O novo tratamento para os juros moratórios no Brasil

Luciano de Almeida Freitas*

Na vigência do Código Civil anterior, os artigos 1.062 e 1.063 estabeleciam que a taxa de juros moratórios, se outra não fosse convencionada entre os contratantes, seria de 6% (seis por cento) ao ano. Tal flexibilidade de fixação foi reprimida pela letra do artigo 1o do Decreto n. 22.626/33, a Lei da Usura, com a modificação dada pelo Decreto-lei nº 182/38, que proibiu a estipulação da taxa de juros superior ao dobro da taxa legal fixada pelos artigos supra mencionados na ordem de 6% ao ano. Desta feita, o artigo 1o possibilitava que os juros pudessem ser estipulados até o limite do dobro da taxa legal, ou seja, 12% ao ano.

Com a entrada em vigor do novo Código Civil em janeiro último, ficou estabelecido um novo tratamento para os juros moratórios, qual seja:

Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Neste sentido, a Lei n. 9.065/95 em seu artigo 13 dispõe que: “… a partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da Lei nº 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da Lei nº 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da Lei nº 8.981, de 1995, o art. 84, inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da Lei nº 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente.”

Em outras palavras, e num primeiro momento, o artigo 406 do novo Código Civil estabelece que a taxa de juros moratórios será igual àquela que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devido à Fazenda Nacional, hoje a taxa SELIC.

A taxa SELIC é o índice utilizado para a correção dos débitos e créditos tributários federais e previdenciários. O Sistema Integrado de Liqüidação e Custódia (SELIC) é regulado pela Circular BACEN nº 2.727/96, para ” o registro de títulos e depósitos interfinanceiros por meio de equipamento eletrônico de teleprocessamento, em contas gráficas abertas em nome de seus participantes, bem como o processamento, utilizando-se o mesmo mecanismo de operações de movimentação, resgates, ofertas públicas e respectivas liqüidações financeiras.”

A taxa SELIC, mensalmente fixada pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), reflete a liqüidez dos recursos financeiros no mercado monetário, entretanto, sua utilização como sucedâneo dos juros moratórios vem sendo e deverá continuar sendo contestada pela doutrina e pela jurisprudência vez que a mesma possui natureza compensatória, englobando atualização monetária e juros remuneratórios. Neste sentido é o entendimento do rel. Min. Franciulli Neto proferido no Resp. 212460, j. 21.10.02):

A Taxa SELIC para fins tributários é, a um tempo, inconstitucional e ilegal. Como não há pronunciamento de mérito da Corte Especial deste egrégio Tribunal que, em decisão relativamente recente, não conheceu da argüição de inconstitucionalidade correspectiva (cf. Incidente de Inconstitucionalidade no Resp n. 215.881/PR), permanecendo a mácula também na esfera infra-constitucional, nada está a empecer seja essa indigitada Taxa proscrita do sistema e substituída pelos juros previstos no Código Tributário (artigo 161, § 1º, do CTN).

A utilização da Taxa SELIC como remuneração de títulos é perfeitamente legal, pois, toca ao BACEN e ao Tesouro Nacional ditar as regras sobre os títulos públicos e sua remuneração. Nesse ponto, nada há de ilegal ou inconstitucional. A balda exsurgiu quando se transplantou a Taxa SELIC, sem lei, para o terreno tributário.

A Taxa SELIC ora tem a conotação de juros moratórios, ora de remuneratórios, a par de neutralizar os efeitos da inflação, constituindo-se em correção monetária por vias oblíquas. Tanto a correção monetária como os juros, em matéria tributária, devem ser estipulados em lei, sem olvidar que os juros remuneratórios visam a remunerar o próprio capital ou o valor principal. A Taxa SELIC cria a anômala figura de tributo rentável. Os títulos podem gerar renda; os tributos, per se, não.

Determinando a lei, sem mais esta ou aquela, a aplicação da Taxa SELIC em tributos, sem precisa determinação de sua exteriorização quântica, escusado obtemperar que mortalmente feridos de frente se quedam os princípios tributários da legalidade, da anterioridade e da segurança jurídica. Fixada a Taxa SELIC por ato unilateral da Administração, além desses princípios, fica também vergastado o princípio da indelegabilidade de competência tributária.

Divergência jurisprudencial conhecida, porém parcialmente provido o recurso pela alínea “c”.

Recurso especial provido, em parte, pelas alíneas “a” e “c” para excluir a aplicação da taxa SELIC e determinar a incidência de juros moratórios legais de 1% ao mês e correção monetária pelos índices oficiais desde o recolhimento indevido.

Não sendo, como acima verificado, possível a utilização da taxa SELIC como a taxa de juros remuneratórios nos termos do artigo 406 do novo Código Civil, verificar-se-á duas possibilidades.

Por analogia, consoante os termos do artigo 161, parágrafo 1o do Código Tributário Nacional, determina que “se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês.” Desta feita, aplicar-se-ía ao artigo 406 como sendo a taxa de juros legais aquela descrita no parágrafo 1o do artigo supra, ou seja, 1% ao mês.”

Entretanto, tal decisão poderia suscitar, também, dúvidas quanto sua aplicabilidade aos débitos de natureza não tributária, o que, por sua vez, possibilitaria a indagação das partes contratantes quanto a utilização ou não da taxa SELIC como a taxa legal de juros a ser aplicada nos termos do artigo 406 do Código Civil.

Por sua vez, a Constituição Pátria, em seu artigo 192, parágrafo 3o enuncia que “a taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”

Nesse sentido, ainda que norma de eficácia limitada, não sendo auto-aplicável, dependendo, portanto, de regulamentação como afirmado pelo Supremo Tribunal Federal, o artigo 192 parágrafo 3o da Carta Magna agiria como um inibidor, coibindo o legislador ordinário de editar norma infra-constitucional em sentido contrário à norma constitucional infringindo, destarte, o princípio da hierarquia das leis que constitui o fundamento de validade da ordem jurídica nacional.

Com efeito, nenhuma norma infra-constitucional poderia, em hipótese alguma, vir a se sobrepor à taxa de juros máxima de 12% já fixada pela Constituição Federal, ou seja, se nenhuma norma infra-constitucional poderá elevar a taxação acima do mencionado teto, não se vê como deixar de reconhecer ao artigo 192, paráfrafo 3o da Lei Maior sua aplicação imediata. Vale mencionar, também, que a edição de lei complementar que venha a regulamentar o artigo em questão resultará na total inoperalidade da taxa SELIC para o fim pretendido.

Mister se faz salientar, ainda, que a estipulação dos percentuais da taxa SELIC não são estabelecidos por lei, sendo fixados por atos do Conselho de Política Monetária. Portanto, a aplicação da SELIC que é estipulada pelo COPOM, por meio de atos normativos infra-legais, estaria em completa desconformidade com a sistemática jurídico-contitucional pátrio. Acrescenta-se a esta questão, o fato de ser a mesma verdadeira taxa remuneratória do capital, não se prestando para a cobrança dos juros de mora.

Assim, dentro desse contexto, caso o emprego da SELIC implique juros legais de mora superiores àqueles definidos pela norma Constitucional, a mesma virá em socorro delimitando dita taxa à 1% ao mês ou 12% ao ano.

Diante dessas considerações, verifica-se que a imposição de pagamento dos juros legais de mora cobrados com base na taxa SELIC, nos termos do artigo 406 do atual Código Civil, resta contrária à nossa ordem jurídica. Em verdade, esta poderá ser – ou não – a orientação a ser adotada pelo Poder Judiciário pátrio, devendo a matéria, desta feita, ser amplamente questionada pelos profissionais do Direito, mesmo que na busca pelos juros justos venhamos a testemunhar um maior acúmulo de ações judiciais.

Luciano de Almeida Freitas é advogado em São Paulo, mestre em Direito Financeiro e Bancário – LL.M., Boston University School of Law e vice-presidente da Young Lawyers Section da Inter-American Bar Association – IABA, em Washington, D.C., EUA.

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