STJ: Facebook deve remover conteúdo ofensivo a menor na internet, mesmo sem ordem judicial

Para atender ao princípio da proteção integral, é dever do provedor de aplicação de internet proceder à retirada de conteúdo que viola os direitos de crianças e adolescentes assim que comunicado do caráter de censura da publicação, independentemente de ordem judicial.

Com esse entendimento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial em que o Facebook questionava sua condenação por se recusado a exclusão mensagem que trazia a foto de um menor com seu pai e acusava este último de envolvimento com pedofilia e estupro.

Segundo o relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, a divulgação da foto do menor sem permissão de seus representantes legais, vinculada a conteúdo impróprio, em total desacordo com a proteção conferida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), representou “grave violação” do direito à preservação da imagem e da identidade.

Ausência de ordem judicial não prejudica proteção ao menor
No recurso, o Facebook invocou o artigo 19 da Lei 12.965 / 2014 (Marco Civil da Internet), segundo o qual o provedor só pode ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se deixar de cumprir ordem judicial específica para torná-lo indisponível.

No entanto, seguindo o voto de Antonio Carlos Ferreira, a Quarta Turma entendeu que o provedor de aplicação que se nega a excluir publicação deensiva a pessoa menor de idade, mesmo depois de notificado – e ainda que sem ordem judicial -, deve ser condenado a indenizar os danos causados ​​à vítima.

A controvérsia teve origem em ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais, ajuizada por pai e filho contra Facebook Serviços Online do Brasil LTDA., Em razão da publicação da mensagem ofensiva, em setembro de 2014.

O pai denunciou o fato à empresa, que, no entanto, se recusou a excluir a publicação, sob o argumento de ter analisado a foto e não haver encontrado nela nada que violasse os “padrões de comunidade” da rede social. Na primeira instância, o Facebook foi condenado a pagar R $ 30 mil para cada uma das causadas, pai e filho, a título de danos morais – sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Zelar pela dignidade do menor é obrigação de todos
Para Antonio Carlos Ferreira, o artigo 18 do ECA e o artigo 227 da Constituição Federal impõe, como dever de toda a sociedade, zelar pela dignidade da criança e do adolescente, evitando qualquer tipo de tratamento vexatório ou constrangedor.

O magistrado frisou que o ECA possui caráter “especialíssimo” e prevalece como sistema protetivo, em detrimento da lei que rege o serviço de informação prestado pelo provedor de internet.

Dessa forma, explicou o relator, no caso julgado, não pode haver isolamento isolado do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que condiciona a responsabilização civil do provedor ao prévio descumprimento de ordem judicial.

“Há uma imposição legal, com eficácia erga omnes, determinando não apenas que se respeite a integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, mas prevendo uma obrigação de agir, direcionada a todos da sociedade, que passam a ser agentes de proteção dos direitos do menor, na medida do razoável e do possível”, afirmou.

Responsabilidade civil por omissão de conduta
O ministro destacou que, por força do princípio da proteção integral e sob a ótica da vulnerabilidade social de crianças e adolescentes, a jurisprudência do STJ definiu que a veiculação da imagem de menor de idade pelos meios de comunicação, sem autorização do responsável, caracteriza ato ilícito por abuso do direito de informar, o que gera dano moral presumido (in re ipsa) e a consequente obrigação de indenizar.

A responsabilidade civil do Facebook, para o relator, “deve ser analisada sob o enfoque da relevante omissão de sua conduta, pois deixou de adotar providências que, indubitavelmente sob seu alcance, minimizariam os efeitos do ato danoso praticado por terceiro, o que era seu dever “.

Processo: REsp 1783269

TRF1: Aprovado em concurso da PRF não pode ser excluído do certame com base em mera possibilidade de evolução de doença

Um candidato participante do concurso público para a Polícia Rodoviária Federal (PRF), diagnosticado com lordose acentuada, não pode ser eliminado da concorrência com base na mera possibilidade de evolução da doença, decidiu a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em processo de relatoria do desembargador federal Souza Prudente.

O magistrado de primeiro grau julgou improcedente o pedido de nulidade da decisão que eliminou o autor do concurso público para a PRF. O então candidato foi considerado inapto na avaliação de saúde, por possuir “condição incapacitante lordose acentuada apresentando ângulo de Ferguson maior que 45”.

Verificou o relator, na álise da apelação interposta pelo autor, que o edital do concurso estabeleceu a lordose acentuada como condição incapacitante para as atribuições do cargo, mas que também prevê que as alterações nos exames médicos devem passar por análise de junta médica especializada.

Destacou o magistrado que a capacidade física do apelante foi constatada pelos diversos laudos médicos presentes no processo, e acrescentou que “a junta médica se baseou em um mero juízo de probabilidade futuro no que diz respeito ao agravamento das condições físicas do autor em decorrência do trabalho. Contudo, na atualidade, o demandante apresenta um bom condicionamento físico, tanto é assim que foi aprovado no teste de aptidão física, sendo, inclusive, praticante regular de artes marciais”.

Acrescentou o desembargador federal que a mera possibilidade de um evento futuro e incerto de agravamento da condição física não inviabilizam o legítimo exercício do cargo público almejado pelo demandante, e votou no sentido do provimento da apelação para anular a decisão que eliminou o candidato e assegurar seu direito de participar do curso de formação e, caso aprovado, sua nomeação e posse.

O colegiado, por unanimidade, deu provimento à apelação, nos termos do voto do relator.

Processo: 1004805-84.2019.4.01.3900

TJ/DFT determina que Metrô retire cartazes que fixam exigência de troco máximo

O juiz da 7ª Vara da Fazenda Pública do DF determinou que a Companhia do Metropolitano do Distrito Federal retire, no prazo de 10 dias, todos os cartazes que existem nas estações de metrô que fixam o teto de devolução de troco aos usuários. O Metrô DF deve ainda suspender os atos administrativos que dão base à regra. A decisão liminar foi publicada nesta terça-feira, 14/12.

Na ação popular, o autor narra que há, em todas as estações do metrô do Distrito Federal, cartazes que informam que o troco máximo é de R$ 50. Assevera que a regra, além de não possuir base legal, limita o acesso dos usuários ao transporte público e atenta contra os direitos do consumidor.

Ao analisar o pedido liminar, o magistrado observou que a exigência de troco máximo, além de não guardar adequação entre os meios que o metrô tem à sua disposição (e não utiliza) e os fins que precisa alcançar, não proporciona igualdade de tratamento aos usuários. Além disso, segundo o juiz, a norma não é compatível com o bom atendimento ao usuário.

“Não há qualquer justificativa legal ou constitucional para restrição de troco nas bilheterias do Metrô/DF, ao menos, enquanto a empresa pública não disponibilizar alternativas viáveis aos usuários (máquinas para venda de bilhete e/ou trocar dinheiro), que já existem em outros sistemas metropolitanos do Brasil, tal como no Metrô da cidade de São Paulo”, destacou o julgador.

O magistrado registrou ainda que as provas dos autos mostram que, nos casos em que não há possibilidade de fornecer troco, o serviço não é utilizado de forma gratuita. No entendimento do juiz, está presente o perigo de dano. “A manutenção dos cartazes pode gerar prejuízos aos usuários, impedindo, eventualmente, os passageiros de utilizarem o serviço público quando não possuírem cédulas que viabilizem a devolução de troco menor de R$ 50,00”, registrou,

Assim, foi deferida a liminar para determinar a retirada de todos os cartazes existentes nas estações de metrô do Distrito Federal que fixem teto de devolução de troco aos usuários, bem como para suspender os atos administrativos que sustentam a referida regra do troco máximo. O prazo é de dez dias.

Cabe recurso.

Processo: 0709070-42.2021.8.07.0018

TRT/MG: Mantém justa causa de motorista com CNH vencida que se envolveu em acidente

Os julgadores da Nona Turma do TRT de Minas confirmaram decisão do juízo da 31ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, que validou a dispensa por justa causa aplicada por uma empresa de engenharia a um motorista. O trabalhador estava com a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) vencida quando se envolveu em acidente de trânsito com o veículo de grande porte que conduzia. As provas evidenciaram que houve condução inadequada pelo motorista, reconhecendo o relator do recurso, desembargador Ricardo Antônio Mohallem, a culpa única e exclusiva do empregado. Para o magistrado, a falta foi grave o suficiente para ensejar a justa causa.

Ao recorrer da sentença, o reclamante sustentou que a empresa sabia que sua CNH estava próxima do vencimento e, mesmo assim, não exigiu prova da renovação, permitindo-o continuar a conduzir do veículo. Argumentou ainda que apenas o envolvimento no acidente, sem prova da culpa, não autorizaria a dispensa sem justa causa. O motorista pediu que a dispensa fosse modificada para sem justa causa, com pagamento das verbas rescisórias pertinentes.

Mas o relator não acatou a pretensão. Ao analisar o boletim de ocorrência lavrado por ocasião do acidente, constatou que a CNH do motorista foi apreendida por estar vencida há mais de 30 dias. Conforme registrado no documento, o profissional não observou a distância de segurança e a velocidade compatível com a via. Houve colisão com veículo de terceiro que trafegava na faixa correta. O veículo envolvido foi jogado contra a mureta, mesmo tendo o condutor sinalizado para o autor com buzina.

A empregadora dispensou o reclamante por justa causa dois dias depois, aplicando ao caso o artigo 482, alíneas “h” e “m”, da CLT, que se referem a atos de indisciplina e “perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado”. Este último item foi incluído pela Lei nº 13.467/17, conhecida como reforma trabalhista.

Na carta de dispensa, a reclamada registrou que o motorista deixou de comunicar o vencimento da CNH em 29/3/2019, considerada requisito imprescindível ao exercício da atividade remunerada. Nesse contexto, exerceu função de motorista de veículo automotor de grande porte, sem possuir habilitação necessária para tanto, e se envolveu em acidente de trânsito, durante o horário de trabalho, conforme relatado em boletim de ocorrência.

Na visão do relator, a empresa agiu corretamente, não podendo se impor a ela as consequências da omissão do trabalhador de não renovar em tempo hábil a sua CNH. O julgador ponderou que as obrigações como empregadora não excluem as do autor, indispensáveis ao exercício da profissão (artigo 159 do Código de Trânsito Nacional). Entre elas, todas que se relacionam à CNH, documento pessoal e intransferível. “É ele quem se candidata a obtê-la junto ao Departamento Nacional de Trânsito. Quem deve portá-la e exibi-la à autoridade competente”, pontuou.

Testemunha ouvida noticiou que a empresa fiscalizava a validade da CNH todo início de ano, informando aos motoristas eventual vencimento iminente. O próprio reclamante admitiu, em depoimento, que, ao ser informado do vencimento, comunicou à representante da empresa que precisava de um tempo para resolver “um probleminha no Detran”. Como apurado no processo, o “probleminha” era a suspensão do direito de dirigir por conduzir veículo sob efeito de bebida alcoólica.

Diante do contexto apurado, o voto condutor reconheceu que o acidente foi causado por culpa única e exclusiva do empregado, entendendo que a justa causa deve ser mantida. “A falta está indubitavelmente configurada. Sobre isso não é preciso mais discorrer. Os fatos falam por si. Nitidamente, não se trata de uma falta que possa passar em branco, como se não existisse. Foi gravíssima, seja pelos prejuízos materiais causados, seja pelos potenciais danos à própria vida humana”, foi enfatizado no voto, negando-se provimento ao recurso do trabalhador. A decisão foi unânime.

TRF1: Princípio da insignificância é aplicável na apreciação do crime de descaminho de ouro até tributos no valor de R$ 20 mil reais

Pequena quantidade de ouro, recebida pelo denunciado supostamente como pagamento de artigos de higiene vendidos em garimpo na Guiana Francesa, é tipificado como crime de descaminho e sujeito à incidência do princípio da insignificância, decidiu a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).

O Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia pelo crime de contrabando, rejeitada pelo juízo da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Oiapoque (AP), ao fundamento de que a circulação clandestina de ouro faz parte do cotidiano do município, e, na maioria das vezes, não é possível comprovar se o minério foi extraído em território nacional ou estrangeiro. Frisou aquele magistrado que não se trata de crime de contrabando, porque o ouro não é mercadoria proibida pela lei brasileira, enquadrando-se a conduta no tipo penal de descaminho, já que o minério foi obtido a partir da comercialização nos garimpos no território estrangeiro, e, pela pequena quantidade e valor, aplica-se o princípio da insignificância.

Ao apelar da decisão que rejeitou a denúncia, o MPF reiterou pelo enquadramento do crime de contrabando e afirmou ser inaplicável ao caso o princípio da insignificância, requerendo o recebimento da denúncia e o processamento da ação na primeira instância.

Ao analisar o processo, a relatora, desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, destacou que “a análise das provas indica que a origem do ouro é estrangeira, pois o réu admite tê-lo recebido no território da Guiana Francesa, no garimpo Sapucaia, em decorrência da venda de objetos e produtos de higiene pessoal aos garimpeiros”, e entendeu que se discute nos autos a possível prática do crime de descaminho e não de contrabando.

O magistrado prosseguiu o voto ressaltando que o denunciado foi detido na posse de 12,39g de ouro irregularmente inserido em território nacional, em violação à legislação tributária e aduaneira, correspondente à época ao valor aproximado de R$ 1.425,00 (mil e quatrocentos e vinte e cinco reais), e que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou a tese de que “o princípio da insignificância é aplicável, em relação ao crime de descaminho, no parâmetro de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) de tributos devidos com a importação irregular”, sendo o valor do ouro apreendido muito inferior a esse patamar.

Concluiu a magistrada o seu voto pelo desprovimento ao recurso em sentido estrito, no que foi acompanhada por unanimidade pelo colegiado.

Processo: 0000184-64.2018.4.01.3102

TJ/SC: Dissolvida relação, parte que mantém guarda de pet não pode querer dividir despesas

A 3ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) confirmou decisão de 1º grau que, entre outras determinações relativas a uma ação de dissolução de união estável que tramita em comarca da Grande Florianópolis, negou pedido de ajuda de custo formulado por uma mulher para manutenção de animal de estimação que ficou sob sua guarda após a separação do casal.

A desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta foi a relatora do agravo de instrumento que tratou da matéria e teve seu voto acompanhado de forma unânime pelos demais integrantes daquele órgão julgador. Para o colegiado, a agravante pode se sustentar com a remuneração do seu trabalho, e os custos do pet devem ficar por conta de quem desfruta da sua companhia.

Na origem, a mulher ajuizou ação de dissolução de união estável cumulada com pedidos de devolução de valores, partilha de bens, alimentos, danos morais e guarda, visitas e ajuda de custo para criação e cuidados a animal de estimação. No juízo de 1º grau, a magistrada bloqueou R$ 31.689 que o homem havia transferido para sua conta após a separação, mas negou a pensão e a ajuda de custo do animal de estimação.

Inconformada com a decisão interlocutória, a mulher recorreu ao TJSC. Postulou a fixação de alimentos conjugais e o deferimento de ajuda de custo para a manutenção do animal de estimação.

“Além disso, como corretamente inferido na origem, ao que tudo indica (e o tema deverá ser esmiuçado por ocasião da instrução do feito), não se cuida de condomínio em relação ao animal de estimação, nem de ‘guarda compartilhada’, razão pela qual o custeio das respectivas necessidades deve se concentrar na pessoa que desfruta da companhia do pet”, anotou a desembargadora em seu voto.

A sessão foi presidida pelo desembargador Fernando Carioni e dela também participou o desembargador Saul Steil. A decisão foi unânime. O processo tramita em segredo de justiça.

TRT/MG reconhece relação de emprego entre motorista e plataforma de aplicativo

O juiz Bruno Alves Rodrigues, titular da 2ª Vara do Trabalho de Divinópolis, reconheceu a relação de emprego entre um motorista e uma empresa de aplicativo de transporte, pelo período de julho de 2020 a setembro de 2021, sob a modalidade de contrato de trabalho intermitente. Na sentença, a empresa foi condenada a pagar ao trabalhador 13º salários, férias, FGTS do período do contratual, como também as verbas rescisórias decorrentes da dispensa sem justa causa (como aviso-prévio e multa de 40% do FGTS), além da multa pelo atraso no acerto rescisório, na forma do artigo 477 da CLT.

Em sua decisão, o julgador expôs os fundamentos que o levaram à conclusão sobre a existência dos pressupostos do vínculo de emprego na relação de trabalho que se desenvolveu entre o motorista e a empresa de tecnologia de transportes urbanos. Como forma de propiciar uma compreensão profunda do tema discutido, situou o caso dentro de um contexto histórico na era contemporânea, retratando as fases da revolução tecnológica moderna e seus efeitos na exploração e organização do trabalho humano: “Efetivamente, esta potente tecnologia preditiva acaba por marcar o advento de um novo modo de conjugação da relação entre capital e trabalho humano, e para melhor ilustrar as profundas mudanças na organização do trabalho e da economia a partir da mudança de paradigma tecnológico prevalente, imperativo se torna a compreensão dos quatro momentos que marcaram as fases tecnológicas da revolução industrial”, pontuou.

A terceira fase da revolução industrial – Revolução tecnológica digital – Aprendizagem profunda da máquina

Nas palavras do magistrado:

“Vivenciamos, na era moderna, uma revolução industrial que pode ser dividida em três fases, a última delas marcada pela chegada da era da informática, com a migração dos sistemas analógicos para os digitais (iniciada na segunda metade do século XX).

A revolução tecnológica digital, que marca a terceira fase da revolução industrial, acaba por ensejar, contraditoriamente, um grande enxugamento da própria presença do setor industrial na condução da forma de organização da vida em sociedade. Se, nas duas primeiras fases da revolução industrial, tanto o processo de formação do tecido social de coletivos urbanos quanto o desenho do modelo econômico de geração e distribuição de renda estavam diretamente ligados à atividade industrial, a partir da terceira fase da revolução industrial passa-se a verificar uma acentuada redução do papel da indústria na organização da vida em sociedade.

[…]

Consideramos equivocado, assim, associar apenas à indústria a fase revolucionária que se inicia com o advento da aprendizagem profunda da máquina, a partir de 2012. O potencial revolucionário da aprendizagem profunda da máquina reside exatamente na sua capacidade transformadora em relação ao setor de serviços, no qual se insere o ramo de atividade da reclamada, cuja carência de habilidades flexíveis quanto às quais até então não se mostrava viável a automação, e que hoje ocupa mais de 70% da mão de obra nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.

A revolução do aprendizado profundo atinge notadamente os trabalhadores expurgados do ambiente fabril em razão dos fenômenos da robotização, da terceirização e do outsourcing, e que passaram a cumprir rotinas flexíveis relegadas a um setor de serviços que crescia à proporção que se reduzia o tamanho da indústria submetida ao modelo de learn manufacturing.

A revolução da aprendizagem profunda, assim, ocorre dentro da revolução tecnológica digital (terceira fase da revolução industrial), mas já trazendo profundos efeitos que lhe são próprios no que diz respeito ao desencadeamento de uma reformulação no desenho organizacional da atividade econômica e da organização social”.

As três fases da revolução industrial – As mudanças estruturais na forma de trabalho, na figura do empregador e na operacionalização do controle exercido sobre o empregado.

“As três fases da revolução industrial se apresentam vinculadas a diferentes paradigmas tecnológicos da era moderna, e a estes se soma um quarto paradigma, também revolucionário, com o advento da aprendizagem profunda da máquina”, destacou o juiz.

A primeira fase – O magistrado explicou que a primeira fase da revolução tecnológica moderna (1760 a 1850), mais conhecida como revolução industrial, é desencadeada pela concentração física da maquinaria em fábricas. Tratava-se de um modelo de produção totalmente dependente do emprego do trabalho humano, inclusive no que diz respeito à matriz energética:

“O funcionamento das máquinas nas fábricas dependia do emprego direto da força humana, como se verificava na operação de vários teares, ou mostrava-se dependente da alimentação humana de carvão em fornalhas de caldeiras geradoras de força motriz a vapor. Assim, na interação homem-máquina situava-se a dependência tanto da geração da força motriz quanto da operacionalização da maquinaria. A subordinação da figura do trabalhador ao modelo produtivo era efetivada de forma direta, com controle da produção exercido pela figura do proprietário, dos proprietários (sociedades pessoais) ou de seus prepostos na gestão de um modelo de trabalho radicado na força e remunerado pelo tempo de eficiência na motricidade da maquinaria (relação subordinativa homem-homem na operação da máquina)”.

A segunda fase – De acordo com o juiz, a segunda fase dessa revolução (1850-1945) marca a passagem do modelo de fábrica para o modelo de indústria:

“Se primeiramente importava a concentração geográfica de trabalhadores e máquinas para melhor gestão da força de trabalho, inclusive no manejo humano de uma matriz energética localizada, nesta segunda fase houve ampliação exponencial da disponibilidade, acessibilidade e usabilidade da matriz energética, que passa do vapor para a energia elétrica e o petróleo. A eficiência destas novas matrizes energéticas permitiu nova modelagem da maquinaria, cujo funcionamento deixou de depender do emprego direto da força humana para passar a se vincular, automaticamente, a uma matriz energética externa. Nesta segunda fase, apesar da maquinaria já poder ser colocada em funcionamento de forma automática, ainda não havia tecnologia para programação de rotinas de tarefas a serem executadas exclusivamente pela máquina. Carecia-se da presença do homem na linha de produção, como eternizado no filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, de 1936. Em termos práticos, a execução do movimento de uma prensa deixou de depender do emprego da força humana, mas a eficiência do movimento desta prensa, para se alcançar a produção almejada, continuava a depender intrinsecamente da ação humana para se efetivar posicionamento de uma chapa metálica no local correto da prensa, com oportuno acionamento e ulterior retirada da peça para prosseguimento do seu tratamento em linha de produção. (…) As plantas industriais passam a ser estruturadas a partir do desenho de uma cadeia produtiva, cuja motricidade passa a ser automatizada, mas cuja eficiência operacional estará totalmente associada ao emprego da habilidade humana. (…) A verificação de um controle da força de trabalho ínsito a um processo ampliado de cadeia produtiva estruturada fez com que a subordinação do trabalhador migrasse da figura do proprietário para figuras interpostas e descentralizadas de chefias operacionais, que verticalmente se responsabilizavam por etapas da cadeia produtiva. A estruturação de empresas, assim, passa a estar mais focada no objetivo comercial do processo industrial, do que propriamente na condição pessoal dos sócios, o que fez com que a estruturação jurídica das sociedades empresariais migrasse acentuadamente do modelo de sociedades pessoais para o de sociedade de capitais, notadamente as sociedades anônimas”.

A terceira fase – Quanto à terceira fase da revolução tecnológica da era moderna (1945-2012), o julgador explicou que esta foi marcada pelo fenômeno da digitalização da informação, associada à capacidade computacional por programação apta à predição de rotinas de trabalho fixas, até então dependentes da habilidade humana:

“Nesta terceira fase, a automação se estendeu da força motriz para as tarefas operacionais dependentes de habilidades humanas afetas a rotinas plenamente previsíveis, eis que fixas e repetitivas. Da máquina automatizada passa-se à máquina automatizada e programável. As cadeias produtivas foram escrutinadas, separando-se, para assimilação da robótica, as habilidades programáveis. Já em relação aos serviços não programáveis/robotizáveis (por dependerem da plasticidade e da flexibilidade próprias à habilidade humana), estes passaram a ser separados entre essenciais ou não essenciais para descentralização do trabalho tido como não essencial, assim classificado aquele não associado, intrinsecamente, à atividade fim (a exemplo de serviços de asseio e conservação, marketing, call center, etc.). A disseminação de meios telemáticos de comunicação e, portanto, de uma forma de controle remoto, passou a permitir controle indireto sobre serviços descentralizados através da terceirização ou do outsourcing, além de se viabilizar um controle menos hierarquizado e mais horizontalizado da produção, eis que centrado muito mais na capacidade computacional de verificação e fiscalização de resultados atingidos pelo trabalhador do que propriamente na fiscalização por parte de uma chefia imediata (subordinação estrutural homem-empreendimento econômico). Se, na primeira fase da revolução, o enfoque da gestão estava centrado na operação da fábrica e, na segunda fase, o enfoque da gestão passou a estar focado no processo da cadeia produtiva, nesta terceira fase, a gestão passou a ter condições de se importar tão somente com a aferição do resultado da atividade de produção. A educação passou a estimular formação flexível da mão de obra para adaptação às diversas demandas localizadas de tarefas não automatizáveis. A segurança de contar com recursos de controle telemático de uma produção descentralizada, somada à predição computadorizada de resultados afetos a rotinas fixas, acabou por exponenciar o uso de estruturas jurídicas empresariais centradas muito mais no objetivo comercial das empresas do que na condição pessoal dos proprietários. Neste momento, mais do que sociedades anônimas focadas na cadeia produtiva, passa-se a se destacar a atuação de entes jurídicos desguarnecidos de objetivo empresarial próprio, eis que estruturados apenas para aportar investimentos e receber resultados de diversas empresas descentralizadas, notadamente a partir da conformação de holdings e da estruturação de fundos de investimento que visavam assentos em conselhos de administração empresariais. Os grandes centros urbanos estruturados no modelo de trabalho e renda definidos pelas primeiras fases da revolução industrial passam a conviver com crescentes taxas de desemprego e evasão, decorrentes da automação e do outsourcing. (…) Acentua-se a concentração de riquezas nas mãos dos gestores das holdings e dos fundos de investimento frente a pauperização da população progressivamente desempregada ou sujeitada a subempregos progressivamente precarizados em ambiência de concorrência instada em uma massa crescente de excluídos”.

A quarta onda revolucionária

Conforme destacou o juiz na decisão, é neste contexto socioeconômico e social que surge uma quarta onda revolucionária, a partir de 2012, com o advento da aprendizagem profunda da máquina. Ele chamou a atenção para o fato de que, nesta fase da revolução tecnológica, a subordinação do trabalhador ao empreendimento que lucra com a mão de obra deixa de ser estrutural e passa a ser algorítmica:

“A partir de então, rompe-se com a barreira protetora de postos de trabalho humano atrelada à capacidade preditiva ínsita à inteligência humana, substanciada exclusivamente no maior conhecimento de dados ou no desempenho de tarefas de rotinas flexíveis (grifos originais). A máquina passa a conceber soluções técnicas com eficiência supra-humana, ocupando nichos até então reservados tanto a profissionais dotados de maior qualificação profissional (diagnóstico médico, com exames de imagem submetidas à classificação por padrões; etc.), bem como postos de trabalho afetos a tarefas que, embora flexíveis, também permitem predição técnica de soluções (gestão logística e de transporte por geolocalização; atendimento automatizado de call center com reconhecimento de voz etc.).

[…]

A gestão destes processos de trabalho autoadaptáveis é feita por um algoritmo, que promove controle ubíquo do comportamento de cada trabalhador. Plataformas digitais fazem gestão geolocalizada da mão de obra, com predição supra-humana da mais eficiente relação de exploração do trabalho, numa equação algoritmizada a tratar do preço de serviço x disponibilidade de mão de obra. Além disso, o algoritmo é também dotado de objetivos referentes à indução comportamental (uso de redes sociais para adesão à ferramenta, associação da disponibilidade de trabalho a mecanismos de avaliação, outorga de premiações e outros estímulos remuneratórios, etc.). Assim, nesta fase da revolução tecnológica, a subordinação do trabalhador ao empreendimento que rentabiliza com a mão de obra deixa de ser estrutural e passa a ser algorítmica. O uso destes algoritmos de controle preditivo individual, em uma sociedade já marcada pelo desemprego e pelo subemprego, acaba por instigar uma concorrência à sujeição entre os trabalhadores vinculados às plataformas, concorrência essa muito bem manejada e estimulada por um algoritmo programado para a obtenção do maior lucro, independentemente da preservação de patamares mínimos civilizatórios.

O resultado deste cenário de exponenciação do processo de automação e de uberização de um trabalho humano que já vinha sacrificado pela conjuntura de automação, terceirização e ‘outsourcing’ tem sido catastrófico.

A ocupação de novos nichos de trabalho por máquinas dotadas de capacidade sobre-humana de predizer e atingir resultados implica não apenas aumento exponencial do desemprego e do subemprego, mas determina também uma nova modelagem na estruturação empresarial, bem como novo perfil de gestão dos negócios. A já verificada migração progressiva do modelo de estrutura empresarial por sociedade pessoal para outro de sociedades de capitais acaba por alcançar seu ápice. Rompe-se, definitivamente, com o residual verniz de vínculo interpessoal ainda existente em organizações estruturadas para gestão do capital (como as holdings). O anseio capitalista de acúmulo de capital passa a prescindir de estruturas jurídicas mais elaboradas, antes necessárias ao controle e à fiscalização de resultados dos empreendimentos em que investiam. Tais estruturas jurídicas de controle e fiscalização foram substituídas por algoritmos operados diretamente por fundos de investimento.”

As especificações do caso concreto – Após situar a forma de exploração do trabalho humano na era contemporânea, a sentença passou a tratar das especificações do caso. Foram citadas as fontes de informações e a bibliografia. Confira outros trechos da sentença:

No Brasil, cerca 32,4 milhões de pessoas utilizam algum tipo de “app” para trabalhar: “Do outro lado da relação jurídica identificamos dezenas de milhões de trabalhadores em condição de subemprego. Conforme veiculado pela CNN, um fenômeno incentivado pela elevação das taxas de desemprego e pela necessidade de isolamento social, que obrigou milhares de restaurantes e estabelecimentos comerciais a manter as portas fechadas ou a funcionar com restrição ao atendimento aos clientes, obrigou um contingente adicional de 11,4 milhões de brasileiros a recorrer aos aplicativos para garantir uma parcela ou a totalidade de sua renda, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva obtida com exclusividade pelo Estadão. Segundo o levantamento, com esse crescimento durante o último ano, o Brasil tem hoje aproximadamente 20% de sua população adulta – o equivalente a 32,4 milhões de pessoas – que utilizam algum tipo de app para trabalhar”. https://www.cnnbrasil.com.br/business/cerca-de-11-4-milhoes-de-brasileiros-dependem-de-aplicativos-para-teruma-renda/ (acesso em 23.09.2021)

“Lógica do maior ganho, a partir da maior precarização do valor trabalho”:“O surgimento de plataformas ou aplicativos eletrônicos, que instrumentalizam a conectividade virtual, para promover a intermediação mercantilizante da mão de obra, apresenta-se, na verdade, a exemplo a terceirização, como mais um fenômeno de inserção de um intermediário na relação laboral, a figurar como um especulador sobre o trabalho alheio. Nas palavras de Delgado, trata-se da instituição do capitalismo sem reciprocidade (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015.), fundado na exclusiva acumulação de riquezas, na medida em que o mercador de mão de obra está orientado pela lógica do maior ganho, a partir da maior precarização do valor trabalho.

Fenômeno da “uberização” e exploração do trabalho alheio – “Subordinação estrutural ou até mesmo algorítimica”: “A prevalência do discurso niilista na modernidade, somada à chegada daquilo que Delgado descreve como terceira revolução tecnológica do capitalismo (conquistas da microeletrônica, da robotização, da microinformática e das telecomunicações (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 38.), acabou por tornar extremamente dinâmico o surgimento de técnicas de exploração do trabalho humano, retirando proveito do rompimento processado em relação às barreiras físicas de espaço e de tempo, no campo comunicacional e de conexões empresariais, para impor, contraditoriamente, fronteiras e obstáculos na conexão humana efetivamente colaborativa (e não meramente explorativa). Adota-se o discurso pelo qual sobreleva-se a importância da rede de comunicação virtual (naquilo que hoje se denomina fenômeno da uberização) ou de conexão empresarial (fenômenos da terceirização e outsourcing) como algo a ser protegido para além do trabalho humano por estas redes instrumentalizado. Pelo fenômeno denominado uberização, diversas empresas sustentam ter como objetivo a manutenção de uma plataforma de conectividade virtual, mas na verdade fazem uso de um algoritmo por meio do qual exercitam o real objeto social, qual seja, a exploração do trabalho alheio. São empresas cuja performance não está atrelada à simples disponibilização de aplicativos eletrônicos, mas sim que, essencialmente, figuram como credoras do fruto do trabalho alheio, integrando as atividades dos colaboradores à sua própria atividade – o que perfaz aquilo que hodiernamente resta consagrado na doutrina e na jurisprudência como subordinação estrutural ou até mesmo algorítmica. Simplificando: a empresa não precifica o uso da plataforma digital (ou seja, cobraria o valor “x” para acessar a sua plataforma); ela precifica sim o valor do serviço de transporte, e é sobre isto que extrai seu faturamento. Assim, são intermediadores de mão de obra, processando algoritmos que definem o preço do serviço alheio, a forma de pagamento deste serviço, o padrão de atendimento do usuário e a forma de acionamento do colaborador. Reitere-se, então: trata-se de empresário da exploração de serviços, e não, primariamente, da exploração tecnológica, porquanto retém participação cobrada diretamente com referência ao valor do trabalho alheio, detendo o empreendimento com todo o ‘modus operandi’ da intermediação virtual do serviço.

São empresas que se distanciam da essência da economia colaborativa, que promove a alteração da dinâmica do consumismo clássico e individualista por outro de padrão comunitário, na medida em que transforma todos em seus consumidores ou em seus prestadores de serviços, centralizando faturamentos milionários ou até mesmo bilionários. São responsáveis por práticas que esvaziam o dogma do trabalho valorizado enquanto “importante instrumento de afirmação individual, social e econômica da larga maioria das pessoas na sociedade capitalista (DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. 2 ed. São Paulo: LTr, 2015.).”

Desafio para o Poder Judiciário: Prosseguindo em sua análise, o juiz destacou que:

“É sobre essa realidade que o Poder Judiciário está a ser demandado, como no caso sub judice, a trazer resposta que preserve a paz e a própria sustentabilidade do tecido social. (grifos originais). Ao tratarmos de processos de negócio substanciados em aprendizagem profunda da máquina, estamos a tratar de uma ferramenta de vocação monopolista extremamente potente no propósito de concentração de renda nas mãos de quem detém a tecnologia”.

“Os dados são o novo petróleo”: “Um jargão passa a representar lugar comum na era da IA: “os dados são o novo petróleo” (LOUREIRO, R. Os dados são o novo petróleo. Istoé Dinheiro, 2018.) Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/os-dados-sao-o-novo-petroleo/ Acesso em: 01 jul. 2020.

A geração de riqueza passa a estar intimamente vinculada à capacidade de gerir dados, pois as empresas mais eficientes em tal gestão tenderão ao domínio monopolístico do mercado. “Com dados abundantes, a predição da máquina pode funcionar bem. A máquina conhece a situação, no sentido que fornece uma boa predição” (AGRAWAL, A.; GANS, J.; GOLDFARB, A. Máquinas Preditivas. A Simples Economia da Inteligência Artificial. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019, p. 59.). Assim, a acessibilidade aos dados e o domínio de algoritmos fortes representa a tônica do capitalismo contemporâneo. Como pontua Harari, “a riqueza e o poder poderão se concentrar nas mãos da minúscula elite que é proprietária desses algoritmos todo-poderosos, criando uma desigualdade social e política jamais vista (HARARI, Y. N. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 326.)”.

Máquinas cada vez mais potentes e distanciamento da centralidade da figura humana:

“Essa é a conjuntura desenhada em um mundo dotado de máquinas cada vez mais potentes e, por outro lado, infelizmente, composto de seres humanos cada vez menos providos de capacidade crítica para filtrar informações pela ótica de valores e parâmetros cognitivos, societários e éticos, o que amplifica o desafio das instituições voltadas à pacificação social, como o Poder Judiciário. A tecnologia deve representar mero meio a serviço do homem que trabalha e exerce a cidadania, e não instrumento de exponenciação progressiva de injustiça social. Quando nos distanciamos da centralidade da figura humana, quando admitimos a conversão do homem em apêndice da máquina, a tecnologia se transforma em tecnocracia. Adota-se o discurso pelo qual sobreleva-se a importância da rede de comunicação virtual ou de conexão empresarial como algo a ser protegido para além do trabalho e da dignidade humana por estas redes instrumentalizado. (…)

“Nova hermenêutica constitucional, numa releitura das condições de efetividade dos valores igualdade, liberdade e trabalho”:

“A escorreita compreensão da tecnologia explorada por empresas como a reclamada representa suposto para uma nova hermenêutica constitucional, numa releitura das condições de efetividade dos valores igualdade, liberdade e trabalho, na missão das Instituições de Estado de mantença do compromisso constitucional cuja práxis passa a se sujeitar ao uso indiscriminado da eficiência tecnicista da IA. (grifos originais). Há que se reconfigurar, neste contexto, nossos parâmetros de compreensão acerca da validade da manifestação da vontade nos atos e negócios jurídicos celebrados sob efeito da capacidade indutiva e preditiva da aprendizagem profunda da máquina. Exemplificativamente, há que se compreender o fenômeno da IA para: a) se decidir sobre responsabilidades civis e criminais de atuais gestores de fundos de investimento; b) se compreender a influência do uso desta tecnologia nos processos eleitorais e na preservação da democracia, inclusive no que diz respeito à disseminação de fake news; c) se subsumir um serviço, prestado por intermédio de plataforma eletrônica, ao arcabouço normativo de regulação de relações comerciais, de trabalho, de consumo, tributárias, administrativas, entre outras (a exemplo da verificação de fato gerador tributário na gestão de hospedagem mediada por plataformas, ou da configuração do vínculo de emprego no transporte mediado por plataformas eletrônicas).

Reafirmação da jurisprudência de que cabe à empresa comprovar os fatos impeditivos da relação de emprego:

“Estas as premissas que nos remeterão à resposta ao dissenso estabelecido na litiscontestação e que fora expressamente pré-questionado pela ré em relação à interpretação dos arts. 1º e 170, da CF/88: como regra geral, qual seria a catalogação jurídica da relação estabelecida entre dezenas de milhares de pessoas físicas que dedicam tempo de trabalho à prestação pessoal e onerosa de serviços, no anseio de aferição de verba alimentar essencial à subsistência pessoal e familiar, quando se vincula a uma empresa que detém a modelagem algorítmica que gere a plataforma eletrônica que concentra o cadastro de clientes e de prestadores de serviços, define o valor dos serviços e sobre estes e na proporção destes retira seu faturamento em prol de um conglomerado avaliado em dezenas de bilhões de reais? (grifos originais). Aqui a nossa resposta perpassa pela reafirmação da jurisprudência que vem a presumir que, sempre que admitida a verificação de trabalho humano, e mais concretamente no caso em tela, uma vez admitido que determinado trabalhador efetivamente esteve cadastrado como motorista à plataforma eletrônica gerida por empresa que recebe percentual e lucra a partir de cada serviço de transporte realizado, representará ônus da empresa comprovar algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante (art. 818, II, da CLT) de ver reconhecido o vínculo de emprego. Não se trata de inversão do ônus da prova, mas sim de aplicação de jurisprudência mansa e pacífica no sentido de que, “alegando fato impeditivo do direito da empregada, cabia à reclamada o ônus probatório sobre a natureza da relação de trabalho, especialmente comprovar que não houve caracterização de vínculo de emprego na forma do art. 2.º e 3.º da CLT.

A manutenção da jurisprudência que faz presumir a existência de relação de emprego sempre que incontroversamente existente o trabalho humano representa reafirmação do compromisso constitucional alicerçado no próprio princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), em conjugação com a preservação dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF/88), mirando-se na busca do pleno emprego, da preservação da função social da propriedade, bem como do compromisso constitucional de redução das desigualdades regionais e sociais e de tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (art. 170, incisos III, VII, VIII e IX da CF/88), enquanto bússolas das quais não pode se desapegar os caminhos da livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88) e da livre iniciativa. Efetivamente, a consolidação de uma justiça social está umbilicalmente atrelada à efetivação do valor trabalho e de seus princípios protetivos. (…) Se por um lado chegamos à era informacional, a um novo estágio de cooperação cognitiva entre os membros da sociedade, por outro lado vivenciamos uma acentuada concentração das riquezas geradas a partir deste próprio conhecimento, o que tem se processado a partir de uma visão utilitarista que mercantiliza o trabalho e instrumentaliza o ser humano.”

Motoristas e empresas de aplicativo de transporte – “Relação moderna de subordinação” – “Consenso no mundo civilizado”

“Pondere-se que a presunção de que o trabalho mediado por empresas que exploram plataformas eletrônicas não representa forma de trabalho autônomo, mas sim modalidade de trabalho prestado por hipossuficiente, a atrair aplicação de normas heterônomas protetivas (a exemplo das normas afetas ao vínculo de emprego), já representa praticamente um consenso do mundo civilizado. Recentemente, em 13 de setembro de 2021, o Tribunal Distrital de Amsterdã decidiu ação coletiva ajuizada pela Federação Nacional de Trabalhadores da Holanda (Federatie Nederlandse Vakbeweging – FNV) no sentido de que “na era tecnológica atual, o critério de “subordinação” tem sido interpretado de uma forma que se desvia do modelo clássico, de um modo de controle mais indireto (muitas vezes digital). Os empregados se tornaram mais independentes e realizam seu trabalho em momentos mais variados (auto-selecionados). Considera-se que, na relação entre a empresa e seus motoristas, existe esta “relação moderna de subordinação”.

https://uitspraken.rechtspraak.nl/inziendocument?id=ECLI:NL:RBAMS:2021:5029&showbutton=true (acesso em 23.09.2021).

Acrescentou que a decisão do Tribunal Distrital de Amsterdã está de acordo com o que decidiu outras Cortes Europeias, a exemplo da França, da Espanha, da Suíça. Registrou, enfim, que apesar de a reclamada não ter apresentado cópia do seu contrato de adesão, como lhe cabia, esse documento foi disponibilizado pela própria empresa em seu site na internet, pelo que se trata de informação notabilizada pela ré para conhecimento de todos, nos termos do artigo 374, inciso I, do CPC, razão pela qual o documento público foi considerado no julgamento da matéria de fundo.

Sobre a natureza da relação jurídica – Presença dos requisitos do vínculo de emprego.

Na sentença, o magistrado concluiu que a relação jurídica entre as partes se desenvolveu com a presença dos requisitos do vínculo de emprego, os quais foram analisados, um a um, pelo juiz. Confira:

Onerosidade – Segundo o prolator da decisão, para a aferição da existência desse pressuposto, torna-se preciso investigar se o objeto comercial da reclamada (faturamento) está restrito à exploração da tecnologia de aproximação virtual entre interessados em estabelecer uma relação bilateral (motorista e passageiro), ou se esta tecnologia passou a se mostrar acessória a um outro objetivo central, qual seja, o da exploração da mão de obra alheia. No primeiro caso, haveria uma relação de consumo, no segundo, a empresa operaria como uma verdadeira intermediadora de mão de obra que utiliza como técnica um aplicativo de smartphone, no estabelecimento de uma relação tripartite.

“Determinante para aferição desta realidade, assim, verificar a forma da empresa estabelecer preço e cobrar pelo uso do seu aplicativo. Caso a empresa efetivamente empreenda estritamente sobre o aplicativo, fazendo do mesmo uma ferramenta de preço estabelecido exclusivamente de acordo com seu uso (exemplo, caso cobre mensalidade do usuário para acessar o aplicativo), e não precificando o serviço de acordo com o uso do trabalho alheio, não haveria dúvida quanto à natureza consumerista da relação. Por outro lado, contudo, se a receita decorrente do uso do aplicativo estiver estabelecida diretamente de acordo e na proporção ao valor agregado a partir do exercício de trabalho humano alheio, fica nítido o escopo de lucrar a partir da intermediação de mão de obra, e não primariamente pela exploração da tecnologia. O valor da cessão de uso da ferramenta não pode estar atrelado diretamente ao valor agregado pelo exercício de trabalho alheio, pois este não pode ser coisificado, mercantilizado, e acaso o seja, impõe-se a incidência de uma rede de normas imperativas, ditadas pelo direito do trabalho.”, registrou o julgador.

Para o juiz, a verdade acerca da onerosidade transparece dos próprios termos da defesa. No aspecto, ressaltou na sentença:

“Ora, na medida em que se reconhece, em defesa, que é a “sistemática tecnológica que aumenta ou diminui o valor da corrida”, e não havendo nenhuma controvérsia nos autos quanto à circunstância da empresa reclamada ser a proprietária e controladora desta “sistemática tecnológica”, resta claro e evidente que o serviço de corrida viabilizado a partir da atividade do autor como motorista representa um trabalho cujo preço é integralmente gerido pela reclamada, sem qualquer possibilidade de intervenção por parte do autor, que não tem, assim, qualquer autonomia para definir o valor do serviço que executa”.

Na decisão, houve também referência ao contrato de adesão da empresa, o qual estabelece que os serviços por ela prestados “consistem na intermediação de corridas e facilitação de pagamento (“Intermediação”), mediante licenciamento e uso de software”. Foi também citado item que dispõe sobre o “Pagamento pelos serviços”, mencionando que “Licenciamento é feito a título gratuito, sendo que a Intermediação é prestada de maneira onerosa (“Remuneração pela Intermediação”)”.

“A empresa tem como objetivo comercial a intermediação de corridas, extraindo seu faturamento a partir da intermediação do pagamento deste serviço, figurando o software como mero meio para atingir este escopo comercial”, destacou o juiz.

“Resta evidente, assim, que software representa meio de consecução do objeto comercial, e não o objeto comercial em si, pelo que reconhecendo a ré que faz intermediação de serviço e de correlato pagamento ao trabalhador, inquestionavelmente se faz presente o elemento fático jurídico da onerosidade”, concluiu.

Quanto ao valor médio do ganho mensal, foi reconhecida a importância informada pelo motorista (R$ 2 mil mensais), tendo em vista que reclamada não cuidou de apresentar aos autos os comprovantes de pagamento, ou mesmo os relatórios indicativos dos valores das corridas com a discriminação da comissão atribuída ao motorista.

Habitualidade – Segundo observou o magistrado, a prestação de serviços do autor ocorria de forma não eventual, ou seja, com habitualidade. Sobre esse pressuposto, pontuou o julgador:

“Efetivamente, assim, como reconhece a ré, o ambiente propício para a fertilização desta prática de rentismo incidente sobre a intermediação de mão de obra por plataforma eletrônica tira proveito do próprio contexto de enfraquecimento de direitos sociais, na medida em que, como bem observa Supiot, a insegurança econômica dos trabalhadores e sua exposição ao risco são os motores de sua produtividade e de sua criatividade41. Tira-se proveito da realidade de desemprego e de miséria gerada a partir da própria premissa de mercantilização do valor trabalho. O desemprego e a sobre oferta de mão de obra garantem, no plano coletivo, aquilo que anteriormente era objeto dos contratos de trabalho, enquanto obrigação individual do trabalhador, ou seja, a manutenção habitual de mão de obra à disposição daquele que a explora. A condição de coletivo de trabalhadores que se fortaleceria em rede de solidariedade perde espaço para o coletivo de desempregados que concorrem, entre si, na sujeição à precariedade, para conseguirem obter a oportunidade de trabalho que lhes permita, quando muito, a sobrevivência, mas não uma vida digna.

Trabalho representa fonte de subsistência, o que relativiza a noção de “liberdade para o trabalho”, enquanto idealidade suposta pela ré, em defesa, ao sustentar que quanto ao requisito da habitualidade, este igualmente não está presente vez que o Reclamante poderia administrar seu tempo da forma que lhe fosse interessante, utilizar ou não a plataforma, utilizar outros aplicativos como o Uber, por exemplo ou, ainda, trabalhar em outro local e utilizar a plataforma para complementar seus rendimentos, ou seja, as possibilidades são infinitas, dependendo do interesse do contratante, aqui no caso o Reclamante.

Dentro do sistema capitalista, a necessidade de trabalhar sempre representará um imperativo que antecede a liberdade para o trabalho, e a gestão algorítmica viabilizada pela plataforma dotada de IA representa ferramenta de potente indução comportamental para manter o motorista logado em jornadas até mesmo superiores aos limites celetistas, fazendo-se uso de recursos similares aos estímulos de redes sociais e de tantas outras ferramentas substanciadas no aprendizado de máquina.”

Há que se registrar, ainda, que a circunstância das partes ajustarem a possibilidade de recusa de serviços por empregado não representa, por si só, circunstância obstativa da existência de vínculo de emprego, seja porque o artigo 444 da CLT estabelece que “as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho”, seja porque a própria modalidade legal de contrato de emprego intermitente, prevista no artigo 443 parágrafo 3o da CLT prevê que considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses.

[…]

“No mesmo sentido, o documento juntado demonstra que a ré conta com relatórios gerenciais indicativos de todas as corridas realizadas pelo autor, com indicação de horário de início e término de cada viagem, além de local de embarque e desembarque, pelo que competia à ré carrear todos os mencionados relatórios aos autos, de forma a demonstrar a alegada ausência de habitualidade nos serviços prestados pelo autor (fato impeditivo), ônus do qual não se desincumbiu.

Enfim, há que se ressaltar que o contrato de adesão colocado em notoriedade pela ré em seu site (artigo 374, I, do CPC) traz previsão no sentido de que a empresa poderá aplicar multa, suspender ou cancelar a utilização de serviços na hipótese, dentre outras, de se verificar “inatividade da conta por um longo período de tempo.”

Pessoalidade – O julgador não teve dúvida de que havia pessoalidade na prestação de serviços pelo reclamante. Ressaltou que a empresa reconhece que efetua cadastramento pessoal de seus motoristas, alegando, inclusive, que o cadastro individual é obrigatório para todas as empresas de tecnologia, de forma a garantir a segurança e a confiabilidade de todos os usuários.

Citou o contrato de adesão disponibilizado pela reclamada em seu site na internet e que prevê que a empresa pode aceitar ou recursar a solicitação de cadastro do motorista, realizar checagem de seus antecedentes criminais e ainda que o perfil do “motorista parceiro é exclusivo e intransferível” e que ele não pode compartilhar sua conta com terceiros ou transferi-la, sob pena de cancelamento imediato da conta” (itens 3.2 e 3.3 do contrato de adesão).

Subordinação – Na análise do magistrado, o trabalho prestado pelo autor estava plenamente integrado à dinâmica empresarial, a caracterizar modalidade de subordinação estrutural, e mais especificamente, no presente caso, uma subordinação algorítmica.

Conforme constatou o juiz, a reclamada conta com recursos próprios à “deep lerning” (aprendizagem profunda), tendo reconhecido, em defesa, que a plataforma promove “conjugação de fatores como a oferta e a procura do mercado em determinados horários e ocasiões, que levam à fixação de valores de acordo com a demanda perpetrada pelos passageiros”.

“O grande diferencial do algoritmo de aprendizagem profunda processado pela reclamada está na sua capacidade preditiva, predição esta decorrente da identificação de padrões em dados digitais com emprego de técnica de generalização”, frisou o magistrado. Explicou que a ré estabelece padrões a partir de dados disponibilizados pela totalidade dos usuários , o fazendo em diversas frentes, o que lhe permite promover a predição: 1) do valor ideal para cada corrida solicitada, considerando-se como ideal aquele mais apto a ser aceito pelo cliente e pelo motorista e que mais rentabiliza para a ré; 2) da melhor rota a ser utilizado pelo motorista; 3) do sistema de incentivo (premiação, bônus, etc.) mais eficiente para que o motorista permaneça habitualmente logado à plataforma.

Acrescentou que, dentro desse modelo de plataforma da ré, “sobressai a modelagem que trata da atribuição de notas em decorrência da qualidade de serviços, avaliação feita tanto por motoristas quanto pela própria empresa, na medida em que o item 6.3 do contrato de adesão prevê que o Motorista Parceiro aceita que a empresa manterá registros internos acerca da prestação de Serviços de Transporte, tais como a taxa de aceitação e cancelamento de corridas, podendo utilizar esses dados para realizar sua própria avaliação sobre o Motorista Parceiro”.

Para o juiz, desta “’gamificação’ por atribuição de pontos e recompensas”, exsurge grande poder disciplinar a configurar a subordinação do motorista ao empreendimento. Citou, como exemplo, item do contrato de adesão, onde está previsto que: “ o Motorista Parceiro reconhece e aceita que a empresa poderá”: suspender por tempo indeterminado o Licenciamento (e, consequentemente, a Conta do Motorista Parceiro); exigir a realização de curso de reciclagem, caso o Motorista Parceiro apresente avaliações semanais reiteradamente ruins, a exclusivo critério da empresa; e aplicar multa ao motorista.

Além disso, no caso, não houve discussão quanto ao fato de que a reclamada fez uso do seu poder diretivo para fazer o desligamento do reclamante de sua plataforma eletrônica, inclusive justificando que isso decorreria de problema de conduta do motorista, o que, de acordo com o julgador, vem a materializar o exercício do poder disciplinar.

A empresa terá que registrar o contrato na carteira de trabalho do autor, na função de motorista e com salário mensal estimado em R$ 2 mil. Por identificar hipótese de fraude trabalhista com repercussão coletiva, o magistrado determinou a expedição de ofícios ao MPT e à Superintendência Regional de Trabalho e Emprego com cópia da sentença.

Em grau de recurso, os julgadores da 11ª Turma do TRT-MG mantiveram a sentença.

TJ/DFT: Vítima de violência doméstica tem direito a danos morais

Os desembargadores da 3ª Turma Criminal do TJDFT mantiveram decisão que condenou homem ao pagamento de danos morais e 10 meses e 12 dias de prisão, em regime inicial semiaberto, pelos crimes de lesão corporal e ameaça contra a namorada.

As agressões aconteceram na casa da vítima, em Taguatinga. Segundo a denúncia do MPDFT, o réu ofendeu a integridade física da então namorada ao causar lesões corporais, conforme boletim de ocorrência e exame de corpo de delito juntado ao processo. Ele, ainda, ameaçou de morte ela e sua família. De acordo com órgão ministerial, os dois namoravam há um ano.

No recurso contra a decisão, o réu alega que não há provas suficientes para condenação, uma vez que as declarações da ex-parceira não foram confirmadas. Sustenta que, durante a discussão, a vítima tentou jogar um pedaço de pau e uma pedra nele, momento em que a empurrou para se defender. Requer, subsidiariamente, a redução da pena de detenção e do valor fixado para indenização.

Ao analisar o caso, a desembargadora relatora destacou a condenação do acusado deve ser mantida “quando as declarações firmes e coesas da vítima demonstram a prática do crime de ameaça e lesão corporal, no contexto de violência doméstica e familiar, corroboradas por laudo pericial”. A julgadora reforçou, também, que, nos crimes praticados em situação de violência doméstica contra a mulher, a palavra da vítima tem especial valor probatório, sobretudo quando narra os fatos de forma firme e coerente, em todas as oportunidades em que é ouvida e não há contraprova capaz de desmerecer o relato.

“Cabe ressaltar que, em data posterior aos fatos, o réu foi preso em flagrante, em razão de violar o domicílio da vítima, ameaçá-la e desferir socos em seu rosto, a despeito da vigência da medida protetiva anteriormente estabelecida”, registrou a magistrada. Dessa forma, verifica-se que o acervo probatório não é formado apenas pela palavra da vítima, mas também pelo laudo pericial, o qual não deixa dúvida de que o réu ameaçou sua companheira e a lesionou.

Conforme a decisão, não há nada nos autos que ampare a versão do réu. “A negativa de autoria configura mero exercício de autodefesa, de índole constitucional, mas incapaz de afastar a prova em contrário, apurada nos autos”, concluíram os desembargadores.

A Turma explicou que, para o estabelecimento do montante devido em danos morais, devem ser observadas a condição social, educacional, profissional e econômica do lesado, a intensidade de seu sofrimento, bem como a situação econômica do agressor, entre outros fatores. Assim, o valor estabelecido foi de R$ 500.

A pena de detenção deverá ser cumprida em regime semiaberto e não pode ser substituída por restritivas de direitos, tendo em vista que a legislação impossibilita essa substituição em casos de crime ou contravenção penal contra a mulher, com violência ou grave ameaça, no ambiente doméstico.

A decisão foi unânime.

Violência doméstica contra a mulher é crime. Não se cale! Você não está sozinha. Ao menor sinal de violência, ligue 180, 190 ou 197, opção 3, e denuncie.

Processo: 0708004-60.2021.8.07.0007

STJ: Investigação preliminar e razões concretas justificam entrada sem mandado em quarto de hotel para apurar tráfico

A polícia pode entrar em quarto de hotel para apurar suspeita de tráfico de drogas, mesmo sem autorização judicial ou consentimento do hóspede, caso existam indícios suficientes de que o local é utilizado para a prática do delito.

Com esse entendimento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, considerou lícitas as provas colhidas em ação na qual os policiais, sem mandado judicial ou autorização, entraram em um quarto de hotel que, supostamente, era utilizado como apoio para o comércio de drogas na cidade de São Paulo. Havia drogas armazenadas no local – o que é crime permanente –, e um suspeito foi preso em flagrante.

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A defesa sustentou a nulidade do processo e da prisão preventiva, pois a ação penal teria sido instruída com provas obtidas mediante violação de domicílio sem ordem judicial – as quais seriam, por isso, inadmissíveis.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) considerou lícitas a entrada dos policiais no quarto de hotel e a prisão preventiva, porque eles só se dirigiram para o local depois de uma investigação preliminar que reuniu informações detalhadas – como as características do suspeito e o local exato onde se hospedava. Foram apreendidos aproximadamente 700 gramas de drogas (cocaína e maconha), o que, para o tribunal, evidencia a gravidade concreta do delito e justifica a prisão.

Quarto de hotel ocupado pode ser considerado, juridicamente, como casa
O relator do habeas corpus no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, ressaltou que a Sexta Turma, ao julgar o REsp 1.574.681, estabeleceu, com base na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 603.616, que a entrada forçada em domicílio é aceitável, na hipótese de flagrante, caso existam razões concretas que indiquem que o crime está sendo cometido no local, ou está prestes a acontecer.

Ele ponderou que, nos termos do que foi decidido no REsp 1.558.004, são nulas as provas obtidas mediante violação de domicílio, se existirem apenas meras suspeitas sobre o eventual delito, sem qualquer precisão quanto ao seu autor e ao local de sua prática.

O magistrado acrescentou que o quarto de hotel, por ser espaço privado, segundo entendimento do STF, é qualificado como casa – desde que ocupado. Assim, afirmou, o espaço também está protegido pelo princípio constitucional da inviolabilidade domiciliar.

Por outro lado, segundo o relator, a menos que o quarto seja o lugar permanente de moradia do suspeito, não há a necessidade do mesmo nível de provas que se exige para o ingresso da polícia, sem autorização judicial, em uma residência comum.

Fundadas razões justificam violação de domicílio para autuação em flagrante
Rogerio Schietti destacou que, no caso dos autos, havia razões concretas capazes de justificar o ingresso no quarto de hotel. Isso porque, segundo o TJSP, foi detalhado que a polícia local realizou, de forma preliminar, uma investigação mínima para obter informações quanto à existência de drogas no local, à identidade do suspeito e ao fato de que ele abasteceria o tráfico na região.

Em razão disso, a Sexta Turma considerou regular o ingresso da polícia no quarto de hotel, declarou lícitas as provas obtidas e entendeu que a prisão preventiva foi fundamentada, tendo em vista a grande quantidade de drogas apreendidas e a reincidência do acusado.

Veja o acórdão.
Processo: HC 659527

TRF1: Reconhecimento fotográfico não sustenta por si só a condenação se não houver outras provas que confirmem a autoria

A 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) decidiu que o reconhecimento fotográfico produzido na fase policial, um ano após o fato criminoso, e que não foi renovado em juízo, não sustenta a condenação de um réu, denunciado e condenado por roubo a uma agência dos Correios, no município maranhense de Cantanhede.

Ao apelar da sentença condenatória, a Defensoria Pública da União (DPU) requereu sua absolvição baseado no art. 386, VII do Código de Processo Penal (CPP), o qual prevê que “o juiz absolverá o réu desde que reconheça não existir prova suficiente para a condenação”.

Ao relatar o processo, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso constatou que, entre as provas que instruem o feito, a autoria do crime tem como único elemento o reconhecimento fotográfico realizado por uma testemunha, na fase policial. Na fase judicial, ou seja, após iniciado o processo, o ato de reconhecimento não foi renovado.

Prosseguiu a magistrada destacando que, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do TRF1, “o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do CPP” (denominado reconhecimento formal, realizado com as formalidades da lei)” e, ainda que ratificado em juízo e sob garantia do contraditório e da ampla defesa, não pode servir isoladamente como prova para corroborar a autoria do acusado, especialmente por ter o apelante negado a autoria do fato no interrogatório.

A relatora votou no sentido de dar provimento à apelação para absolver o réu, visto não haver outras provas que confirmem a autoria, no que foi acompanhada por unanimidade pelo colegiado.

Processo 1003989-57.2018.4.01.3700


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