Critérios definidos pelo STJ trazem pouco avanço na judicialização da saúde

Autor: Daniel A. Dourado (*)

 

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu critérios para concessão de tutela judicial no fornecimento de medicamentos que não integram as listas oficiais do Sistema Único de Saúde (SUS). A decisão foi proferida no julgamento do Recurso Especial 1.657.156, ocorrido no dia 25 de abril, e define uniformização de jurisprudência após quase um ano de suspensão de todos os processos judiciais sobre esse tema (uma vez que foi admitido Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas em maio de 2017).

De acordo com o entendimento fixado pelo STJ, o Estado é obrigado a fornecer medicamentos que estejam fora das listas do SUS se houver três requisitos, cumulativamente: 1) laudo médico que afirme que o medicamento é necessário; 2) alegação de incapacidade financeira do usuário; e 3) existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

É importante fazer algumas considerações sobre essa decisão.

Em primeiro lugar, ao delimitar parâmetros que desconsideram os protocolos clínicos e os custos dos medicamentos, esses critérios avançam pouco no sentido de conciliar as necessidades de saúde da população — a custos cada vez maiores, sobretudo em decorrência da incorporação tecnológica — com o problema da escassez de recursos, que é a realidade do Estado social. Dessa forma, persiste a condição de acesso ao Judiciário como elemento definidor do acesso à saúde, mantendo a desigualdade entre demandantes e não demandantes. Ou seja, quem se beneficia da via judicial garante determinados produtos que não são disponibilizados ao restante da população.

Cabe dizer que um medicamento pode não constar das listas oficiais do SUS ou por ter sido recentemente disponibilizado no mercado, ou pelo fato da haver alternativas terapêuticas já fornecidas pelo SUS. Os requisitos adotados pelo STJ não distinguem se determinado medicamento não está incorporado nas listas oficiais por decisão fundamentada das instâncias competentes, após análise técnica, por já existir substituto terapêutico no SUS (eventualmente a custo mais baixo).

Para que haja equidade e seja garantida a universalidade, é fundamental que existam limites definidos no que pode ser concedido em tutela judicial, observando as instâncias originalmente responsáveis pela elaboração das políticas públicas de saúde. Isso porque, na judicialização da saúde, há um deslocamento no eixo decisório para o Judiciário, o que, além de induzir um “planejamento forçado” ao Executivo — que, de certa forma, até pode ser acomodado —, implica realocações forçadas de recursos, desequilibrando ainda mais o sistema de saúde, que tradicionalmente já trabalha no limite da escassez.

A tese fixada pelo STJ basicamente segue aquilo que foi definido como diretriz pelo Supremo Tribunal Federal desde 2010, no julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 175, em decisão sem caráter vinculante. A diferença é que os parâmetros definidos pelo STF em 2010 distinguem medicamento novo de medicamento experimental. Segundo esse entendimento do STF, o medicamento novo, mesmo que ainda não aprovado pela Anvisa ou integrado às listas do SUS, pode ser objeto de tutela judicial, em caráter excepcional (desde que devidamente registrado no país de origem). O medicamento experimental, que esteja em fase de pesquisa clínica, ainda sem registro (não liberado para venda), não pode ser fornecido.

Vale ressaltar que o STF ainda discute dois pontos importantes em ações com repercussão geral, os recursos extraordinários 566.471/RN e RE 657.718/MG: 1) a obrigatoriedade de o poder público fornecer medicamentos de alto custo que não estejam contemplados nas listas formuladas pelos gestores do sistema público de saúde; e 2) a obrigatoriedade de o Estado fornecer medicamento não registrado na Anvisa. As decisões desses dois recursos, que estão em julgamento conjunto, devem consolidar um entendimento para direcionar a judicialização da saúde no que se refere a fornecimento de medicamentos pela administração pública. Os votos já proferidos vão no sentido de delimitar a intervenção do Poder Judiciário para situações extremas, salientando a observância o modelo regulatório já instituído, com base na Política Nacional de Medicamentos.

Outra consideração importante sobre a decisão do STJ em questão é que ela inverte o sentido da regulação ao estabelecer que o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) sejam comunicados para avaliar a viabilidade de incorporação no SUS do medicamento pleiteado, após o trânsito em julgado de cada processo. O mais adequado seria a assimilação pelo Judiciário do papel das instâncias técnicas, como a Conitec, e das políticas públicas formuladas para regulação de medicamentos, como a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Um caminho para isso seria que as demandas fossem apresentadas em face da União, pois a responsabilidade pela incorporação ou não de medicamentos é exclusiva da esfera Federal. Essa possibilidade está delineada pelo STF também no julgamento conjunto dos recursos extraordinários mencionados.

Nesse sentido, o ponto de maior fragilidade dos critérios definidos pelo STJ é exigir apenas que um médico responsável ateste a necessidade do medicamento e da ineficácia dos fármacos já fornecidos pelo SUS. Na racionalidade do sistema de saúde, é essencial que esses parâmetros sejam estabelecidos e validados com base em protocolos e evidências científicas. Com a ressalva das doenças raras, que demandam regulamentação específica por não se enquadrarem adequadamente no paradigma da medicina baseada em evidências, todos os demais casos deveriam seguir a regulação de medicamentos já vigente no SUS, prevendo a aplicação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas oficiais como requisito dos laudos médicos para demanda de medicamentos. Assim, o objetivo dos critérios deveria ser o de provocar a incorporação do medicamento pleiteado ao SUS. As exigências judiciais de fornecimento de medicamentos a partir de prescrições específicas deveriam ficar restritas a situações muito excepcionais.

O atual modelo regulatório para assistência terapêutica é fruto da indispensável regulamentação da integralidade do SUS, feita pela Lei 12.401/2011. É pautado em evidências científicas que consideram não só a segurança e a eficácia de uma nova tecnologia, como também os reflexos econômicos e sociais dela derivados. Entretanto, as decisões judiciais, em sua maioria, continuam simplesmente ignorando essa lei federal.

O direito à saúde não compreende só as pretensões materiais, como medicamentos e serviços de saúde, mas também o direito a ter uma regulação eficaz na qual esteja ancorado o sistema sanitário. A existência de procedimentos administrativos e de decisões de natureza técnico-científica são garantias que integram o direito fundamental à saúde. Espera-se que o Judiciário comece a reconhecer isso, tomando uma direção mais harmônica com o sistema de saúde público e universal fundado pela Constituição brasileira. Com a palavra, o STF.

 

 

 

Autor: Daniel A. Dourado é sócio do Dourado, Ferreira e Lemos Advogados, médico, professor da Escola de Ciências da Saúde da Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e doutorando e mestre em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.


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