Nascer para quê?

Recentemente, participei de uma mesa redonda, sobre violência, na Faculdade de Filosofia de Campos e, em seguida, de um programa de entrevistas, onde suscitei um tema extremamente polêmico, sendo quase linchado. Divido, agora, a discussão com os que me honram lendo esta coluna, no intuito de fomentar o debate, tão importante para formar opiniões: refiro-me ao controle de natalidade.

Este tema parece quase que um assunto proibido; raramente se ouve falar nisto. Há os que consideram uma heresia. Há os que consideram um pecado. Uma violência. Um atentado aos direitos humanos fundamentais. Um gesto de preconceito, já que o controle só é proposto para os casais de baixa renda.

Pois bem. Não vejo a discussão sob esta ótica. Muito pelo contrário. É o que pretendo expor.

Começo formulando uma indagação: como se pode pensar em fazer políticas públicas eficazes, que consigam, pelo menos, minorar o problema da fome no Brasil, enquanto as famílias de baixa renda continuarem, como perdão da expressão, a despejar não raras vezes uma dezena de filhos, sem a menor condição de dar a eles uma vida, digamos, pelo menos humana? Como imaginar que essas famílias consigam viver senão abaixo da linha da miséria? É racional, sob o argumento do livre arbítrio, permitir que casais irresponsáveis coloquem no mundo uma vida fadada, não só ao próprio sofrimento, como a aumentar o sofrimento de outras vidas, aí compreendidas as do próprio casal e de seus outros filhos?

Insisto em que essas crianças, filhas de casais que já vivem abaixo da linha da miséria, não possuem nenhuma perspectiva de vida com dignidade. Se escaparem da mortalidade infantil, se sobreviverem às doenças típicas da infância e da juventude, certamente, quando crescerem, vão ser cooptadas pelo exército do tráfico, que cada vez mais se aproveita desses infelizes para recrutar soldados, atraídos pelo ganho fácil e generoso. Se resistirem a esta última investida do infortúnio, então estarão fadadas a mendigar esmolas, que, com a piora geral do padrão de vida de toda a população, ficam cada vez mais escassas.

Onde vamos parar: uma nova Etiópia?

Por mais que o Governo invista, ainda que o Fome Zero funcione, enquanto não se fechar a torneira da reprodução desvairada e inconseqüente, quem acredita em solução para o problema, que nasce e cresce em progressão geométrica?

Sou cético. Creio que não haja solução desse jeito.

O caminho, penso, é inevitável: há de se combater o mal pela raiz. Chega de irresponsabilidade: deve-se discutir, de forma séria e sem preconceitos, alheio a qualquer conotação ideológica ou religiosa, a questão do controle de natalidade para os casais de baixa renda.

Não se pode deixar procriar quem mal consegue se manter, para que a situação, já grave e precária, não se agrave ainda mais.

Inicialmente, pode-se até pensar no meio termo: como norma de transição, paliativa, à guisa de teste, sugiro uma política pública de planejamento familiar, que busque estimular as famílias de baixa renda a não terem filhos, através da distribuição gratuita de preservativos e pílulas anticoncepcionais e, mais do que isto, através da realização, pelos hospitais da rede pública, de cirurgias gratuitas de vasectomia e laqueadura de trompas, para aqueles que assim desejarem. Há de se pensar em um incentivo para isto, inclusive fiscal. Para as famílias de baixa renda, não deveria haver um salário família e nem dedução em imposto de renda; mas o pagamento de um imposto por filho irresponsavelmente concebido. Quase que uma multa.

Chega a ser iníquo e, porque não dizer, absurdo os hospitais públicos e os conveniados do SUS não realizarem, gratuitamente, vasectomia e laqueadura de trompas, para as pessoas que, querendo planejar suas famílias, não possam custear esses procedimentos cirúrgicos em hospitais particulares. Esses procedimentos, repito, devem não só ser realizados, como, também, incentivados, estimulados.

Que me perdoe a Igreja mas, vamos deixar a hipocrisia de lado: nem as crianças dos dias atuais vêem mais o sexo apenas para fins de reprodução. Hoje em dia, é mais fácil convencer uma criança a acreditar em Papai-Noel do que nisto (no sexo só para reprodução).

Planejamento familiar custeado pelo Estado é o mínimo. Polemizar este assunto (o do planejamento familiar consentido), com todo o respeito, é um falso moralismo, uma hipocrisia arcaica e anacrônica.

Se não for o bastante, ouso ir além: defender o controle de natalidade compulsório, com a esterilização dos casais que já vivem abaixo da linha da miséria. Só assim corrigir-se-á uma distorção que, apesar de bastante debatida, não tem merecido a devida reflexão: estatísticas apontam que, dentre os casais de classe média e alta, o número de filhos é infinitamente menor do que dentre os casais pobres e miseráveis. Como conviver com isto? Qual a explicação? Só pode ser uma dessas duas: ou falta de esclarecimento, o que pode ser suprido com o planejamento familiar aqui defendido; ou uma falta completa de responsabilidade, o que deve ser combatido, no interesse da própria família e da pobre alma que está por nascer, para ser a grande vítima desta irresponsabilidade.

Não me venham falar do direito individual da mãe e do pai; do livre arbítrio; das liberdades individuais. A se tutelar isto, é preferível, a meu ver, ser protegido o direito a uma vida digna de todos aqueles que estão por nascer de forma irresponsável e inconseqüente. Entre garantir aos pais o exercício irresponsável do direito de procriar, prefiro garantir aos eventuais filhos o direito a uma vida humana e digna.

Quem não pode ter filho, não deve tê-lo. E o Estado deve ter a coragem de garantir isto: o direito à dignidade dos filhos e de toda a família; não à irresponsabilidade de seus pais.

Aguardo o saudável e democrático linchamento (ou melhor… debate).

Marcelo Lessa Bastos
Promotor de Justiça
Promotoria de Proteção aos Direitos Difusos
mlbastos@fdc.br

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