STF: Polícia não pode exigir que MP antecipe providências em casos envolvendo crianças e adolescentes

Plenário avaliou que, em razão da autonomia funcional do Ministério Público, delegado pode solicitar a medida, e não determinar.


Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que delegados de polícia podem solicitar ao Ministério Público (MP) que antecipe a produção de provas (ouvir vítimas, testemunhas, etc.), antes do início do processo penal, em casos de violência contra crianças e adolescentes, mas não pode impor a adoção da medida.

A matéria foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7192, apresentada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) contra dispositivo da Lei 14.344/2022 (artigo 21, parágrafo 1º), conhecida como Lei Henry Borel, que estabelece que a polícia pode “requisitar” a abertura da ação cautelar de antecipação de produção de prova. Para a entidade, o Ministério Público não se submete a determinação ou ordem da autoridade policial.

Autonomia
Segundo o relator, ministro Luiz Fux, uma lei não pode prever que determinado órgão tenha poder ou atribuição de determinar ao Ministério Público a abertura de ação. Isso porque a Constituição Federal concede autonomia à instituição e garante independência funcional a cada um de seus membros.

O relator também afirmou que cabe ao MP o controle externo da atividade policial. Assim, qualquer interpretação que atribua seu controle externo à polícia judiciária subverteria o desenho constitucional das duas instituições.

Para o ministro, o dispositivo deve ser interpretado de forma que o verbo “requisitar” tenha o sentido de “solicitar”, e não “determinar”. A seu ver, essa medida preserva a autonomia constitucional do Ministério Público e mantém a possibilidade de provocação da polícia para a coleta de provas nos casos de violência doméstica ou familiar contra criança ou adolescentes.

A decisão foi tomada na sessão virtual encerrada em 17/5.

Processo relacionado: ADI 7192

STF suspende processos contra médicos com base em norma que dificultava aborto legal

Ministro Alexandre de Moraes complementou liminar em que havia suspendido a resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o tema.


O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão de todos os processos judiciais e procedimentos administrativos e disciplinares movidos contra médicos por suposto descumprimento da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dificulta o aborto em gestação decorrente de estupro.

Em nova decisão, o ministro complementou liminar concedida em 17/5, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1141), que suspendeu a Resolução 2.378/2024 do CFM. A norma proíbe a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro.

De acordo com a nova decisão, fica proibida, ainda, a abertura de procedimentos administrativos ou disciplinares com base na resolução.

O ministro considerou informações acrescentadas aos autos sobre a suspensão do exercício profissional de médicas que realizaram aborto de aborto de fetos com mais de 22 semanas de gestação. Esses fatos teriam gerado manifestações populares na sede do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e a suspensão do programa Aborto Legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha.

Veja a  decisão.
Processo relacionado: ADPF 1141

Usucapião de imóvel rural – a proteção do pequeno agricultor sob a ótica do STJ

Instituto jurídico surgido para beneficiar o pequeno produtor agrário, a usucapião de imóvel rural, também conhecida como usucapião pro labore, está prevista no artigo 191 da Constituição Federal, com redação idêntica no artigo 1.239 do Código Civil.

De acordo com os textos legais, essa modalidade originária de aquisição de propriedade exige a comprovação da posse mansa, pacífica e ininterrupta, por pelo menos cinco anos, de área rural de até 50 hectares, e da sua utilização para produção e moradia.

Ainda que alguns desses requisitos estejam presentes na usucapião urbana, a modalidade rural tem peculiaridades, como a necessidade de que a terra se torne produtiva por meio do trabalho do requerente e de sua família.

Ao relatar o REsp 1.040.296, o ministro Luis Felipe Salomão explicou que as exigências – presentes também em normas de direito agrário – buscam incentivar a produtividade da terra e cumprem a função social de proteger os agricultores. Em suas palavras, usucapião rural caracteriza-se pelo elemento posse-trabalho.

“Serve a essa espécie tão somente a posse marcada pelo trabalho. Para a concretização do direito ao domínio do imóvel rural, a exploração econômica e racional da terra é pressuposto impossível de ser afastado, deixando clara a intenção do legislador em prestigiar o possuidor que confere função social ao imóvel rural”, declarou.

Instituto voltou a ter caráter constitucional em 1988
A preocupação com a regularização de imóveis – sejam eles urbanos ou rurais – não é recente. Quando o Brasil ainda era uma sociedade essencialmente rural, o Código Civil de 1916 trouxe, pela primeira vez, a usucapião para o ordenamento jurídico. Na Constituição Federal de 1934, a usucapião rural foi prevista expressamente pela primeira vez, permanecendo com esse status constitucional até 1967.

Antes de voltar ao texto constitucional, em 1988, o instituto passou a figurar em duas normas que seguem em vigor: a Lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra), responsável por disciplinar as relações fundiárias no Brasil, e a Lei 6.969/1981, que trata especificamente de usucapião rural.

A usucapião rural é tema de diversos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que discutiram questões como a necessidade de georreferenciamento para definir os limites dos imóveis no campo, a utilização do instituto por empresas de controle estrangeiro e a possibilidade de usucapião de áreas menores do que o módulo rural (unidade de medida agrária expressa em hectares), entre outras.

Propriedade menor que o módulo rural admite usucapião
Em 2015, a Quarta Turma decidiu, por maioria, que é possível adquirir a propriedade de área menor do que o módulo rural estabelecido para a região por meio da usucapião especial rural.

A partir desse entendimento, o colegiado deu provimento ao recurso de um casal de agricultores (REsp 1.040.296) que, desde 1996, tinha a posse ininterrupta e não contestada de uma área de 2.435 metros quadrados, na qual residia e trabalhava. Na região, o módulo rural – área necessária para a subsistência do pequeno agricultor e de sua família – é definido em 30 mil metros quadrados.

“Se o imóvel sobre o qual se exerce a posse trabalhada possui área capaz de gerar subsistência e progresso social e econômico do agricultor e sua família, mediante exploração direta e pessoal – com a absorção de toda a força de trabalho, eventualmente com a ajuda de terceiros –, parece menos relevante o fato de aquela área não coincidir com o módulo rural da região ou até mesmo ser-lhe inferior.” – REsp 1.040.296 – Ministro Luis Felipe Salomão

O ministro Luis Felipe Salomão, autor do voto que prevaleceu na turma julgadora, ressaltou a função social da usucapião especial rural. Segundo ele, o artigo 191 da Constituição, reproduzido no artigo 1.239 do Código Civil, ao permitir usucapião de área não superior a 50 hectares, define apenas o limite máximo possível, não a área mínima.

“Mais relevante que a área do imóvel é o requisito que precede a ele, ou seja, o trabalho realizado pelo possuidor e sua família, que torna a terra produtiva e lhe confere função social”, avaliou Salomão.

Admitida usucapião rural por empresa de controle estrangeiro
Sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma estabeleceu que é possível usucapião de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira com capital majoritariamente controlado por estrangeiros, desde que observadas as mesmas condições para a compra de áreas rurais por pessoas estrangeiras – sejam naturais, jurídicas ou equiparadas.

A posição do colegiado se deu no julgamento do REsp 1.641.038, em que uma empresa do ramo alimentício pedia usucapião de uma propriedade localizada entre os estados do Ceará e do Rio Grande do Norte.

Nancy Andrighi comentou que a legislação impõe uma série de condições para a aquisição de terras rurais por estrangeiros, pois o tema envolve a defesa do território e a soberania nacional. Isso se verifica, por exemplo, na Lei 5.709/1971, a qual regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país. Para a ministra, as disposições da lei se aplicam às empresas brasileiras com participação de pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras detentoras da maioria do seu capital social e que residam ou tenham sede no exterior.

“Não há nada no ordenamento jurídico que obste prima facie o reconhecimento da usucapião”, afirmou, ao determinar o retorno do caso à primeira instância para julgamento do mérito.

Georreferenciamento como requisito para usucapião rural
No julgamento do REsp 1.123.850, a Terceira Turma decidiu que a identificação do imóvel rural objeto de ação de usucapião deve ser feita mediante a apresentação de memorial descritivo que contenha as coordenadas georreferenciadas dos vértices definidores de seus limites.

Com esse entendimento, o colegiado atendeu ao pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul e determinou que os autores de uma ação de usucapião de imóvel rural apresentem o memorial descritivo georreferenciado da área no juízo de primeiro grau.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, a necessidade da medida decorre do princípio registral da especialidade, que exige a plena identificação do bem imóvel para efeito de registro público, a partir de suas medidas, características e confrontações.

A ministra destacou dispositivos legais que abordam a questão, como a Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) e o Decreto 5.570/2005, que estabelece, em seu artigo 2º, que a identificação georreferenciada do imóvel rural, nas ações ajuizadas a partir de sua publicação – como no caso analisado –, constitui exigência imediata, qualquer que seja a dimensão da área.

“Conclui-se que, tratando-se de processos que versam acerca de imóveis rurais, a apresentação de sua descrição georreferenciada, por meio de memorial descritivo, ostenta caráter obrigatório, constituindo imposição legal relacionada à necessidade de perfeita individualização do bem”, afirmou a relatora ao prover o recurso especial.

Se pedido não mudar, novos documentos podem ser juntados
Ao julgar o REsp 1.685.140, a Terceira Turma entendeu que é possível a simples juntada da planta e do memorial descritivo no curso de ação de usucapião rural, desde que não implique alteração do pedido formulado na petição inicial. Com isso, o colegiado determinou o prosseguimento de um processo iniciado por um morador de área rural contra uma mineradora de Minas Gerais.

Na origem do caso, o juízo de primeiro grau indeferiu o pedido da empresa para extinguir o processo sem resolução do mérito e admitiu a possibilidade de o autor suprir a falta de dados no memorial descritivo e na planta. Após sucessivos recursos negados, o caso chegou ao STJ, que manteve o mesmo entendimento.

O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, lembrou que eventuais alterações no memorial descritivo do imóvel podem ser feitas unilateralmente antes da citação; depois desta, somente com a concordância explícita do réu. Para o ministro, entretanto, o caso analisado não permitia concluir que a mera juntada da planta e do memorial descritivo georreferenciado tivesse representado alteração objetiva da demanda.

“No caso concreto, inexiste prejuízo aos litigantes, visto que, depois da apresentação dos documentos, o magistrado de primeiro grau determinou a intimação do demandado, dos confinantes e das Fazendas Públicas, em observância ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa”, observou Cueva.

Ação de usucapião rural admite reconvenção arguindo imissão na posse
Em outro julgamento relevante da Terceira Turma (REsp 2.051.579), sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi decidido que é possível, na ação de usucapião rural, propor reconvenção arguindo imissão na posse . Isso porque, segundo o colegiado, as duas modalidades de ação, além de seguirem o rito do procedimento comum, são conexas quando tratam do mesmo imóvel.

A turma julgadora se valeu desse entendimento para dar provimento a um recurso especial que pedia o conhecimento da validade do pedido reconvencional feito na origem do processo. Após decisões em sentidos diversos nas instâncias ordinárias, o caso chegou ao STJ.

A relatora lembrou que a ação de usucapião estava listada entre os procedimentos especiais do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), enquanto a ação de imissão na posse se submetia ao procedimento comum, o que impedia o pedido reconvencional de imissão na posse no curso da ação de usucapião. A partir do CPC/2015, entretanto, as duas modalidades de ação passaram a seguir o rito comum.

“Tem-se que a ação de usucapião e a ação de imissão na posse, além de seguirem o procedimento comum, são conexas, razão pela qual é admissível, na ação de usucapião, propor reconvenção arguindo que a posse reivindicada decorre da propriedade.” REsp 2.051.579 – Ministra Nancy Andrighi

De acordo com a ministra, o que importa, de fato, é que o artigo 343 do CPC em vigor permite ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.

“Considerando que na ação de usucapião discute-se a posse mansa do bem, e, na ação de imissão na posse, debate-se o direito à posse que decorre da propriedade ou de outro direito real (jus possidendi), haverá conexão entre as ações quando versarem sobre o mesmo imóvel”, esclareceu Nancy Andrighi.

Necessidade de registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR)
Ao dar provimento ao REsp 1.356.207, a Terceira Turma entendeu que o registro prévio da reserva legal no Cadastro Ambiental Rural (CAR) é uma condição para o registro da sentença de usucapião rural.

Para o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de que a averbação de reserva legal seria necessária para o registro de qualquer ato de transmissão, desmembramento ou retificação de área de imóvel rural. Nas instâncias ordinárias, entretanto, houve dúvida quanto ao caso da aquisição por usucapião de imóvel sem matrícula.

Em parecer, o Ministério Público Federal opinou pela necessidade de averbação e, segundo o ministro, aplicou corretamente o princípio in dubio pro natura, o qual “deve reger a interpretação ambiental para priorizar o sentido da lei que melhor atenda à proteção do meio ambiente”.

O relator afirmou que uma interpretação estrita do dispositivo legal poderia levar à conclusão de que a aquisição originária, por não estar expressamente prevista, estaria excluída da necessidade de averbação da reserva legal no ato de registro. Para ele, a dispensa, no caso de aquisição por usucapião, reduziria demasiadamente a eficácia da norma ambiental.

Sanseverino observou que essa interpretação levaria a um “resultado indesejável”, contrário à finalidade protetiva da norma. Ainda segundo o ministro, é possível tomar a palavra “transmissão” em sentido amplo, abrangendo também a usucapião.

“Nessa linha de raciocínio, seria o caso de se dar provimento ao presente recurso especial para impor a averbação da reserva legal como condição para o registro da sentença de usucapião”, concluiu o ministro.

Esta notícia refere-se aos processos: REsp 1040296; REsp 1641038; REsp 1123850; REsp 1685140; REsp 2051579 e REsp 1356207


Leia também: Usucapião de imóvel urbano – definições, requisitos e limites, segundo o STJ

Usucapião de imóvel urbano – definições, requisitos e limites, segundo o STJ

Prevista no artigo 183 da Constituição Federal e no artigo 1.240 do Código Civil (CC), a ação de usucapião especial de imóvel urbano possibilita o reconhecimento do direito ao domínio em favor da pessoa que, de forma pacífica e ininterrupta, tenha como sua área de até 250 metros quadrados, por cinco anos, sem oposição, utilizando-a para moradia própria ou de sua família, desde que não seja proprietária de outro imóvel urbano ou rural.

Trata-se de uma forma originária de aquisição de imóvel que tem como objetivo atingir a função social da propriedade. Nas áreas urbanas, ela também é possível na forma do artigo 1.238 do CC, que disciplina a chamada usucapião extraordinária, com exigência de posse por 15 anos sem interrupção nem oposição.

No julgamento do REsp 1.818.564, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Moura Ribeiro explicou que “a usucapião está claramente vinculada à função social da propriedade, pois reconhece a prevalência da posse adequadamente exercida sobre a propriedade desprovida de utilidade social, permitindo, assim, a redistribuição de riquezas com base no interesse público”.

Em relação a outros dispositivos legais que abordam a usucapião de imóvel urbano, a ministra Nancy Andrighi destacou, em seu voto no REsp 1.777.404, a importância da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), que trouxe esclarecimentos adicionais sobre quem pode se valer do instituto: “Veio regulamentar o texto constitucional e, nessa regulamentação, os legitimados a usucapir são o possuidor individualmente ou em litisconsórcio, os possuidores em composse e até a associação de moradores regularmente constituída, na qualidade de substituta processual”.

Comum nas cidades brasileiras, o instituto é alvo frequente de discussões: a aquisição de metade do imóvel impede o reconhecimento da usucapião? Ela pode ser reconhecida se o prazo só for alcançado no curso do processo judicial? A ação judicial de usucapião depende do prévio pedido na via extrajudicial? O uso simultâneo do imóvel para moradia e comércio compromete a usucapião especial urbana?

Essas e outras questões encontram resposta na jurisprudência do STJ.

Prazo para a usucapião pode ser reconhecido no curso do processo judicial
Ao julgar o REsp 1.361.226, a Terceira Turma considerou ser possível o reconhecimento da usucapião de bem imóvel se o requisito do prazo for alcançado durante a tramitação do processo judicial.

No início do caso, os recorrentes buscavam o reconhecimento da usucapião extraordinária, alegando a posse mansa, pacífica e ininterrupta do imóvel por mais de 17 anos, mas a sentença e o acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) negaram o pedido, ao fundamento de que o requisito temporal não tinha sido atingido quando do ajuizamento da ação. Ambos avaliaram que a situação estava sujeita ao artigo 550 do Código Civil de 1916, impondo-se o prazo de 20 anos para a usucapião extraordinária. Na data da sentença, entretanto, o juiz de primeiro grau destacou que a posse do imóvel já tinha mais de 20 anos.

“Cabe ao magistrado examinar o requisito temporal da usucapião ao proferir a sentença, permitindo que o prazo seja completado no curso do processo. Evita-se com isso que o autor proponha nova ação para obter o direito que já poderia ter sido reconhecido se o poder judiciário apreciasse eventual fato constitutivo superveniente.” REsp 1.361.226 – ministro Ricardo Villas Bôas Cueva

De acordo com o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, o magistrado deve considerar fato constitutivo ou extintivo de direito ocorrido após a propositura da ação, independentemente de provocação das partes. Nessa mesma linha, o ministro citou o Enunciado 497 da V Jornada de Direito Civil (STJ/CJF), segundo o qual “o prazo, na ação de usucapião, pode ser completado no curso do processo, ressalvadas as hipóteses de má-fé processual do autor”.

Além disso – destacou o ministro –, a contestação apresentada pelo réu não impede o transcurso do prazo. Para ele, a peça defensiva não é capaz de exprimir a resistência do demandado à posse exercida pelo autor, mas apenas a sua discordância com a aquisição do imóvel pela usucapião. “Contestar, no caso, impõe mera oposição à usucapião postulada pelos autores, e não à posse”, concluiu.

Aquisição de metade do imóvel não impede usucapião especial urbana
Em outubro de 2022, a Terceira Turma fixou que a aquisição de metade do imóvel não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana. Para o colegiado, o fato de os moradores, autores do pedido, já terem a metade da propriedade não atrai a vedação do artigo 1.240 do CC, que impõe como condição não possuir outro imóvel urbano ou rural.

Ao dar provimento ao REsp 1.909.276, o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, observou que a jurisprudência do STJ admite a usucapião de bem em condomínio, desde que o condômino exerça a posse com exclusividade. Para ele, essa interpretação se aplicava ao caso em julgamento, pois os recorrentes agiram como donos exclusivos: adquiriram metade do imóvel e pagaram as taxas e os tributos incidentes sobre ele, além de realizarem benfeitorias.

“Sob essa perspectiva, o fato de os recorrentes serem proprietários da metade ideal do imóvel que pretendem usucapir não parece constituir o impedimento de que trata o artigo 1.240 do Código Civil, pois não possuem moradia própria, já que, eventualmente, teriam que remunerar o coproprietário para usufruir com exclusividade do bem”, afirmou.

Ação de usucapião é viável se a enfiteuse não for registrada
A Quarta Turma, por maioria de votos, entendeu que é possível a ação de usucapião de imóvel urbano na hipótese em que, mesmo convencionada a constituição de enfiteuse entre o possuidor e o proprietário, o título respectivo não tenha sido levado ao registro imobiliário.

Para o colegiado, como o registro é um pressuposto de existência para a maioria dos direitos reais, a sua falta impede a configuração da enfiteuse, ainda que, durante anos, tenha havido o pagamento do foro e tenha sido exercido o direito de resgate. Inexistindo uma efetiva relação jurídica de direito real entre o senhorio direto e o foreiro – avaliou a turma –, não há impedimento à aquisição originária da propriedade pelo possuidor.

O caso teve origem em ação proposta por um casal que alegava ter a posse mansa e pacífica de terreno foreiro por 20 anos, tendo sido realizado o resgate da enfiteuse. A sentença considerou o pedido improcedente, e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a decisão, sob o fundamento de que o prazo para a prescrição aquisitiva não flui enquanto perdura a enfiteuse, pois faltaria o chamado animus domini ao enfiteuta.

Ao analisar o REsp 1.228.615, o relator do voto que prevaleceu no julgamento, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o artigo 1.227 do CC, combinado com o artigo 172 da Lei 6.015/1973, indica o efeito constitutivo do registro em relação a direitos reais sobre imóveis, estabelecendo o princípio da inscrição, segundo o qual a constituição, a transmissão e a extinção de direitos reais sobre imóveis só ocorrem por meio da inscrição no cartório de registro imobiliário.

“A mera convenção entre as partes não é condição suficiente a ensejar a constituição da enfiteuse, fazendo-se mister a efetivação de um ato formal de ingresso do título no registro imobiliário, o qual poderia ensejar o verdadeiro óbice à aquisição originária da propriedade pelo enfiteuta – o qual inexiste na situação vertente”, concluiu o ministro ao dar provimento ao recurso especial.

Cabe usucapião extraordinária em área inferior ao módulo urbano
Sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 985), a Segunda Seção estabeleceu que o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento de seus requisitos específicos, não pode ser impedido em razão de a área discutida ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.

Para o relator dos recursos especiais (REsp 1.667.843 e REsp 1.667.842), ministro Luis Felipe Salomão, se o legislador quisesse definir parâmetros mínimos para a usucapião de área urbana, ele o teria feito de forma expressa, a exemplo da definição de limites territoriais máximos para a usucapião especial rural, prevista no artigo 1.239 do Código Civil.

“Considerando que não há legislação ordinária, própria à disciplina da usucapião, regra que especifique área mínima sobre a qual deva o possuidor exercer sua posse que seja possível a usucapião extraordinária, a conclusão natural será pela impossibilidade de o intérprete discriminar onde o legislador não discriminou.” REsp1667843 – ministro Luis Felipe Salomão

O ministro citou decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 422.349, que não verificou inconstitucionalidade na lei municipal que fixa o módulo urbano em área superior a 250 metros quadrados, desde que isso não impeça ao particular a aquisição do direito de propriedade de área menor, no caso de o órgão de controle não questionar a aquisição no prazo legal.

Além disso, Salomão salientou que o parcelamento do solo e as normas de edificação são providências relativas à função social da cidade. Por outro lado – explicou –, a usucapião tem por objetivo a regularização da posse e, uma vez reconhecida judicialmente, assegura o cumprimento da função social da propriedade.

Ação de usucapião independe de prévio pedido na via extrajudicial
Em fevereiro de 2020, a Terceira Turma definiu que o ajuizamento da ação de usucapião não está condicionado à negativa do pedido em cartório, mesmo após as alterações feitas na Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) pelo Código de Processo Civil de 2015.

Com esse entendimento, o colegiado determinou o retorno de um processo que discutia a usucapião de imóvel ao juízo de origem, para prosseguimento da ação.

A sentença, desfavorável à autora, citou o Enunciado 108 do Centro de Estudos e Debates (Cedes-RJ), segundo o qual a ação de usucapião é cabível somente quando houver óbice ao pedido na esfera extrajudicial. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) manteve a decisão.

No REsp 1.824.133, a Defensoria Pública alegou que o CPC/2015 faculta ao interessado pedir a usucapião em cartório, porém sem prejuízo de optar pela via judicial.

O relator do caso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), deu razão à DP, destacando que o artigo 216-A da Lei de Registros Públicos é claro: “Como se verifica já na abertura do caput desse enunciado normativo, o procedimento extrajudicial de usucapião foi disciplinado ‘sem prejuízo da via jurisdicional'”.

Gratuidade em ação de usucapião especial urbana não tem natureza objetiva
Ao julgar o REsp 1.517.822, a Terceira Turma entendeu ser inadmissível conferir isenções pecuniárias àquele que tem condições de arcar com as despesas da ação de usucapião especial urbana, mesmo que o parágrafo 2º do artigo 12 da Lei 10.257/2001 o permita. Para o colegiado, tal dispositivo deve ser interpretado conciliando-se com a norma especial que regula a matéria, a Lei 1.060/1950, e, a partir de 18 de março de 2016, com o CPC vigente.

Esse posicionamento foi adotado pela turma ao julgar recurso de um médico que ingressou com ação de usucapião especial urbana buscando a gratuidade da assistência judiciária estabelecida em lei, mesmo reconhecendo, na petição inicial, que não era “juridicamente pobre” e que não apresentaria falsa declaração de pobreza.

De acordo com o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Lei 10.257/2001 concede ao autor da ação uma presunção relativa de hipossuficiência, ou seja, de que aquele que pleiteia seja uma pessoa de baixa renda. Em razão disso, o benefício somente não será concedido se houver prova de que ele não é necessitado. No caso em julgamento, conforme apontou o relator, o próprio autor reconheceu que não preenchia os requisitos da Lei 1.060/1950 para obtenção da gratuidade.

Imóvel abandonado do Sistema Financeiro de Habitação não admite usucapião
No julgamento do REsp 1.874.632, a Terceira Turma definiu que não é possível usucapião de imóvel vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH), ainda que em situação de abandono. O colegiado avaliou que esse tipo de habitação está vinculado à prestação de serviço público, devendo ser tratado como bem público insuscetível à aquisição do direito de propriedade.

Com esse entendimento, foi negado recurso especial a um grupo de pessoas que buscava seguir na posse de um imóvel localizado em um conjunto residencial de Maceió.

Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, “na eventual colisão de direitos fundamentais, como o de moradia e o da supremacia do interesse público, deve prevalecer, em regra, este último, norteador do sistema jurídico brasileiro, porquanto a prevalência dos direitos da coletividade sobre os interesses particulares é pressuposto lógico de qualquer ordem social estável”, explicou.

“Aceitar a usucapião de imóveis públicos, com fundamento na dignidade humana d usucapiente, é esquecer-se da dignidade dos destinatários da reforma agrária, do planejamento urbano ou de eventuais beneficiários da utilização do imóvel segundo as necessidades da administração pública.” REsp 1.874.632  – ministra Nancy Andrighi

A relatora lembrou que o imóvel foi adquirido integralmente com recursos públicos e destinado à resolução do problema habitacional no país, não sendo admitida, portanto, a prescrição aquisitiva. Para ela, a inércia dos gestores públicos não pode justificar a ocupação ilícita de área pública, sob pena de serem chanceladas situações ilegais de invasão de terras.

Loteamento em Planaltina (DF) foi alvo de controvérsia envolvendo usucapião
Em julgamento de recurso repetitivo (Tema 1.025), a Segunda Seção confirmou que é cabível, por usucapião, a aquisição de imóveis particulares desprovidos de registro no Setor Tradicional de Planaltina (DF).

Os imóveis em discussão eram situados em loteamento que, embora consolidado havia décadas, não foi autorizado nem regularizado pela administração do Distrito Federal.

Na fundamentação do REsp 1.818.564, o relator, ministro Moura Ribeiro, ressaltou que a possibilidade de registro da sentença declaratória da usucapião não é indispensável para o reconhecimento do direito material de propriedade, fundado na posse ad usucapionem e no decurso do tempo. Para ele, o registro seria um efeito da sentença declaratória de usucapião, e não uma condição para o reconhecimento do direito material de propriedade ou para o exercício do direito de ação.

“Não há, portanto, como negar o direito à usucapião sob o pretexto de que o imóvel está inserido em loteamento irregular, porque o direito de propriedade declarado pela sentença (dimensão jurídica) não se confunde com a certificação e a publicidade que emergem do registro (dimensão registrária) ou com a regularidade urbanística da ocupação levada a efeito (dimensão urbanística)”, declarou Moura Ribeiro.

Uso de imóvel para moradia e comércio não impede usucapião especial urbana
O exercício simultâneo de pequena atividade comercial em propriedade que também é utilizada como residência não impede o reconhecimento da usucapião especial urbana. Com base nesse entendimento, a Terceira Turma deu provimento ao recurso especial (REsp 1.777.404) de dois irmãos e reconheceu a usucapião de um imóvel utilizado por eles de forma mista.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que a exclusividade de uso residencial não é requisito expressamente previsto em nenhum dos dispositivos legais e constitucionais que tratam da usucapião especial urbana. “O uso misto da área a ser adquirida por meio de usucapião especial urbana não impede seu reconhecimento judicial, se a porção utilizada comercialmente é destinada à obtenção do sustento do usucapiente e de sua família”, disse.

De acordo com a relatora, é necessário que o imóvel reivindicado sirva de moradia para o requerente ou sua família, mas não se exige que essa área não seja produtiva, especialmente quando é utilizada para o sustento do próprio requerente, como na hipótese em julgamento.

Não cabe intervenção de terceiros na modalidade de oposição em ação de usucapião
A Terceira Turma também definiu que não cabe intervenção de terceiros na modalidade de oposição em ações de usucapião. Com isso, foi confirmado acórdão do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) que não permitiu a participação de um terceiro interessado em ação judicial.

No julgamento do REsp 1.726.292, o relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, explicou que a intervenção pretendida era desnecessária, pois a tutela buscada por meio da oposição poderia ser alcançada pela simples contestação à ação de usucapião.

“O opoente carece de interesse processual para o oferecimento de oposição na ação de usucapião porque, estando tal ação incluída nos chamados juízos universais (em que é convocada a integrar o polo passivo por meio de edital toda a universalidade de eventuais interessados), sua pretensão poderia ser deduzida por meio de contestação”, afirmou.

Processos: REsp 1818564; REsp 1777404; REsp 1909276; REsp 1361226; REsp 1228615; REsp 1824133; REsp 1517822; REsp 1726292; REsp 1874632; REsp 1667843 e REsp 1667842


Veja também: Usucapião de imóvel rural – a proteção do pequeno agricultor sob a ótica do STJ

STJ: Repetitivo vai definir se pode ser aplicada isenção fiscal para entrada na Zona Franca de Manaus (ZFM) de produtos dos países do GATT

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu afetar os Recursos Especiais 2.046.893, 2.053.569 e 2.053.647, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, para julgamento sob o rito dos repetitivos.

A questão submetida a julgamento, cadastrada como Tema 1.244 na base de dados do STJ, é a “possibilidade de exigência das contribuições ao PIS-importação e à Cofins-importação, nas operações de importação de países signatários do GATT, sobre mercadorias e bens destinados a consumo interno ou industrialização na Zona Franca de Manaus (ZFM)”.

O colegiado determinou a suspensão de todos os processos que versem sobre a questão controvertida, em primeira e segunda instâncias, bem como dos recursos especiais e dos agravos em recurso especial no STJ.

Matéria de grande recorrência nos Tribunais Regionais Federais
No REsp 2.046.893, a Fazenda Nacional recorre de decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que aplicou a mesma isenção para a entrada de produtos do mercado interno na Zona Franca de Manaus (PIS/Cofins-faturamento) na hipótese de entrada de produtos oriundos do estrangeiro (PIS/Cofins-importação).

Segundo o relator, a discussão trata da incidência do PIS-importação e da Cofins-importação nas aquisições feitas de países signatários do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) para uso e consumo dentro da ZFM, em razão da aplicação da cláusula de Obrigação de Tratamento Nacional, tendo por base comparativa a isenção das contribuições ao PIS e à Cofins-faturamento.

O relator ressaltou o potencial de multiplicidade da controvérsia, tendo sido localizados quatro acórdãos e 62 decisões monocráticas dos ministros da Primeira e Segunda Turmas do STJ sobre o assunto. De acordo com Campbell, a Fazenda Nacional também fez um levantamento e localizou 58 recursos interpostos pela sua procuradoria no STJ a respeito do tema. O órgão federal verificou ainda a existência de mais de 770 processos sobre a matéria em âmbito nacional (Tribunais Regionais Federais da 1ª a da 6ª Regiões).

“Considerando as informações prestadas, e por se tratar de tema que envolve interpretação e aplicação de procedimento padronizado adotado pela administração tributária federal, resta demonstrada a multiplicidade efetiva ou potencial de processos com idêntica questão de direito”, afirmou o ministro.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica
O CPC regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como conhecer a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Veja o acórdão.
Processo: REsp 2046893; REsp 2053569 e REsp 2053647

STJ: Delatado pode acessar gravações sobre acordo de colaboração premiada e sua homologação

​A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a pessoa delatada em uma colaboração premiada tem o direito de acessar a gravação das negociações do acordo e da audiência em que ele foi homologado pelo juiz. Assim, o terceiro delatado pode verificar a legalidade e a regularidade do acordo de colaboração, bem como a voluntariedade do colaborador ao assiná-lo.

Esse entendimento levou o colegiado a negar provimento ao recurso no qual o Ministério Público Federal (MPF) pedia que fosse impedido o acesso de um delatado a tais gravações.

Para o MPF, o terceiro delatado não teria legitimidade para questionar a validade do acordo de colaboração premiada. O órgão argumentou ainda que o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013 estabelece que a audiência judicial de homologação do acordo é sigilosa. Por fim, alegou que a divulgação das tratativas poderia colocar em risco investigações ainda em andamento.

Acordo de colaboração premiada tem natureza híbrida
Segundo o relator do recurso no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, o artigo 3º-A da Lei 12.850/2013 estabelece que o acordo de colaboração premiada tem natureza híbrida, sendo ao mesmo tempo um negócio jurídico processual e um meio de obtenção de prova.

Apesar dessa natureza jurídica mista, o ministro explicou que o primeiro aspecto prevalecia na jurisprudência quando se discutia a legitimidade do terceiro delatado para impugnar a validade do acordo: uma vez que se tratava de negócio jurídico personalíssimo, cabia ao terceiro apenas confrontar o conteúdo da palavra e das provas apresentadas pelo delator, mas não a validade formal do acordo celebrado.

O relator explicou que esse cenário começou a mudar em recentes julgados da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que passou a entender que, como meio de obtenção de prova, o acordo pode impactar gravemente a esfera jurídica do terceiro delatado, razão pela qual é necessária a observância da legalidade, cujo desrespeito pode ser questionado por quem foi prejudicado.

Ao fazer um paralelo com a colheita de provas contra terceiros na busca e apreensão, o ministro comentou que é natural que esses terceiros tenham interesse e legitimidade para impugnar não apenas o conteúdo de tais provas, mas também a validade da medida que fez com que elas chegassem aos autos.

“Não é apenas o conteúdo da prova colhida que interfere na esfera jurídica do acusado, visto que esse conteúdo só pode ser valorado se a forma pela qual foi obtido for lícita. Daí a impropriedade de se sustentar que são apenas as provas fornecidas pelo delator que atingem o delatado, e não o acordo em si, porquanto foi só por meio do acordo – o qual deve respeitar a lei – que as provas foram obtidas”, disse.

Sigilo das diligências é pontual e não deve restringir publicidade dos atos
Para Schietti, o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013, ao determinar que o juiz deverá “ouvir sigilosamente o colaborador”, não estabelece uma regra perpétua quanto à restrição da publicidade do ato. Segundo o ministro, trata-se apenas de preservar pontualmente aquele momento da investigação, em que o sigilo é necessário para assegurar a eficácia de diligências em andamento, as quais podem ser frustradas se o indivíduo delatado tiver acesso a elas.

Contudo, ponderou que, oferecida e recebida a denúncia, “a regra volta a ser a que deve imperar em todo Estado Democrático de Direito, isto é, publicidade dos atos estatais e respeito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do artigo 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.850/2013”.

De acordo com o relator, a preocupação com as diligências em andamento é legítima, e, havendo alguma medida investigativa pendente, o juízo pode preservar o sigilo sobre ela, “mas sem vedar indefinidamente, em abstrato e de antemão, o acesso da defesa à totalidade das tratativas do acordo e à audiência de homologação”.

Processo: REsp 1954842

STJ: Repetitivo vai fixar natureza formal do crime de falsa identidade

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou o Recurso Especial 2.083.968, de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, para julgamento pelo rito dos repetitivos.

A controvérsia, cadastrada como Tema 1.255 na base de dados do STJ, está em definir “se o delito de falsa identidade é crime formal, que se consuma quando o agente fornece, consciente e voluntariamente, dados inexatos sobre sua real identidade, e, portanto, independe da ocorrência de resultado naturalístico”.

O colegiado decidiu não suspender o trâmite dos processos com a mesma matéria.

Jurisprudência consolidada sobre a natureza formal do crime de falsa identidade
No recurso representativo da controvérsia, o Ministério Público de Minas Gerais pediu a reforma da decisão que absolveu um réu acusado de falsa identidade. No caso, o acusado mentiu sobre a sua identidade para policiais que o abordaram, mas apresentou a identidade verdadeira na delegacia. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais reconheceu o arrependimento eficaz (artigo 14 do Código Penal).

O ministro Paciornik afirmou que o STJ possui jurisprudência consolidada no sentido de que “o crime de falsa identidade tem natureza formal, portanto sua consumação ocorre no momento em que o agente informa identidade falsa, independentemente da ocorrência de resultado naturalístico”. Ele ressaltou que, segundo o presidente da Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas, ministro Rogerio Schietti Cruz, esse entendimento é aplicado pelo STJ há mais de uma década.

De acordo com Paciornik, o julgamento da matéria como repetitivo objetiva garantir maior segurança jurídica no tratamento do tema pelas instâncias ordinárias e por todos os atores envolvidos na persecução penal.

“Entendo que a tese não deve ficar adstrita ao fornecimento de dados inverídicos a autoridades policiais. Embora seja a situação mais observada na prática, as hipóteses possíveis não se resumem a ela, uma vez que o sujeito passivo do crime pode ser qualquer agente estatal ou particular que venha a suportar a ação criminosa”, ponderou.

Para o ministro, a proposta da tese deve ser aberta quanto à qualificação do sujeito passivo, sob pena de se limitar injustificadamente o âmbito de incidência do precedente qualificado.

Recursos repetitivos geram economia de tempo e segurança jurídica
O Código de Processo Civil regula, nos artigos 1.036 e seguintes, o julgamento por amostragem, mediante a seleção de recursos especiais que tenham controvérsias idênticas. Ao afetar um processo, ou seja, encaminhá-lo para julgamento sob o rito dos repetitivos, os ministros facilitam a solução de demandas que se repetem nos tribunais brasileiros.

A possibilidade de aplicar o mesmo entendimento jurídico a diversos processos gera economia de tempo e segurança jurídica. No site do STJ, é possível acessar todos os temas afetados, bem como saber a abrangência das decisões de sobrestamento e as teses jurídicas firmadas nos julgamentos, entre outras informações.

Veja o acórdão.
Processo: REsp 2083968

TST: Justiça do Trabalho julgará ação sobre avó que levava netos para trabalhar nas ruas

Para a 2ª Turma, o vínculo familiar não impede o reconhecimento da exploração de trabalho infantil.


A Segunda Turma do TST reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para julgar uma ação civil pública sobre crianças e adolescentes que trabalhavam nas ruas de Corumbá (MS), a mando da avó. Segundo a ministra Liana Chaib, relatora do caso, o vínculo afetivo familiar não impede o reconhecimento de uma relação de trabalho nem descaracteriza vícios da exploração do trabalho infantil.

Crianças vendiam produtos e catavam recicláveis
A ação civil pública foi ajuizada em 2019 pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), após a constatação da situação de risco envolvendo as crianças. Na apuração, o Conselho Tutelar de Corumbá informou que acompanhava o caso desde 2016 e que a avó havia dito que assumira os cuidados dos netos porque a mãe costumava tratá-los mal quando estava sob efeito de drogas, agredindo-os e deixando de alimentá-los. Segundo o conselho, a mulher levava as crianças para vender produtos pelas ruas e, à noite, recolhiam recicláveis em eventos noturnos.

Apesar das orientações do conselho, a situação persistia. No Carnaval de 2019, a equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) encontrou as crianças à noite e, por volta de 1h da manhã, uma delas andava descalça com uma sacola com materiais recicláveis. Dias depois, outra foi vista vendendo plantas. Também foi constatado que uma das crianças tinha mais de 20 faltas na escola num curto período de tempo.

Na ação, o MPT pede que a avó seja proibida de utilizar mão de obra infantil em qualquer atividade e que as crianças nem mesmo possam acompanhar um adulto nas ruas.

Em sua defesa, a avó alega que está tomando providências para garantir um desenvolvimento saudável para os netos, mas “da sua maneira, como pode”, porque não recebe auxílio do pai e da mãe das crianças, e “não mede esforços para cuidar de cinco netos ao mesmo tempo”.

Vara e TRT remeteram o caso à Justiça Comum
Para o juízo de primeiro grau e o Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (MS), não cabe à Justiça do Trabalho julgar o caso porque, apesar de envolver trabalho, a exploração se dava em regime de economia familiar, sem remuneração. Assim, a via adequada para resolver a questão seria a Justiça comum, mais especificamente as Varas de Direito de Família ou relacionadas a questões de infância e juventude. Por isso, extinguiram a ação, deixando a critério do MPT levar o caso à Justiça comum.

No recurso ao TST, o MPT argumentou que o fato de as crianças serem submetidas a essa situação pela avó e não receberam remuneração não descaracteriza o trabalho infantil, uma vez que estão sendo usadas como mão de obra. Para o Ministério Público do Trabalho, a gravidade é ainda maior, porque a avó teria o dever de cuidar das crianças e garantir seu desenvolvimento físico, moral e social adequado.

Relatora define competência da Justiça do Trabalho
A relatora, ministra Liana Chaib, assinalou que o trabalho infantil está inserido no conceito de trabalho em sentido amplo e, portanto, é da competência da Justiça do Trabalho, nos termos do artigo 114, inciso I, da Constituição Federal. Ao mesmo tempo, a Lei Complementar 75/93 atribui ao MPT a competência para ajuizar ação civil pública na Justiça do Trabalho para defender direitos sociais constitucionalmente garantidos, entre eles direitos e interesses de crianças e adolescentes decorrentes das relações de trabalho.

Atividades estão entre piores formas de trabalho infantil
Liana Chaib ressaltou que a coleta de materiais recicláveis e a venda de produtos nas ruas fazem parte da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil descritas no Decreto 6.481/2008, que regulamenta a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com a lista, a operação industrial de reciclagem de papel, plástico e metal, geralmente vindos da coleta de lixo, envolve riscos ocupacionais como a exposição a agentes biológicos (bactérias, vírus, fungos e parasitas) e, por consequência, a doenças de pele e respiratórias, viroses, parasitoses e mesmo câncer.

O comércio ambulante, por sua vez, apresenta como riscos ocupacionais a exposição a violência, drogas, assédio sexual e tráfico de pessoas, radiação solar, chuva e frio, acidentes de trânsito e atropelamentos. As repercussões à saúde envolvem ferimentos, dependência química, doenças sexualmente transmissíveis, atividade sexual precoce, gravidez indesejada, queimaduras e câncer de pele, desidratação e doenças respiratórias.

Poder familiar não autoriza exploração de mão de obra
Para a ministra Liana Chaib, o pátrio poder, ou poder familiar, não significa que a família seja dona da criança. “Ela não pode se valer de sua força de trabalho num regime de economia familiar, em detrimento da proteção à infância e ao direito ao não trabalho em atividades sabidamente perigosas, insalubres e inadequadas, que não oferecerem qualquer tipo de aprendizado”, afirmou.

Ainda segundo a ministra, o poder familiar deve ser exercido em um contexto de responsabilização pelo adequado desenvolvimento da criança. “Mais do que um domínio ou um direito sobre o corpo e a vida de outrem, o poder familiar se caracteriza como o dever de zelar, cuidar e promover o melhor progresso de um ser humano em formação”.

A seu ver, é preciso afirmar a competência da Justiça do Trabalho no caso, como forma de proteger as crianças e os adolescentes contra a exploração. Portanto, também cabe à Justiça do Trabalho determinar que a avó não exija a prestação de serviços de seus netos.

Por decisão unânime, o colegiado determinou o retorno do processo à Vara do Trabalho de Corumbá para que examine os pedidos do MPT.

TRF1: Somente podem participar do Mais Médicos alunos graduados no exterior com diploma revalidado no Brasil

Sob o entendimento de que Edital n. 4, de 08/03/2021, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, teve como objeto realizar o chamamento público de médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou estrangeiras com diploma revalidado no Brasil, com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM), na forma prevista na Lei n. 12.871/2013, não houve irregularidade no indeferimento da inscrição de uma graduada do curso de medicina em instituição estrangeira que não revalidou o diploma no Brasil.

A autora teve seu mandado de segurança negado na primeira instância e apelou da sentença alegando ter sido preterida na ordem de preferência. O caso foi julgado pela 12ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) sob a relatoria da desembargadora federal Ana Carolina Roman, que informou que a ordem de preferência para efeito de chamamento de médicos no Programa Mais Médicos, prevista no art. 13 da Lei n. 12.871/2013, é a seguinte:

I - médicos formados em instituições de educação superior brasileiras ou com diploma revalidado no País, inclusive os aposentados;

II - médicos brasileiros formados em instituições estrangeiras com habilitação para exercício da Medicina no exterior; e

III - médicos estrangeiros com habilitação para exercício da Medicina no exterior.

Segundo a magistrada, o primeiro requisito estabelecido no edital é a participação de médicos formados em instituições superiores brasileiras ou com diploma revalidado no Brasil.

Desse modo, concluiu a relatora, “considerando que o chamamento está direcionado aos médicos formados no Brasil ou com diploma aqui revalidado, habilitados a exercer a medicina no território nacional, não se verifica qualquer irregularidade quanto ao perfil do médico estabelecido no edital, eis que em plena consonância com a ordem de prioridade fixada na legislação de regência, não cabendo ao Judiciário interpretá-lo de modo extensivo, sob pena de ofensa à legislação pertinente à matéria”.

Processo: 1015089-31.2021.4.01.3400

TRF1: União estável se equipara ao casamento para fins de cancelamento de pensão temporária

Apesar de a Lei 3.373/1958 não estipular a união estável como condição para a perda da pensão temporária pela filha maior de 21 anos, sua equiparação ao casamento não deixa dúvidas de que a constituição da entidade familiar altera o estado civil da beneficiária, fazendo com que ela perca direito ao benefício.

Na hipótese, o benefício de pensão temporária que fora concedido à autora, na vigência da Lei 3.373/1958, foi revisto e posteriormente cancelado pela administração ao fundamento de que se tratava de “pensionista em união estável enquadrada como filha maior solteira”.

Com esse entendimento, a 1ª Turma do Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), sob a relatoria do desembargador federal Marcelo Albernaz, considerou correta a decisão que determinou a cessação do benefício, uma vez que a autora, ora apelante, deixou de possuir uma das condições para a manutenção da pensão concedida com base no art. 5º da Lei 3.373/1958, que é a continuação da qualidade de solteira, visto que, conforme assinalado pelo magistrado sentenciante, “a interessada não comprovou satisfatoriamente seu estado civil, capaz de manter o auferimento dos proventos de pensão recebidos na Polícia Federal”.

Assim, o Colegiado negou provimento à apelação.

Processo: 1011763-29.2022.4.01.3400


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