por Joaquim Falcão
Em recente julgamento, a Suprema Corte norte-americana determinou que menor de idade não pode ser condenado à morte. Consideraram que, dada a imaturidade do réu, pena de morte seria punição “cruel” e “não usual” -o que é vedado pela Constituição americana.
Esse seria mais um julgamento entre outros se, ao redigir o voto em nome dos ministros vencedores, o “justice” Kennedy não tivesse citado a experiência internacional como argumento importante. Ressaltou que os Estados Unidos eram o único país do mundo que ainda adotava pena de morte para jovens, prática já abandonada até mesmo por China e Irã. Disse textualmente: “É apropriado que reconheçamos o peso esmagador do juízo internacional contrário à pena de morte juvenil, embasado em grande parte na compreensão de que a instabilidade e falta de equilíbrio emocional dos jovens pode freqüentemente ser uma circunstância que contribui para o crime”.
Foi a gota d água. A polêmica foi imediata. Nem chegou a ganhar as ruas. O “justice” Antonin Scalia, escrevendo em nome dos ministros vencidos, rebateu na hora e de público. Contestou explicitamente o uso do “juízo internacional” nas decisões da Suprema Corte. Considerações alienígenas estariam invadindo território exclusivamente norte-americano: o da interpretação de suas leis. O Judiciário deveria interpretar apenas de “si para sigo mesmo”, diria Guimarães Rosa. Rejeitando a tese de que o direito americano deve se conformar ao resto do mundo, afirmou Scalia: “Em vários aspectos relevantes, o direito da maioria dos países difere do nosso (…) Não creio que a aprovação de outras nações e povos possa reforçar o nosso compromisso com princípios americanos (…)”.
A polêmica tem desdobramentos radicais. Trinta e oito deputados propuseram na Câmara uma resolução estabelecendo que as decisões judiciais sobre o significado da Constituição americana não podem se basear em “decisões, leis ou pronunciamentos de instituições estrangeiras (…)”. Ou seja, a Câmara dos Deputados quer limitar a discricionariedade da Suprema Corte. Ao julgarem, os “justices” estariam proibidos de fundamentar seus raciocínios em análises comparativas com leis e situações de outros países!
Os argumentos dos deputados dão bem a medida de como setores da sociedade nos EUA percebem a globalização de hoje: como via única. Eis, textualmente, os argumentos: (a) os americanos não devem buscar orientação sobre como viver as suas vidas nas decisões quase sempre contraditórias de centenas de organizações internacionais; (b) a confiança inapropriada do Judiciário em julgamentos, leis e pronunciamentos estrangeiros coloca em risco a soberania dos EUA, a separação de Poderes e a autoridade do presidente e do Senado para celebrar e ratificar tratados; (c) a capacidade de os americanos viverem dentro de claros limites legais (separados dos estrangeiros) é um fundamento do Estado de Direito; (d) a própria Suprema Corte teria dito, no caso Printz x EUA (1997), que “a análise comparativa é inadequada para a tarefa de interpretação da Constituição”. E por aí vamos.
Esses argumentos consubstanciam o que se convencionou chamar de “excepcionismo”, isto é, a doutrina de que os EUA são excepcionais e, como tais, isolam-se das soluções globais.
Como tudo o mais em um país que, com razão, orgulha-se de seu pluralismo e respeito à liberdade, essa xenofobia judicial radical não é unânime. Mas expressa bem os novos tempos. Afinal, passou-se do discurso para a ação: votos de ministros da Suprema Corte e projeto de resolução de legisladores eleitos. O caso é serio. Em outras palavras, o unilateralismo da era Bush não tende a ser apenas militar ou econômico. Pode vir a ser judicial também.
Essa posição fica moralmente insustentável diante da ação do governo norte-americano, de sua comunidade financeira e do FMI e do Banco Mundial, instituições onde os EUA têm primazia. Há anos buscam exportar leis, doutrinas, jurisprudências e experiências judiciais americanas. Dois pesos e duas medidas. Os exemplos são inúmeros. A recente e necessária nova Lei de Falências, que o Banco Mundial tanto desejou, foi moldada pelo “chapter 11”, dos EUA. Setores do banco questionam aqui e ali nosso Estado de Direito pelo fato de alguns contratos não serem interpretados como lhes conviria. Sem falar na pressão diária do governo americano para que a nossa legislação de direito de propriedade intelectual esteja conforme à legislação e à prática deles.
Não se combate xenofobia com xenofobia. Não se justificaria a de cá pela de lá. Mas o fato é que, embutido nessa xenofobia norte-americana, existe um respeitável sentimento de patriotismo e, sobretudo, uma crença muito positiva de que eles são capazes de resolver por si sós seus problemas. O que é um bom conselho para um Brasil ainda tão mimético. É nesse sentido que devemos analisar essa tendência de xenofobia judicial. De alguma forma, ainda que de maneira radical e nos termos equivocados, coloca-se uma questão fundamental para todos os países que inevitavelmente participam da globalização: sem auto-estima, autoconfiança e imaginação nacional não se pode ir muito longe.
(Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 25 de abril)
12 de dezembro
12 de dezembro
12 de dezembro
12 de dezembro