. E por que o Brasil perdoa a dívida de um país africano? Foi um gesto de generosidade do presidente? Pode ser, mas esse viver internacional implica também ceder preferência.

Conjur — A tolerância do Brasil em relação às recentes atitudes da Bolívia frente à Petrobrás e do Equador diante da Odebrecht e do BNDES também foram concessões de um país que quer ganhar status internacionalmente?

Belisário dos Santos Jr.— O Brasil teve uma atuação ponderada. O presidente da República, que dedicou a vida a falar de justiça social, julgou um pouco inconveniente dar uma resposta tradicional de Estado mais forte. As respostas fizeram com que o Brasil fosse mais respeitado na comunidade internacional. Ele está lidando de uma forma bastante equilibrada com essa decisão do Equador, e agora pode tomar algumas providências. Pode mandar chamar o embaixador de volta, dizer que financiamentos não vão ser concedidos. Ele esgotou uma fase anterior da negociação. Dessa compreensão internacional é que se vive, não só do exercício dos direitos, da cobrança. Assim como a atitude do Brasil em relação ao Paraguai quanto ao tratado de Itaipu. Quem lesou o Paraguai foram os seus dirigentes e não o tratado, que é visto por muitos internacionalistas como a melhor forma pela qual um tratado coloca justiça em suas cláusulas. Mas, ao invés de usarmos o big stick [grande porrete] e cortarmos o que eles precisam, estamos exercitando a diplomacia, para podermos pedir tratamento recíproco.

Conjur — Quais os resultados práticos da absorção de direitos internacionais pelo Direito interno dos países?

Belisário dos Santos Jr.— Os direitos em torno da palavra liberdade estão definidos. A liberdade de agir demanda do Estado uma não-ação, como a liberdade de imprensa e a liberdade religiosa. Há outros direitos assegurados que giram em torno da palavra igualdade, que são os direitos econômicos, sociais e culturais. Desses direitos se espera algo do Estado, como o aporte de recursos e a criação de políticas públicas. Mas os direitos que orbitam a palavra fraternidade não estão todos previstos, ainda estão crescendo. São os direitos que exigem a cooperação de nações, de pessoas, e que estão ligados ao futuro. Referem-se, por exemplo, ao meio ambiente, à paz e ao desenvolvimento. Direito ao desenvolvimento é a síntese de todos os direitos, no qual eu me desenvolvo, e também pago a escola do filho de fulano, porque eu tenho que fazer com que a coisa vá para frente. Liberdade, igualdade e fraternidade são a bandeira da Revolução Francesa. Esses direitos precisam de garantias, que asseguram o seu cumprimento. Há garantias clássicas, como o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança, mas só recentemente estamos conseguindo levar aos juízes os direitos econômicos, sociais e culturais, inclusive em relação ao Ministério Público e às organizações não-governamentais.

Conjur — Como esse entendimento se concretiza?

Belisário dos Santos Jr.— Isso já está acontecendo. Há pouco tempo levei para o Conselho Estadual de Educação de São Paulo a questão dos filhos de coreanos ilegais, que não estão conseguindo fazer matrícula nas faculdades públicas por falta de documentos. Em 1995, por uma decisão do governo Mário Covas, essas crianças, mesmo sem registro legal, puderam entrar nas escolas. Agora, porém, bateram na formatura, e não se reconhece certificado nenhum para que entrem em uma faculdade. Há três anos a situação estava assim. Dias atrás o conselho publicou uma resolução afirmando a prevalência dos Direitos Humanos sobre a burocracia do Estado. O Estado deve se organizar para fazer o bem comum, e não para obstar o bem comum. Sabemos que todas as crianças latino-americanas ilegais estão na mesma situação.

Conjur — No plano internacional, desde quando começaram os avanços?

Belisário dos Santos Jr.— É uma coisa histórica. Em 1995, em Pequim, nós afirmamos que todas as mulheres são iguais, independentemente de cor, raça ou credo. Isso para nós é chover no molhado, mas no Oriente não é bem assim. Todo mundo precisa ir crescendo até chegar num nível semelhante.

Conjur — Qual o papel da Comissão Internacional de Juristas na defesa dos Direitos Humanos?

Belisário dos Santos Jr.— A Comissão Internacional de Juristas tem hoje uma posição moral importante, com status consultivo perante a Organização das Nações Unidas, tendo direito a palavra no Comitê de Direitos Humanos. A Comissão visa dois temas, fundamentalmente: o progresso do Direito Internacional e a promoção e proteção dos Direitos Humanos, o que é muito amplo. Está estruturada num secretariado pequeno, sediado em Genebra, embora Berlim seja o local de sua “maternidade”. Para cada um dos 60 países afiliados corresponde um membro na Comissão. Embora as escolhas sejam determinadas por nação, as pessoas se apresentam em caráter pessoal, ninguém representa um país. Esse grupo de integrantes da Comissão Internacional de Juristas incentiva missões e atividades nos países.

Conjur — Quem faz parte da comissão?

Belisário dos Santos Jr.— Advogados, professores, relatores e presidentes da ONU. A composição vem do esforço voluntário de pessoas ao redor do mundo. Os membros indicados podem ser reconduzidos uma vez. Eu estou sendo nomeado membro pela primeira vez.

Conjur — Como ela começou?

Belisário dos Santos Jr.— Em 1952, um advogado alemão, em Berlim, denunciou as mazelas das prisões e dos tratamentos que a Alemanha Oriental dava aos detidos. Ele foi preso e desapareceu, tendo possivelmente sido assassinado, o que provocou um protesto que envolveu 20 mil ativistas. Aquela comoção provocada pela morte do advogado — e isso é muito comum no terreno dos Direitos Humanos, a comoção provocada por um fato — fez com que surgisse essa entidade, uma organização internacional não-governamental, do terceiro setor, sem qualquer esforço ou vínculo estatal. Não há vínculo sequer com a ONU.

Conjur — E qual a influência na tomada de decisões da ONU?

Belisário dos Santos Jr.— Como outras organizações internacionais, a comissão tem status consultivo, devendo inclusive apresentar relatórios. Apesar de não votar em algumas reuniões que tratam de assuntos de Estado, ela pode se pronunciar, dirigir a palavra às pessoas, o que é valiosíssimo. Em um determinado foro, ela pode até mesmo dar a um grupo de familiares o direito de falar em nome da Comissão, em casos gravíssimos.

Conjur — Qual a pauta em relação ao Poder Judiciário?

Belisário dos Santos Jr.— Neste momento, por exemplo, a eleição dos magistrados da Suprema Corte de Honduras é acompanhada por uma missão da Comissão Internacional de Juristas, que verifica se tudo está correndo bem. Na Guatemala, devido a ameaças a um juiz e a um advogado, mobilizou-se a intervenção de um grupo interno sob o manto da Comissão. Os comissionados também participam do Centro para a Independência de Juízes e Magistrados. Essa questão da independência é muito complicada. Eu produzi um relatório sobre o Brasil que será usado por um membro que vai falar em nome da América Latina, exatamente das questões dos juízes, das cortes supremas, das grandes questões de hoje em dia. Nesse ponto, embora tenhamos força moral ilimitada, o poder é limitado.

Conjur — Qual é a atenção dada pela comissão ao Brasil?

Belisário dos Santos Jr.— Quando aconteceu o seqüestro dos uruguaios [exilados em Porto Alegre, a professora Lilian Celiberti e seu companheiro Universindo Diaz foram seqüestrados em 1978 por policiais brasileiros e entregues à ditadura do Uruguai], por exemplo, algumas organizações internacionais deslocaram pessoal para verificar o que tinha ocorrido aqui e produzir relatórios. Mas não foi só a Comissão Internacional de Juristas. Naquela época, eu representei também a Federação Internacional dos Direitos do Homem. São organizações não-governamentais internacionais que têm uma força grande.

ConJur — Qual sua visão sobre a revisão da Lei de Anistia diante dos conceitos internacionais de Direitos Humanos?

Belisário dos Santos Jr.— Não houve muita negociação para a Lei de Anistia. Ela não veio favorecendo a todos, era muito restritiva, e tinha um raciocínio político, que excluía os agentes condenados. Implicava não mexer na situação, não levantar o tapete. Seria um pacto, um entendimento não escrito, cujos autores não foram necessariamente os de um processo convencional. Crimes políticos e conexos, além dos eleitorais, estavam anistiados. A polêmica é o sentido de “crime conexo”, mas essa interpretação é muito política, não tem respaldo legal nenhum. Crime conexo em Direito Penal e Processual Penal é o que o Código de Processo Penal diz que é: um crime que está vinculado a outro, que foi cometido para esconder outro, normalmente pelo mesmo agente.

ConJur — Mas na época não houve um consenso entre os dois lados?

Belisário dos Santos Jr.— Antes da Lei de Anistia, em 1978, já havia sido editada a Lei 6.620, que reduziu as penas de uma forma absurdamente generosa. Não porque o governo era benevolente, mas porque queria esvaziar a campanha da Anistia. Essa lei livrou tanta gente quanto a Lei de Anistia. O projeto da anistia era absolutamente restrito, inclusive não contemplava reparação financeira. Não houve nenhuma emenda aceita, não houve pacto nenhum. Na minha opinião, a lei não previu anistia para os agentes do Estado.

ConJur — Como os tribunais internacionais encaram o assunto?

Belisário dos Santos Jr.— O Estado não pode anistiar os seus agentes e isso é apoiado por toda a doutrina internacional de Direitos Humanos, pelos tribunais internacionais de Direitos Humanos, pelos autores internacionais de Direitos Humanos, pelas normativas e costumes internacionais, pela Carta da ONU, pela Convenção contra Genocídios e por todos os juizes que decidiram, por exemplo, contra a anistia na Argentina. Um deles é Raúl Eugenio Zaffaroni, um grande autor de Direito Penal. São crimes cometidos contra setores da população de forma massiva, genérica, sistemática, que não podem ser considerados anistiados nem prescritíveis. O Brasil aderiu ao Tratado de Roma, ao Tratado do Tribunal Penal Internacional. Eles só repetem a normativa internacional dos costumes do tribunal, da normativa pós-guerra, das convenções, dos julgamentos do Tribunal de Nuremberg, que diz que violações sistemáticas, genéricas, que atinjam um conjunto de populações, provocadas por uma política de Estado, não podem ser consideradas anistiadas ou prescritas. Se nosso caso chegar aos tribunais internacionais, não vamos sofrer sanções, mas vamos ouvir muitas recomendações para voltarmos atrás.

ConJur — Mas possíveis punições dependeriam da interpretação da Justiça brasileira…

Belisário dos Santos Jr.— Não estamos pedindo para aplicar uma lei que não existia na época em que eles cometeram os crimes. Eles nunca poderão ser processados por tortura, porque não havia esse crime, mas poderão ser processados por homicídio, lesão corporal, atentado pessoal, ameaça, seqüestro, que são crimes permanentes. Quando em 1988 nós trouxemos para o artigo 5º da Constituição as garantias individuais — que na Constituição de 1946 estavam no artigo 141, na de 1967 foram para o artigo 151, na de 1969 foram para o artigo 153 —, foi porque se quis dar maior prevalência para os Direitos Humanos.

Conjur — A tese defendida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal é de que houve terroristas que agiram contra o Estado que também foram anistiados.

Belisário dos Santos Jr.— Pois é. A Declaração Universal, em seu preâmbulo, tem sete “considerandos”. O quarto “considerando” diz que o Estado de Direito deve ser respeitado. Deve ser respeitado, para que as pessoas não se vejam obrigadas a usar o sagrado direito de rebelião contra a autoridade injusta. Não dá para comparar, por exemplo, um atentado em Madrid, em um país livre e democrático de um lado, com uma conduta armada que pode ter conseqüências fatais, claro, mas em um lugar em que se viola sistematicamente, genericamente, passivamente os Direitos Humanos, de outro. Eu não defendo essas condutas e nem empresto respaldo a elas. Mas pegar em armas contra o governo militar foi uma alternativa. Hoje, com reflexão de 40 anos depois, sabemos que a atitude foi tresloucada. Perdemos quadros fantasticamente importantes. Mas se essas pessoas agiram assim, elas devem receber o tratamento que teriam os criminosos comuns que as torturaram e mataram? Acredito que não. Eu respeito imensamente o ministro Gilmar Mendes, ele é um homem que entende a sua posição, ansioso dos Direito Humanos, um profundo tutor do Direito Constitucional, mas ele deu uma declaração infeliz quando se pronunciou sobre o tema da anistia. Não sei se essa vai ser a posição do Supremo.

Conjur — E por que a questão da revisão surgiu nesse momento, depois de tantos anos?

Belisário dos Santos Jr.— A explicação vem do Ministério Público. Quando entra com as ações, o MP diz que o Estado está pagando indenizações para sessenta e tantas pessoas que foram vítimas do DOI-CODI de São Paulo. Essa somatória é paga porque hoje, oficialmente, a partir do lançamento do livro “Direito à Memória e à Verdade” [produzido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República], nós decidimos que a história oficial não é a que foi contada pelos militares, mas a da tortura e da repressão. Se nós decidimos que a história oficial é essa, nós devemos cobrar de quem ainda pode ser responsabilizado por isso. O Ministério Público quer que os responsáveis devolvam esses recursos.

Conjur — Se o próprio Baltasar Garzon [juiz da Audiência Nacional, a mais alta instância da Justiça espanhola, que pediu a prisão do general Augusto Pinochet] tentou, por exemplo, rever atos da ditadura de Franco na Espanha, logo mais não se pedirá por aqui também a revisão da ditadura de Getúlio Vargas?

Belisário dos Santos Jr.— Não há nenhuma comoção com o que aconteceu com Getúlio Vargas. Ele teve apoio popular na segunda fase de seu governo. Mas a revisão não está sendo discutida só aqui. A Argentina ainda está resolvendo isso, o Chile, o Uruguai e o Paraguai estão fazendo também. Somos diferentes em quê? O Brasil se recusa até hoje a ratificar a Convenção Inter-Americana de Desaparição Forçada, porque os militares acham que, se assinarem, eles estarão dando um passo para o fim da impunidade da era militar. E declaradamente por influência militar isso não é posto em votação no Congresso. Não é culpa do Itamarati, que está trabalhando forte na questão da declaração da ONU sobre desaparição forçada.

Conjur — Há ainda esse fator de influência, de os demais países estarem revendo?

Belisário dos Santos Jr.— A pressão maior vem dos segmentos da sociedade. Há análises internacionais que dizem que quando você não trata a questão da violência ocorrida em um determinado período da história nacional, ela se torna algo natural.

Conjur — A omissão de documentos oficiais sigilosos contribui para que a discussão fique adormecida?

Belisário dos Santos Jr.— Não há justificativa para a Lei 11.111/2005, que trata do acesso a informações sigilosas do Estado. Ela não prevê o sigilo perpetuo, mas tem formas pelas quais um documento nunca terá seu conteúdo revelado, permitindo que algumas comissões sempre adiem a abertura. A Advocacia Geral da União fez constar na sua contestação que os documentos foram destruídos por incêndio, com base em um decreto, algo absurdo. Um decreto não se sobrepõe à lei. O Código Penal que era contemporâneo à época dizia que era crime suprimir documento público. E mesmo que esse decreto tivesse sido a razão, foi cumprido somente na parte em que dizia “pôr fogo”, mas não foi no trecho que dizia para documentar quem deu a ordem e relatar como se fez isso. O autor do documento decide que queima o documento? A AGU afirmou também que o Ministério Público não tem legitimidade para contestar o sumiço dos documentos. Quem tem legitimidade para falar em nome da cidadania, então? Foi a pior notícia dos últimos tempos.

Conjur — Isso é um atraso para os Direitos Humanos no país?

Belisário dos Santos Jr.— O movimento de avanço dos Direitos Humanos é sempre pendular. Vai-se até um limite, mas uma decisão acontece e tudo acaba voltando atrás. Mas não totalmente, porque o sentido é sempre para frente, então volta a se avançar. De repente, você acha que os tratados internacionais estão equiparados à Constituição, aí vem uma norma para esclarecer que isso só acontecerá se houver uma votação tão especial que nenhum deles vai ter. São coisas que vão e vêm, mas o sentido é sempre para frente.

Conjur — É uma perspectiva otimista…

Belisário dos Santos Jr.— Esse movimento depende de todos, de um agir individual e coletivo. É impulsionado pela atitude pró-ativa das pessoas na comunidade, no trabalho. É o exemplo de algumas escolas que adotam outras e preparam seus alunos pra conviver com outras crianças, dividindo o que têm. São atitudes eminentemente caritativas e solidárias.

Revista Consultor Jurídico

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