Considerações sobre a Litigância de má-fé no Processo Civil

( * ) Rosemary Brasileiro

A litigância de má-fé prevista no Código de Processo Civil vem, desafortunadamente, tornando-se prática contumaz entre aqueles que pleiteiam perante o Poder Judiciário buscando a prestação jurisdicional com vistas ao atendimento das pretensões que entendem legais e legítimas.

Muitas das vezes, todavia, no ato de postular olvidam as partes de dever fundamental que deve orientar aqueles que se servem do mencionado Poder, multiplicando demandas e condutas divorciadas da realidade, do Direito e da ética.

Na ânsia de demandar muitas vezes indevidamente, as pessoas, por conduto de procuradores judiciais nem sempre comprometidos com os ditames e linhas traçados pelo Direito e pelas normas morais a ele agregados, enveredam por caminhos tortuosos que conduzem à prática de condutas atentatórias à dignidade da Justiça e ao respeito que deve prevalecer em relação às demais partes envolvidas no litígio e a terceiros que se vejam envolvidos na demanda.

O dever de correção e de honestidade no que toca ao ajuizamento e desenvolvimento do processo, segundo se tem notícias, remonta à Grécia antiga, berço da cultura e da civilização, época em que assomava já a preocupação com a obrigação relacionada à veracidade e à boa-fé nos atos do processo civil; O litigante faltoso, vale dizer, a parte que descumprisse o juramento prestado adredemente no átimo do ajuizamento do pleito, o denominado “ius iurandum calumnias”, tornava-se alvo de aplicação de pena ou sanção determinada para aquela finalidade.

No direito romano a litigância temerária, tanto no que se referia à ação do autor quanto à contestação levada a efeito pelo acionado, era veementemente repelida, assim por que, a singela sucumbência de um dos proponentes no processo de natureza civil, recebia o chamado “Sacramentum”, que constituía pena cominada ao vencido, de caráter pecuniário, ao final revertia em prol do erário público. Era suficiente, portanto, como visto, a mera ocorrência da sucumbência para que tivesse aplicação a sanção, de uma feita que prevalecia a ilação de que o dever de veracidade processual havia sido vulnerado.

Procedia-se a promessa solene ante o juiz da causa pelas partes autora e ré, no sentido de que seria paga ao Estado determinada quantia caso a pretensão ou a contra-pretensão movimentada pelas partes não fosse justa ou certa. Na mesma linha, a existência das chamadas “penas processuais” com o escopo de impedir-se as partes de lançar mão das chicanas processuais.

Modernamente, as legislações vigentes nos países em derredor do mundo, aludem à proibição de condutas específicas, podendo-se citar as manobras dilatórias que tenham por escopo impedir o regular desenrolar do processo; a desonestidade das partes calcadas em afirmações inverídicas; a produção de provas não confiáveis; a malícia da parte no modo de conduzir-se no processo, etc., havendo que estar tudo assentado no princípio segundo o qual aos contendores compete portar-se de maneira ética e incensurável com o exclusivo objetivo consubstanciado na procura do “puctum saliens”, qual seja do ponto nodal da lide, o qual deve informar, por óbvio, o pedido por eles formulado.

No direito positivo brasileiro o legislador buscou elencar de maneira objetiva as hipóteses de estabelecimento da litigância de má-fé, resultando expressamente posto que responsabilizar-se-á por perdas e danos e pelo pagamento de multas aquele que, no ato de postular, agir com deslealdade, seja ele autor, réu ou interveniente processual. A mim se me parece, diante das disposições procedimentais em vigor no país, que o artifício fraudulento não deverá servir como instrumento de uso entre as pessoas que operam de alguma forma o Direito, pois que tal prática nefanda conduz inelutavelmente à desmoralização das instituições incumbidas de promover a realização da Justiça e à prevalência do resguardo dos direitos dos cidadãos.

Tocante ao tema sob enfoque, preconiza o art. 17 do Código de Processo Civil o seguinte:

“Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II – alterar a verdade dos fatos;

III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI – provocar incidentes manifestamente infundados;

VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”.

Resultou constatado linhas atrás que é reprovável a utilização do processo pelas partes com o intuito de faltar-se com o dever da verdade e com o emprego de meios fraudulentos na persecução dos objetivos materiais/processuais. Sabe-se que o clima de concórdia no processo, dadas às injunções e condições sociológicas e políticas que circundam as relações humanas, não é tarefa fácil, avultando, por força de conseqüência, não raras vezes, a quebra das regras que informam ou que devem informar o princípio da lealdade, terminando por dar ensejo ao cometimento do ilícito processual. Daí a preocupação do legislador do Código de Processo Civil no que concerne à preservação do comportamento ético dos sujeitos do processo e de todos aqueles que estejam com ele envolvidos, conforme verifica-se do teor dos arts. 14, 15, 17, 18, 31, 133, 135, 144, 147, 153, 193 e ss, 600 e 601 da lei adjetiva civil.

No sentido objetivo, de conseguinte, a boa-fé nas relações processuais constitui condição essencial para a efetivação do Direito, em face do que é ela pressuposto basilar de toda construção jurídica.

No que concerne à responsabilidade do litigante de má-fé, na conformidade dos princípios que regem o Direito brasileiro, é sempre de ordem patrimonial, o que denota a impostergabilidade do dever de indenizar por parte daquele que tergiversou à obrigação de lealdade processual no cometimento de conduta vedada que venha a acarretar danos à parte adversária ou a terceiros.

É oportuno, no átimo, reproduzir-se o teor do art. 18 do Código Procedimental que assim pontifica:

“O juiz ou o Tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a 1% (um por cento) sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou”.

A condenação retromencionada, como bem assinalam os doutos, deve assumir caráter dúplice, qual seja, “sancionador e reparador”, “punitivo e compensatório”, haja vista que acham-se ínsitas no fato ilícito que venha a ser cometido pela parte ou por outrem, as duas vertentes que orbitam em torno da produção de gastos materiais e da geração de danos morais, na medida em que resta agredido e conspurcado o direito da parte contrária em ver o processo pautado por condutas éticas, sem prejuízo do malferimento dos valores relativos à dignidade da Justiça e do próprio Estado.

O tema relativo à lealdade processual no Direito brasileiro tem sido pouco desenvolvido, como bem observou Vicente Greco Filho, convindo, no entanto, pôr em relevo que o assunto foi realçado conveniente e suficientemente no texto do Código de Processo Civil, assim por que não seria admissível separar-se do processo propriamente dito os princípios e postulados que regem a conduta moral e ética dos cidadãos, especificamente das partes querelantes.

Além da enumeração constante do art. 14 do Diploma Procedimental, que alude aos deveres das partes e de todos os que de alguma maneira participam do processo, são previstos no diploma processual outras obrigações ético-deontológicas, podendo ser citadas à guisa de exemplificação, o conveniente comportamento em audiência; não atentar contra a dignidade da Justiça; tratar testemunhas com urbanidade; tratar-se, de igual, as partes com urbanidade; não utilização de expressões injuriosas e/ou ofensivas nos textos escritos adunados ao processo.

A condenação, na hipótese da litigância de má-fé importa não apenas à parte prejudicada, mas fundamentalmente à própria Justiça que ostenta interesse na coibição dos abusos porventura praticados pelas partes porque o maior destinatário das normas relativas à boa-fé é o Poder Judiciário e o Estado e, por via de conseqüência, a comunidade como um todo, que é ou seria beneficiada com a brevidade das pautas de audiência e dos julgamentos dos recursos pendentes nos Tribunais.

Haveria assim, uma distribuição da Justiça de maneira mais eficaz e célere, o que propiciaria por certo considerável e salutar avanço no que respeita à dignidade da Justiça, donde a possibilidade de poder-se visualizar a justificação plena com vistas à condenação do litigante de má-fé mesmo que o prejudicado direto com o ato desleal permaneça silente.

Ao ensejo, é oportuno citar o ensinamento do notável HELIO TORNAGHI que, sobre o tema manifestou-se ponderando que “Os meios de que as partes podem valer-se para alcançar a prestação jurisdicional subordinam-se ao fim publicístico do processo, fim esse que é a tutela da ordem jurídica pela distribuição da justiça”.

ROSEMARY BRASILEIRO

Procuradora de Justiça

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