Quebra do sigilo pela Receita ou quebra da Constituição?

Pelo espírito e pela letra da Constituição Federal, a quebra do sigilo bancário é da alçada exclusiva do Judiciário. Nenhum outro Poder ou órgão da República poderá desempenhar idêntica atribuição

Uadi Lammêgo Bulos

Se algum estudioso ressolvesse analisar a vida institucional pátria tomando como ponto de partida a produção legislativa brasileira dos últimos dez anos detectaria aquilo que os juristas alemães chamam de quebramento constitucional. Significa dizer: o legislador ordinário, numa só canetada, coloca abaixo todo um comando de normas supremas, corroendo as vigas mestras que sustentam o arcabouço jurídico do Estado.

Pelo espírito e pela letra da Constituição Federal, a quebra do sigilo bancário é da alçada exclusiva do Judiciário. Nenhum outro Poder ou órgão da República poderá desempenhar idêntica atribuição. O monopólio da primeira e da última palavra, nessa hipótese, pertence aos juízes. Por isso, autoridades administrativas estão proibidas de praticarem atos afetos à esfera de competência material da judicatura.

E por que é assim? É assim, porque a partir do momento em que as constituições distribuem as competências entre os órgãos do poder têm em vista a eliminação do arbítrio. Não é diferente com o sigilo bancário, pois não é o Estado-Administração que diz o direito, que garante as liberdades públicas. A tutela dos direitos do homem, aqui amplamente tomada, é missão conferida ao Judiciário, ainda mais no que tange ao controle dos atos ligados à privacidade. Entregar a vida bancária dos outros aos desígnios da Receita Federal, permitindo o livre acesso às contas dos contribuintes, e até a reabertura de processos já encerrados, é consagrar o retorno dos tribunais inquisitórios, que investigavam, acusavam, julgavam e condenavam ao mesmo tempo. Ora, como fica o duplo grau de jurisdição, a inafastabilidade do controle jurisdicional e o princípio do juiz natural, assegurados pelo Texto de 1988?

Alguns poderíam dizer que esse argumento peca pelo formalismo. Porém, o respeito à privacidade humana está acima de qualquer rótulo. No momento em que o legislador possibilita a quebra do sigilo bancário sem o devido controle judicial está, na realidade, quebrando as garantias fundamentais do cidadão, porquanto o sigilo bancário constitui uma projeção do direito à privacidade que não tolera ingerências de órgãos governamentais. A conta bancária é lídima expressão da personalidade. Daí a Constituição brasileira ter considerado privativos os dados pessoais, que só podem sofrer ruptura mediante mandado judicial.

Não estamos defendendo a total impossibilidade de quebra do sigilo bancário, mesmo porque nenhuma liberdade pública é absoluta. Tanto é assim que a Constituição brasileira em nada impede o combate à sonegação fiscal. Apenas impõe critérios para a devassa do segredo: necessidade de autorização judicial e impossibilidade da criação de normas com efeitos retroativos.

De outra parte, se é certo que o sigilo bancário pode e deve ser quebrado, desde quando esteja configurada a justa causa para o seu rompimento, mais exato ainda é que existe um devido processo legal a ser observado para a tomada de quaisquer providências. Essa exigência irmana-se com outra, qual seja a necessidade de se motivar a sentença em que se autoriza a quebra. Deliberações destituídas de motivação, mostram-se despojadas de efeitos jurídicos, pois nenhuma medida restritiva de direitos pode ser adotada, sem que o ato que a decreta seja devidamente fundamentado pela autoridade jurisdicional, precisamente para ficarem demarcados a fumaça do bom direito e o perigo da mora.

Mas a inconstitucionalidade formal e material do decreto, que permite funcionários governamentais terem amplo acesso às informações bancárias de investigados, envolve múltiplos questionamentos de natureza fática. Será que temos a maturidade democrática para permitir a possibilidade de quebra de sigilo por aqueles que não integram o Judiciário? que segurança (jurídica) e certeza nas relações teremos a partir de agora? qual o grau de imparcialidade das decisões emanadas de autoridades administrativas?

Deixemos essas questões para a meditação de todos. Seja como for, não resta dúvida: os corifeus do “direito globalizado” estão fulminando a Constituição. Dessa vez, a investida ficou por conta do Decreto n. 3.725/01 que, ao regulamentar preceito da Lei Complementar n.105/01, permitiu a Receita Federal quebrar o sigilo bancário. Quer dizer, um ato normativo primário, inerente à competência exclusiva do Congresso Nacional, não sujeito à sanção nem veto, discutido por maioria simples, passou por cima da Carta Magna, ferindo prerrogativas comezinhas de pessoas físicas e jurídicas.

Finalmente, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, em linha de princípio, reconheça a inconstitucionalidade formal e material da espécie em causa. É que o sigilo bancário está submetido à reserva de jurisdição. Por este postulado somente magistrados podem praticar atos inerentes à função judicante, pois há assuntos que devem ser submetidos à esfera única de apreciação dos juízes. Terceiros não podem interferir em matérias que a Carta Política, explicitamente, deixou a cargo do veredito jurisdicional.

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