Autor: Jorge Rubem Folena de Oliveira (*)
Tenho desenvolvido a tese de que a Constituição Federal de 1988 tornou-se exaurida e ineficaz a partir do afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República (quando a vontade manifestada no sufrágio foi ignorada), dadas a forma e as circunstâncias em que transcorreu todo o processo político e jurídico do impeachment, mediante a manipulação da Constituição para atender interesses casuístas e derrocar a democracia.
Atacada frontalmente, a Constituição “cidadã” não foi capaz de assegurar a democracia nem de manter a estabilidade política no país; em consequência, as instituições políticas (parlamento e Judiciário) também se desmancharam com o impeachment, sem que seus membros tenham percebido a grandiosidade de seus cargos e/ou o papel que lhes foi delegado pelo constituinte originário para impedir o caos.
Com efeito, os membros das instituições políticas (aqui os três Poderes da República) promovem na atualidade a autodissolução de suas funções e impõem, sem pensar, o fim trágico do Estado brasileiro, que não consegue mais assegurar os objetivos consensuais do pacto político de 5 de outubro de 1988.
Da mesma forma que a Constituição brasileira hoje só existe no papel, também as instituições políticas que nasceram dela não mais dispõem de autêntica legitimidade e respaldo popular; vale lembrar que foi do espírito da vontade popular que se acendeu a força nacional que exigiu o fim do regime civil-militar de 1964-1985, quando cessaram todas as condições de se manter a ordem anterior.
Na verdade, a Constituição de 1988 vem sendo esvaziada nos seus propósitos originais desde governos anteriores, que aprovaram reformas que levaram a termo a defesa da soberania nacional e dos valores sociais do trabalho e da dignidade humana, como o fim do conceito de empresa brasileira, o monopólio do petróleo, as reformas previdenciárias e as privatizações generalizadas de quase tudo que era dever do Estado, sem que tenha havido prévia e ampla discussão com a sociedade.
No atual governo, atingiu-se o marco para dar fim a quase 30 anos de tentativas de se constituir, no Brasil, por meio da referida constituição, “uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Os pilares da Constituição Federal de 1988 (proteção à soberania nacional, aos direitos individuais e aos direitos sociais, representados com grande destaque pelo fortalecimento dos direitos trabalhistas, vindos simbolicamente da era Vargas) não estão mais produzindo os efeitos de reconhecimento, como aprovados e acolhidos no meio da sociedade, a partir do amplo acordo de aceitação política e social que originou aquele pacto constitucional.
Na teoria jurídica, tem sido difundida uma corrente de pensamento que busca mitigar a racionalidade do Direito, transpondo-o, por meio de pura retórica, para uma categoria de natureza empírica, como fato social. De acordo com essa linha de pensamento, o aspecto realista do Direito se manifesta mediante o entendimento firmado pelos tribunais, principalmente os superiores, que julgam em definitivo as questões constitucionais.
A partir disso, pela construção da teoria do fato social empírico, o Direito torna-se aquilo que os tribunais (e especialmente as supremas cortes) venham a pronunciar em caráter definitivo. Essa corrente é facilitada pelos interesses da hegemonia, que, pelo consenso, tenta estabelecer uma ordem política imposta de cima para baixo, executada por burocratas e sem necessidade de qualquer respaldo na soberania popular, de forma que a máxima “todo poder emana do povo” perca o seu sentido histórico e finalista.
Por tal razão, é difundido e massificado por certos meios de comunicação que o século XXI é do protagonismo judicial; pelas mesmas vias são rebaixadas e desmoralizadas as instituições políticas, como os parlamentos e os governos, nos quais ainda resta algum grau de vontade popular capaz de impedir, mesmo que temporariamente, reformas prejudiciais aos interesses da população, como a previdenciária apresentada pelo governo, em anos eleitorais.
Assim, para a ordem atualmente em curso, é normal que bancos promovam jantares e eventos sociais e culturais para juízes; ou que juízes façam protestos e ameaças de greves visando a manutenção de um benefício por moradia que atenta contra a moralidade jurídica; ou, então, que juízes possam interferir em atos de governos, como a concessão de indulto de natal. Em igual situação, que militares possam estar nas ruas para executar atribuições da polícia, num nítido desvio de função.
Tudo isso deixa evidente que não há mais eficácia da Constituição, pois ela proíbe tais comportamentos, que, no entanto, são tolerados como normais; da mesma forma que a suprema corte aceitou como normal o julgamento de Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados e depois pelo Senado da República, num nítido desvio de suas funções para a persecução de interesses contrários à manutenção da democracia.
A Constituição passou a ser manuseada e lida conforme interesses alheios ao espírito (metafísico mesmo) em que ela foi originada, o que promove o desmanche desse documento jurídico, destituído de sua eficácia; em consequência, ocorre o mesmo nas instituições políticas por ela criadas para o funcionamento do Estado brasileiro.
No cenário atual, temos juízes que asseguram a manutenção de uma ordem jurídica ilegítima, que não é a mesma estabelecida pela Constituição de 1988, que deve ser resgatada. Sendo assim, é preciso deixar claro que a suposta ordem jurídica constitucional, que se alega estar em vigor no país, está sendo usada tão somente para favorecer interesses contrários ao país e totalmente estranhos à formação original do pacto político de 1988, que, ao nosso ver, já não mais existe.
Autor: Jorge Rubem Folena de Oliveira é advogado, mestre em Direito, doutor em Ciência Política, professor de Filosofia do Direito e Ciência Política da Universidade Cândido Mendes e membro da Comissão Permanente de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).