O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, é o entrevistado do jornal O Estado de S.Paulo, desta segunda-feira, 21 de abril. Na entrevista, ele fala sobre a polêmica do dossiê montado na Casa Civil com dados sobre cartões corporativos da gestão Fernando Henrique Cardoso e propõe algumas “revisões” de hábitos e culturas. Gilmar Mendes sugere uma, em especial: “Muitos dos nossos dirigentes, que se dizem fãs de Lenin e Trotski, talvez devessem ler (Karl) Popper e (Norberto) Bobbio”.
Gilmar Mendes fala, ainda, sobre grampos, terceiro mandato e Reforma do Judiciário. Durante a entrevista, o ministro, de 52 anos, mato-grossense de Diamantino, se declara um homem impaciente, mas também “muito persistente”. Dono de um temperamento marcante e de perfil enérgico, não dá as costas a desafios — e são incontáveis as polêmicas ao longo da carreira, ora fulminando as espetaculares ações da polícia, ora criticando sem rodeios advogados e até mesmo apontando vícios da toga e desvios do governo.
Alimenta a seu jeito o gosto pelo debate com os próprios pares da corte, que integra desde 2002 (governo FHC). Sua missão agora, ele define, é “apenas a de um coordenador de iguais”. Ainda assim, sabe que o espreita uma carga horária asfixiante, próxima das 16 horas diárias, que já enfrenta na tarefa de superar a pilha de mil processos que deságuam todo mês, em média, nos gabinetes de cada ministro.
O cargo de presidente do STF, que exercerá nesses próximos dois anos em substituição à ministra Ellen Gracie, é uma ameaça à sua rotina pessoal — que inclui, na medida do possível, passeios de lancha no lago Paranoá, em Brasília, caminhadas matinais, uma e outra partida de tênis. Mas, nem a agenda carregada de compromissos nem a multidão de demandas o farão abrir mão dos jogos do Santos, seu time de coração — até por deferência ao rei Pelé, amigo e presença confirmada na solenidade de sua posse. Gilmar Mendes foi entrevistado pelos jornalistas Fausto Macedo e Felipe Recondo.
Estado — Como o sr. vê essa forma de se fazer política com base em dossiês?
Gilmar Mendes — Eu acho que fala mal do nosso processo civilizatório a cultura do dossiê, da chantagem, do constrangimento. É extremamente negativo, revela um patrimonialismo, porque as pessoas têm a noção de que essas informações, às quais tiveram acesso apenas por serem funcionárias públicas, lhes pertencem, pertencem ao seu partido ou à sua causa e, portanto, podem fazer o uso que bem entenderem disso. Isso pode ser a instrumentalização de uma extorsão, que pode até constituir crime. É uma prática lamentável.
Estado — Como o sr. analisa essa situação?
GM — Todos nós deveríamos fazer uma autocrítica, uma revisão das nossas práticas. Perguntar se de fato estamos andando de acordo com os princípios democráticos. Será que de fato continuamos a ter práticas condizentes com a democracia enquanto governo, enquanto oposição? A tentativa de aparelhamento de aparato estatal não é uma atitude democrática. Eu não posso ter um procurador a meu serviço, não posso ter um agente da Polícia Federal a meu serviço enquanto entidade partidária, não posso induzir um agente da Receita a fazer a investigação que quero contra o meu inimigo. Deveríamos trocar de autores. Há muitos de nossos dirigentes que se dizem fãs de Lenin, Trotski. Talvez devessem ler Popper, Bobbio. Temos de fazer essa revisão geral e talvez até um mea-culpa público.
Estado — Mas ministros do governo, como Tarso Genro, dizem que fazer dossiê é algo normal na política.
GM — Acredito que é preciso trazer a luta política para outro padrão civilizatório.
Estado — O que o sr. pensa de um terceiro mandato presidencial?
GM — Eu compreendo a necessidade de reformas constitucionais, mas me pergunto qual é a necessidade da reforma neste ponto específico. Essa reforma me cheira a casuísmo, seja para alongar mandato para cinco anos, seja para fazer a coincidência com mandato de prefeitos. Será que isso é necessário? Se houver de fato uma emenda de permissão de terceiro mandato, certamente teremos uma grande polêmica no STF para saber se essa emenda é compatível com a cláusula pétrea.
Estado — Como o sr. vê essa profusão de grampos no Brasil?
GM — Esse modelo já está em revisão. Nós temos discutido no Supremo essa prorrogação continuada de grampos. Há uma falta de cuidado com essas interceptações telefônicas. O juiz não acompanha esse processo, porque não tem condições, o conhecimento dessas informações fica a cargo da polícia, que divulga quando quer e para qualquer finalidade, faz interpretação disso. Temos um encontro marcado com a revisão desse modelo.
Estado — A Abin tem defendido que também possa fazer grampos. O que o sr. pensa disso?
GM — O texto constitucional é muito claro: interceptação telefônica é para fins de investigação processual penal ou para a instrução penal. Esse é o limite. É preciso que esses órgãos (que pedem grampos) cuidem dessa matéria. Do contrário, podemos estar num campo de eventual exorbitância, produzindo prova ilícita. Não sei se nos afazeres da Abin estão as investigações criminais e instruções processuais penais.
Estado — Tem medo de estar grampeado?
GM — Não tenho muita preocupação com isso, mas há um temor generalizado de que não se respeitem as regras básicas.
Estado — Joga-se na conta do Judiciário a libertação dos presos em operações policiais. Não é um preço alto demais que o Judiciário paga?
GM — Essas operações todas só foram feitas porque contaram com autorização judicial. Elas se lastreiam em interceptações telefônicas autorizadas pelo juiz e também o decreto de prisão é de responsabilidade do Judiciário. Felizmente, nós não temos no Brasil a possibilidade, a não ser em caso de flagrante, de prisão decidida pela autoridade policial. Quem prende e quem solta no Brasil é o Judiciário. Logo, essa imagem, que acho que foi cultivada como marketing institucional, de que a polícia prende e o Judiciário solta, é absolutamente equivocada, conceitualmente falsa. Mas não posso negar que em muitos casos os juízes têm decretado prisão de forma indevida.
O sr. não acha que as críticas da população ao Judiciário se devem à impunidade?
GM — Dizia Machado de Assis que a melhor forma de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo nas mãos. As pessoas julgam de acordo com suas próprias experiências ou com a falta de experiências. Se o sujeito tiver um filho perseguido, ele não terá essa visão. Se a gente recebe uma denúncia sabendo que ela é inviável, estamos usando o processo com a finalidade de pena. Há algo de errado nesse modelo.
Estado — A corrupção o assusta?
GM — Esse é um temor e devemos nos manter vigilantes em todas as instâncias, no âmbito do Executivo, do Legislativo, do Judiciário. É um tema que inspira cuidados.
Estado — O nepotismo acabou no Judiciário?
GM — Não vou dizer que acabou. Daqui a pouco alguém me mostra um exemplo… Eu tenho a impressão de que o quadro mudou substancialmente.
Estado — A vedação ao nepotismo não deveria ocorrer em todos os Poderes?
GM — Eu tenho a impressão de que, de qualquer forma, precisaria de alguma disciplina. Mas não vou me ocupar dos outros Poderes. Acho que, no Judiciário, o nepotismo ganha uma conotação peculiar, porque tratamos de pessoas dotadas de vitaliciedade. A própria imagem do juiz enquanto imparcial pode ficar comprometida em função de eventuais abusos nesse sentido. Espero que não haja um retrocesso.
Estado — Os juízes têm 60 dias de férias. É possível mudar isso?
GM — Essa é uma discussão que pode-se abrir no Congresso Nacional. Certamente vamos ter emenda nesse sentido. Não acho que seja essa uma questão central. Da perspectiva dos colegas do Supremo e certamente da maioria dos juízes, eu vejo que os magistrados usam esses chamados dias de férias para se dedicar às atividades relativas à judicatura. E esse período é uma fase de interrupção na distribuição de processos, o que permite organizar o gabinete, analisar processos com vista. A magistratura estará disposta a discutir isso com absoluta honestidade intelectual. Agora, não devemos passar a idéia de que aqui encontramos a fórmula mágica para resolver o problema da Justiça.
Estado — Muitos desembargadores estaduais ganham acima do teto. Como resolver isso?
GM — Eu tenho a impressão de que está encaminhado. Não sei se com toda a eficácia, mas tenho a impressão de que isso ganhou uma nova dimensão.Talvez parte disso possa ser resolvido no estatuto da magistratura. É claro que o próprio modelo, essas diferenças escalonadas de salário, muitas vezes provocam certo desconforto. A distância entre o juiz no início da carreira e o topo é bastante pequena. Muitos questionam a solução do subsídio, que tratou isso como um bloco. E já há propostas de resgatar o benefício por tempo de serviço, que é um diferencial natural entre os juízes.
Estado — Como analisa a qualidade da advocacia no Brasil?
GM — Vista da perspectiva do Supremo e de outros tribunais, é de excelente qualidade. Mas temos uma advocacia de massas e um exército de advogados. Como se instituíram muitos cursos, teremos faculdades de todas as qualidades. Temos de melhorar a seleção. Como também temos o problema do perfil ético do advogado. A própria OAB poderia dar contribuição adequada, fazer as censuras devidas. Tudo isso pode ser melhorado. Mas é saudável o esforço que fazem a OAB e o Ministério da Educação.
Estado — Seus planos para o STF?
GM — O presidente é apenas um coordenador de iguais. Vamos trabalhar com os colegas no sentido de dar prosseguimento a muitas atividades que já vinham sendo desenvolvidas, reforma do Judiciário, aplicação da súmula vinculante, da repercussão geral, do processo virtual. Devemos buscar celeridade com segurança jurídica.
Estado — A reforma do Judiciário foi vitoriosa?
GM — Em relação a esse aspecto (de celeridade), vamos fazer esse esforço, que, se exitoso, pode mudar o próprio panorama do Judiciário. Se conseguirmos fixar precedentes, diretrizes seguras para o próprio STF e para os demais tribunais, vamos ter redução em cadeia dos processos, redução de complexidade. Toda essa relação que nós conhecemos, de excesso de processos repetidos, tem algo de desvio, de patológico.
Revista Consultor Jurídico