Sentimento das massas não deve ser o condutor das decisões judiciais

Autor: Leonardo Corrêa (*)

 

O juiz que decidisse a controvérsia sem pedido das partes, não oferecesse à parte contrária razoável oportunidade de defesa, ou se pronunciasse sobre o seu próprio litígio, embora vestindo a toga de magistrado e a si mesmo se chamando de juiz, teria na realidade cessado de sê-lo.”
(Mauro Cappelletti)

De tempos em tempos, me vejo forçado a retomar o assunto relativo ao ativismo judicial. Nos dias de hoje, com uma politização da justiça em níveis alarmantes, volto ao tema. Toda vez que a maioria deposita uma fé cega no Augusto Poder Judiciário — muito além da “fé nos juízes”, proclamada por Piero Calamandrei —, um arrepio invade minha espinha dorsal.

É aquele receio que todo amante da liberdade sofre quando se defronta com a adoração por personalidades, e suas opiniões de cunho individual, sempre que estas estejam — aparentemente — em consonância com os anseios das massas.

Nesse particular, para facilitar o entendimento do que se seguirá nas próximas linhas, gostaria de retomar o conceito de homem massa, apresentado por José Ortega y Gasset, e sua visão do Estado:

o homem-massa vê no Estado um poder anônimo, e como ele se sente a si mesmo anônimo vulgo —, crê que o Estado é coisa sua. Imagine-se que sobrevém na vida pública de um país qualquer dificuldade, conflito ou problema: o homem-massa tenderá a exigir que imediatamente o assuma o Estado, que se encarregue diretamente de resolvê-lo com seus gigantescos e incontrastáveis meios.

Pior, pede, praticamente, que o Judiciário aja como os jacobinos, cortando cabeças em praça pública. É o sentimento de vingança — não de justiça — saindo como larva de um vulcão em erupção. Aliás, tal qual disse a personagem Dona Benta de Monteiro Lobato, “logo que os homens se reúnem em multidão, o nível mental baixa muito. Quanto maior a multidão, mais baixo o nível mental”.

Será que devemos seguir esse trágico caminho, principalmente no âmbito das decisões judiciais? Não deveríamos, sob pena de retornarmos à barbárie e mostrarmos ao mundo que somos uma republiqueta de bananas. A orientação do ordenamento jurídico impõe, em grande medida, seguir o caminho da segurança jurídica e do respeito ao império das leis.

Nesse passo, San Tiago Dantas esclarecia, com clareza solar, que:

Muita gente diz que a finalidade do direito é produzir a justiça, mas tão importante é a produção de justiça como a produção da segurança e numerosos institutos e normas jurídicas não compreenderíamos se a única finalidade do direito fosse fazer justiça. É que ele quer fazer justiça, mas quer fazer também segurança.

O sentimento das massas, com suas contradições e idiossincrasias, não deve ser o condutor das decisões judiciais. Deve-se observar o direito e seguindo o preceito do filósofo estoico e Imperador Marcus Aurelius, separar o acidental do essencial. Veja-se, por oportuno, uma advertência importantíssima do Justice Oliver Wendel Holmes, em voto vencido, perante a Suprema Corte americana:

Grandes casos, assim como casos difíceis tendem a gerar precedentes ruins. Isso porque, esses casos não são grandes ou grandiosos em razão de sua importância para moldar a jurisprudência do futuro, mas, sim, em razão de uma peculiaridade que cria um grande interesse imediato, apelando para os sentimentos e distorcendo a capacidade de julgamento. Esse interesse imediato cria uma forma de pressão, levando ao que previamente era claro parecer duvidoso. Diante disso, até os princípios legais mais bem consolidados são torcidos e retorcidos (tradução livre).

Pouco mais de um século depois, o Chief Justice John Roberts salientou:

Os membros desta Corte possuem a autoridade de interpretar a lei; não detemos a expertise nem a prerrogativa de proferir julgamentos sobre políticas. Essas decisões são atribuídas aos líderes eleitos de nossa nação, que podem ser expulsos de seus cargos se o povo discordar deles. Não é nossa função proteger o povo de suas escolhas políticas (tradução livre).

Mas, ora bolas, qual seria o grande receio de conferir mais liberdades aos magistrados em geral? Por que, raios, a mais alta corte de um país não poderia proteger o cidadão das lambanças do legislador? A resposta para essa indagação vem nas palavras de Lord Devlin:

é grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário.

Eis aí a pièce de résistance, não se troca o arbítrio de um poder pelo outro. Da mesma forma, não se substitui o bom julgador por suposto representante dos anseios das massas. Sinto falta, por exemplo, de juízes e juristas da estirpe de Aliomar Baleeiro, que, em voto contundente, arrematou:

Por vezes, sustentei que não aplicar o dispositivo indicado, ou aplicar o não indicado, assim como dar o que a lei nega, ou negar o que ela dá, equivale a negar vigência de tal lei. E ainda continuo convencido disso, pois nenhum juiz recusa vigência à lei, salvo casos excepcionalíssimos de direito intertemporal ou de loucura furiosa (RTJ 64/677).

No pórtico do presente, apresentou-se uma transcrição de Mauro Cappelletti — o qual, como se sabe, defendia a “criatividade da função jurisdicional”. Todavia, o grande processualista respeitava os limites legais para a criatividade, que, primordialmente, deveria ser utilizada para preencher as lacunas legais.

Aliás, vale lembrar a diferença abismal entre o processo judicial e o legislativo. Um não tem nada a ver com o outro. Logo, se tomamos de empréstimo a liberdade do legislador e a transferirmos, sem quaisquer limites, aos magistrados, corremos o risco do totalitarismo judicial como alertou Lord Devlin.

Vale dizer, por fim, que nem a visão consequencialista da Análise Econômica do Direito, e.g., poderia ser capaz de obstar a aplicação do texto legal. Na mesma esteira, não se pode usar a sociologia, a política e a “vontade das massas” para este mesmo fim.

O Direito posto deve manter-se como guia fiel do julgador, sem que se permita o socorro ao subterfúgio com malabarismos dialéticos. Checks and Balances e criatividade não se confundem com ativismo e na perigosíssima tendência de legislar da toga.

De outra forma, parafraseando Winston Churchill, o sistema jurídico se torna “um mistério, envolto por um enigma, embrulhado num segredo”. De rebarba, o país se torna uma “República de Ocasião”, sem um pingo de segurança jurídica, que, por óbvio, prejudica o próprio desenvolvimento econômico e social do país. Brasil, onde as leis mudam ao sabor das massas e da conveniência. Esse slogan acabaria com a nossa jovem democracia. Precisamos, urgentemente, de “juízes em Berlim”!

 

 

 

Autor: Leonardo Corrêa  é advogado formado pela PUC-Rio, com LL.M pela University of Pennsylvania (EUA).


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