Baleado na desocupação, ex-morador espera por providências do poder público

“Estou com sete sequelas nas raízes dos nervos da perna esquerda. Tenho um exame para fazer profundo, chama eletroneuromiografia. É muito dolorido. O exame consta aí e fala: é bala letal… Não era bala de borracha, era bala de verdade que eu recebi e fiquei dezessete dias passando sofrimento no hospital. Eu não desejo isso para ninguém, para nenhum ser humano”. São as palavras de David Furtado, 31 anos, diante da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal. Ex-morador do Pinheirinho, ele recebeu dois tiros de arma de fogo de um homem da Guarda Civil Metropolitana de São José dos Campos.

Naquele domingo, 22 de janeiro de 2012, ele corria com sua mulher, Laura Furtado, que levava o filho nos braços, para uma quadra poliesportiva onde a prefeitura fazia triagem dos moradores, a poucos metros do terreno do Pinheirinho. Em algum momento, Furtado virou-se e sentiu um tiro lhe atingir nas costas. Foi socorrido, levado para o Hospital Municipal e passou por uma cirurgia. A Prefeitura de São José dos Campos reconheceu à época que o tiro fora disparado por um guarda civil, já identificado, mas o processo ainda não foi concluído.

Um ano depois de levar aquele tiro, ele disse estar “bem melhor”. Furtado recebeu a reportagem do Última Instância na casa que mora com a mulher e com o filho Vinícius, de um ano e nove meses. Ele conta que, pouco tempo depois da cirurgia, sentia sua perna esquerda fraca e que perdeu 60% dos movimentos. “É como se a perna não acompanhasse o meu pensamento”, descreveu. Desde então, precisou parar de jogar futebol, “que era a coisa que eu mais gostava de fazer”. Antes de levar aquele tiro, Furtado era ajudante de pedreiro. Com a perna comprometida, precisou mudar de profissão.

Nos meses seguintes à desocupação, começou a fazer fisioterapia – essencial, segundo ele, para que a perna não atrofie. Sua mãe, auxiliar de serviços, precisou deixar o emprego para acompanhá-lo no tratamento. Sem carro, os dois saíam de casa às 5h para chegar às 7h na fisioterapia. Saia às 12h e chegava em casa às 14h. Naquela época, ele foi selecionado para participar do Programa de Aprendizagem para Pessoas com Deficiência oferecido pela Embraer. O curso é remunerado e termina apenas em agosto de 2014.

Como o valor do aluguel social não é suficiente para pagar pela casa onde moram, ele não hesitou em deixar o tratamento para dar continuidade ao curso. “A gente está sem casa, minha esperança é ser efetivado na Embraer”.

David Furtado foi a única vítima de bala de fogo. O Condepe-SP (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – São Paulo), porém, elaborou um documento no qual registra outras violações de direitos humanos. O Conselho fez um relatório com base nos depoimentos de 634 pessoas, ouvidas nos dias 24 de janeiro e 4 de fevereiro de 2012. Ficaram de fora todas as famílias que se recusaram a permanecer nos abrigos e se alojaram nas ruas ou em casas de família e de amigos.

Entre os tipos de denúncias registradas pelo Condepe, estão as queixas de ameaças e humilhações (260 denúncias); de pouco tempo para recolher bens (225); casa demolida sem a respectiva retirada de bens (205); agressão física (166); casas saqueadas (71); ameaças mediante armamento (67) e agressão ou morticínio de animais (33).

Além do caso de David Furtado, o Condepe destaca o que aconteceu com também ex-morador Ivo Teles dos Santos, 70 anos, durante a desocupação. Ele discutiu com policiais militares, resistiu à prisão e, segundo testemunhas, apanhou de três policiais. Com ferimentos nos braços, nas costas e na cabeça, naquele mesmo dia ele foi internado na UTI do Hospital Municipal de São José dos Campos. “Eles vieram com muita violência para tirar a gente de casa. Eu reagi e eles partiram para cima. Caí no chão e os três policiais continuaram a bater com o cassetete em mim, olha só como estou agora! Não consigo nem andar”, disse o idoso, segundo registro do Condepe.

Seu BAU (Boletim de Atendimento de Urgência) nunca foi localizado, disse ao Última Instância o defensor público Jairo Salvador. Em 10 de abril, ele faleceu. No atestado de óbito, consta apenas falência múltipla de órgãos. Seu corpo foi exumado, mas o laudo está sob sigilo judicial.

“Nós sustentamos que, no caso do seu Ivo, tenha sido decorrência direta ou indireta da desocupação pela falta de planejamento. O David foi diretamente por um agente do Estado, que deu dois tiros nele com bala de verdade”, disse. “A investigação criminal [do caso do David] não anda. Por mais que a gente fique atrás, não anda. Passado um ano, a pessoa que atirou nele já foi identificada e continua livre, não tem conclusão do inquérito, os delegados mudam”, criticou.

Do total de respostas obtidas pelo Condepe, 592 pessoas registraram, entre os prejuízos colhidos em decorrência da reintegração de posse, a falta ao emprego nos dias subsequentes. Destas, 28 declararam terem sido despedidos em função da desocupação.

“Foram ainda apresentados os dados colhidos junto aos abrigos municipais de confinamento da população desabrigada do Pinheirinho, dando conta da existência de 1069 crianças e adolescentes nos quatro abrigos, em flagrante desrespeito às exigências do Estatuto da Criança e do Adolescente, e 50 idosos, igualmente lesados nos seus direitos previstos no Estatuto do Idoso, entre outras legislações em vigor”, critica o texto, disponível no endereço www.condepe.org.br.

Uma cópia deste documento foi encaminhada para as Comissões de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São José dos Campos, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, para a o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em Brasília, para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA 9Organização dos Estados Americano) e para o o Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas).

Por enquanto, tanto David quanto os demais lesados pela operação de desocupação esperam pelas providências do poder público.

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