Uma consumidora que comprou um apartamento na planta em Cuiabá terá direito à devolução de 90% do valor pago e a uma indenização por danos morais, após a construtora responsável pelo empreendimento deixar a obra paralisada por mais de dois anos, sem previsão de retomada. Além da indenização, Tribunal de Justiça de Mato Grosso manteve a determinação de devolução de 90% dos valores pagos pela consumidora justamente porque reconheceu que a construtora deu causa à rescisão contratual ao deixar a obra paralisada por tempo indeterminado.
A decisão é da Primeira Câmara de Direito Privado, que manteve, por unanimidade, sentença da 5ª Vara Cível da capital.
Segundo o processo, a cliente firmou contrato em 2021 para aquisição de um imóvel localizado no bairro Jardim Presidente, pelo valor de R$ 170 mil. Após pagar cerca de R$ 26 mil, ela percebeu que a construção havia sido interrompida e, mesmo após meses de espera, não recebeu nenhuma previsão concreta da construtora sobre a conclusão das obras.
A compradora ajuizou ação pedindo a rescisão contratual, a devolução dos valores pagos e indenização por danos morais, alegando frustração de expectativa e insegurança diante da falta de transparência da empresa. A construtora, por sua vez, sustentou que a paralisação era apenas temporária e que o contrato não poderia ser rescindido porque estava vinculado a um financiamento com alienação fiduciária.
O argumento não foi aceito pela relatora, desembargadora Clarice Claudino da Silva. Ela destacou que o contrato de alienação fiduciária não impede o consumidor de rescindir o compromisso de compra e venda quando há inadimplemento da construtora. “A paralisação da obra por prazo indeterminado, sem justificativas plausíveis e sem previsão de retomada, configura inadimplemento absoluto da obrigação principal, autorizando a resolução contratual”, afirmou.
A magistrada também ressaltou que a demora e a omissão da empresa ultrapassam o mero aborrecimento e atingem direitos da personalidade da consumidora. “A frustração do projeto de moradia e a ausência de transparência configuram dano moral indenizável”, pontuou.
Processo nº 1014378-95.2024.8.11.0041 –
Veja o processo:
Diário de Justiça Eletrônico Nacional – CNJ – MT
TJMT – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO – DJEN
Assunto: [Rescisão do contrato e devolução do dinheiro, Indenização por Dano Moral, Indenização por Dano Material, Liminar] Relator: Des(a). CLARICE CLAUDINO DA SILVA Turma Julgadora: [DES(A). CLARICE CLAUDINO DA SILVA, DES(A). MARCIO APARECIDO GUEDES, DES(A). TATIANE COLOMBO] Parte(s): [ROSIMERES PEREIRA LIMA – CPF: 790.199.431-20 (APELADO), QUEREM HAPUQUE DIAS – CPF: 051.153.971-10 (ADVOGADO), GESSICA DE PAULO COELHO – CPF: 040.678.731- 07 (ADVOGADO), CEA SADDI SPE LTDA – CNPJ: 36.351.287/0001-41 (APELANTE), MARCUS VINICIUS DALAVIA BATISTA – CPF: 110.230.486-71 (ADVOGADO)] A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência Des(a). CLARICE CLAUDINO DA SILVA, por meio da Turma Julgadora, proferiu a seguinte decisão: POR UNANIMIDADE, NEGOU PROVIMENTO AO RECURSO. E M E N T A Direito Civil e do Consumidor. Apelação Cível. Compra e Venda de Imóvel na Planta. Atraso na Entrega. Obra Paralisada. Rescisão Contratual. Devolução Parcial dos Valores Pagos. Dano Moral Configurado. Sentença Mantida. Recurso Desprovido. I. Caso em Exame 1. Apelação Cível interposta em virtude de sentença que julgou procedente Ação de Rescisão de Contrato de Compromisso de Compra e Venda de Imóvel ajuizada por consumidora, com fundamento na paralisação prolongada da obra sem previsão de retomada. A sentença rescindiu o contrato, determinou a restituição de 90% dos valores pagos e fixou indenização por danos morais no valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais). A parte Requerida sustentou a impossibilidade jurídica do pedido, a inexistência de inadimplemento e a legalidade da cláusula de retenção de 25%, além de questionar a condenação por dano moral. II. Questão em Discussão 2. Há três questões em discussão: (i) definir se a existência de contrato de financiamento com garantia fiduciária impede a rescisão contratual pelo promitente comprador; (ii) estabelecer se a paralisação da obra por período superior a dois anos configura inadimplemento contratual apto a justificar a rescisão; (iii) determinar se há dano moral indenizável em razão da frustração da entrega do imóvel. III. Razões de Decidir 3. A alienação fiduciária não impede a rescisão do contrato de promessa de compra e venda, por se tratar de instrumento autônomo, cuja execução não exclui o exercício do direito do consumidor de postular a resilição por inadimplemento da construtora. 4. A paralisação da obra por prazo indeterminado, sem previsão concreta de retomada e sem justificativas plausíveis, configura inadimplemento absoluto da obrigação principal da construtora, o que autoriza a resolução contratual com base no art. 475 do CC e nos princípios do CDC. 5. A restituição parcial de 90% dos valores pagos, embora inferior à restituição integral prevista pela jurisprudência do STJ quando o inadimplemento é exclusivo do fornecedor, foi mantida em razão da ausência de recurso da parte Autora, aplicando-se o princípio da proibição da reformatio in pejus 6. O inadimplemento substancial prolongado, a ausência de transparência e a frustração do projeto de moradia ultrapassam o mero aborrecimento e configuram dano moral, justificando a indenização fixada em valor razoável e proporcional. IV. Dispositivo e Tese 7. Recurso desprovido. Tese de julgamento: “1. A existência de contrato com alienação fiduciária não impede a rescisão do compromisso de compra e venda por inadimplemento da construtora. 2. A paralisação da obra por período prolongado e indefinido configura inadimplemento absoluto, autorizando a resolução contratual e a devolução das quantias pagas. 3. A frustração do projeto de moradia e a omissão da construtora quanto à entrega do imóvel justificam a compensação por danos morais.” __________ Dispositivos relevantes citados: CC, arts. 395, parágrafo único, e 475; CPC, art. 1.013, §1º; CDC, arts. 2º, 3º e 14. Jurisprudência relevante citada: STJ, AgInt no AREsp n. 2.079.545/MG, rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, j. 27.03.2023, DJe 03.04.2023; STJ, Súmula 543; TJMT, RAC n. 1030925-16.2024.8.11.0041, rel. Des. Dirceu dos Santos, j. 13.04.2025, DJE 13.04.2025. R E L A T Ó R I O RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL N. 1014378 – 95.2024.8.11.0041 Trata-se de Recurso de Apelação interposto por Cea Saddi Spe Ltda. em virtude da sentença proferida pela Juíza da 5ª Vara Cível da Comarca de Cuiabá, nos autos da Ação de Rescisão de Contrato e Devolução dos Valores Pagos com Pedido de Danos Morais, movida por Rosimeres Pereira Lima. A Juíza a quo julgou procedente o pedido inicial, declarou a rescisão contratual do instrumento de compromisso de compra e venda de imóvel celebrado entre as partes e condenou a Ré à restituição de 90% dos valores pagos pela Autora, além do pagamento a indenização por danos morais no valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais), bem como às custas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% do valor da condenação. Em suas razões recursais, a Apelante sustenta, preliminarmente, a impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que o contrato em questão estaria respaldado por alienação fiduciária regularmente registrada em cartório, o que, segundo alega, afasta a possibilidade de rescisão judicial, por se tratar de negócio jurídico perfeito e acabado, com transferência da propriedade à instituição financeira. No mérito, sustenta que não houve inadimplemento por parte da vendedora, havendo apenas uma paralisação temporária da obra em decorrência de questões operacionais, não caracterizando inadimplemento absoluto. Afirma ainda que o pedido de rescisão partiu exclusivamente da Autora, razão pela qual seria cabível a retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores pagos, nos termos do contrato firmado, reputando-se indevida a condenação por danos morais, por ausência de ilicitude ou violação à esfera subjetiva da parte autora. Sob tais argumentos, pugna pela reforma integral da sentença, com o reconhecimento da impossibilidade jurídica da rescisão contratual, ou, subsidiariamente, pela alteração do percentual de retenção para 25% (vinte e cinco por cento) e exclusão da condenação por danos morais. Contrarrazões no ID. 311704892. É o relatório. V O T O R E L A T O R Egrégia Câmara: Ressai dos autos que Rosimeres Pereira Lima ajuizou Ação de Rescisão de Contrato c/c Devolução de Valores Pagos e Indenização por Danos Morais, com pedido de tutela de urgência, em desfavor de CEA Saddi SPE Ltda., visando à resolução do compromisso de compra e venda de unidade habitacional situada no empreendimento “Residencial C&A Saddi”, localizado na Avenida Ayçar Saddi, Loteamento Jardim Presidente, no município de Cuiabá/MT. Na peça inaugural, a Autora alegou ter firmado, em abril de 2021, contrato de compra e venda com a Ré para aquisição do imóvel identificado como unidade autônoma n. 304, Bloco 02, com área privativa de 49,53 m², pelo valor total de R$ 170.612,92 (cento e setenta mil, seiscentos e doze reais e noventa e dois centavos), tendo adimplido até então a quantia de R$ 26.566,71 (vinte e seis mil, quinhentos e sessenta e seis reais e setenta e um centavos). Sustentou que as obras do empreendimento se encontram paralisadas há cerca de nove meses, sem qualquer previsão de retomada, circunstância que gerou insegurança jurídica e frustração de legítimas expectativas quanto à entrega do imóvel. Afirmou que a Requerida se limitou a informar que aguardava a aprovação de um plano emergencial pela Caixa Econômica Federal, o qual já havia sido negado em três oportunidades. Narrou, ainda, que tal situação motivou sua mudança para outro município por motivos profissionais, razão pela qual optou pela rescisão contratual. A Autora destacou que tentou obter solução administrativa, sem êxito, e que a reputação da Ré perante outros consumidores também é negativa, conforme verificado em grupos de compradores e no site Reclame Aqui. Alegou que, mesmo diante de tais circunstâncias, a Requerida pretendia aplicar cláusulas contratuais abusivas, como retenção de valores superiores a 25% em caso de rescisão por iniciativa do comprador. Requereu, assim, a rescisão do contrato, a devolução dos valores pagos com retenção limitada a 10%, a condenação ao pagamento de indenização por danos morais, a concessão da tutela de urgência para suspender a exigibilidade de parcelas vincendas e impedir a negativação de seu nome, bem como a condenação da Ré ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios. Citada, a Ré apresentou contestação na qual arguiu, preliminarmente, a ilegitimidade passiva, sob o fundamento de que o contrato fora objeto de financiamento com alienação fiduciária, estando o imóvel registrado em nome da Caixa Econômica Federal. Alegou também ausência de interesse de agir e inépcia da petição inicial. No mérito, defendeu a validade das cláusulas contratuais, a inexistência de inadimplemento, bem como a impossibilidade jurídica de rescisão, ante a consumação do negócio por meio de escritura pública. Requereu, subsidiariamente, que fosse autorizada a retenção de 50% dos valores pagos e afastado o pedido de indenização por danos morais. Após a instrução processual, a Juíza de primeiro grau julgou procedentes os pedidos iniciais, declarou a rescisão do contrato e condenou a Requerida à devolução de 90% do valor pago, além de indenização por danos morais em R$ 8.000,00 (oito mil reais). Inconformada, a Apelante sustenta, preliminarmente, a impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que o contrato em questão estaria respaldado por alienação fiduciária regularmente registrada em cartório, o que, segundo alega, afasta a possibilidade de rescisão judicial, por se tratar de negócio jurídico perfeito e acabado, com transferência da propriedade à instituição financeira. No mérito, sustenta que não houve inadimplemento por parte da vendedora, havendo apenas uma paralisação temporária da obra em decorrência de questões operacionais, não caracterizando inadimplemento absoluto. Afirma ainda que o pedido de rescisão partiu exclusivamente da Autora, razão pela qual seria cabível a retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores pagos, nos termos do contrato firmado, reputando-se indevida a condenação por danos morais, por ausência de ilicitude ou violação à esfera subjetiva da parte autora. Sob tais argumentos, pugna pela reforma integral da sentença, com o reconhecimento da impossibilidade jurídica da rescisão contratual, ou, subsidiariamente, pela alteração do percentual de retenção para 25% (vinte e cinco por cento) e exclusão da condenação por danos morais. Feitas essas considerações, passo a análise das razões recursais. Da Prejudicial de Mérito: A Apelante sustenta que a existência de contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária, formalizado por escritura pública e registrado no Cartório de Registro de Imóveis, constitui óbice jurídico absoluto à rescisão contratual pretendida pela promitente compradora. Contudo, é necessário pontuar, com o devido rigor técnico, que a alienação fiduciária em garantia prevista na Lei n. 9.514/1997, ainda que formalmente aperfeiçoada com a lavratura de escritura pública e o respectivo registro, não torna imune à resilição o contrato de promessa de compra e venda que lhe deu origem. Trata-se de contratos distintos, ainda que interdependentes: de um lado, a promessa de compra e venda firmada entre consumidora e construtora (relação obrigacional principal); de outro, o contrato de financiamento com alienação fiduciária entre consumidora e agente financeiro (relação acessória e instrumental). Ambos os instrumentos convivem de forma harmônica, sem que um exclua a possibilidade de revisão, resolução ou resilição do outro, especialmente diante de inadimplemento material de uma das partes. Conforme exaustivamente reconhecido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a existência de contrato com alienação fiduciária não impede o ajuizamento de ação de rescisão contratual movida pelo consumidor, ainda que a propriedade formal do bem esteja registrada em nome do agente fiduciário. A Construtora permanece responsável pelas obrigações decorrentes do contrato de promessa de venda, inclusive pela entrega da unidade e pelo cumprimento do cronograma físico-financeiro da obra. No mesmo sentido, esta Corte ao julgar caso similar envolvendo o mesmo empreendimento, assim reconheceu: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C RESTITUIÇÃO DE VALORES E DANOS MORAIS – ATRASO NA ENTREGA DE IMÓVEL – OBRA PARALISADA – RESCISÃO CONTRATUAL E INDENIZAÇÃO MANTIDAS – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (…) III. RAZÕES DE DECIDIR A paralisação da obra sem cronograma de retomada configura inadimplemento antecipado, tornando inútil a prestação ao consumidor. Aplicação do art. 395, parágrafo único, do CC e jurisprudência do STJ. A existência de financiamento com garantia fiduciária não impede a resolução do contrato por inadimplemento da incorporadora. A responsabilidade da vendedora é autônoma. A sentença observou os limites do pedido inicial, que requereu, ainda que subsidiariamente, a restituição integral dos valores pagos, afastando alegação de julgamento ultra petita. O inadimplemento substancial e a frustração da legítima expectativa de moradia justificam a condenação por danos morais, em valor compatível com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. (…) (TJMT. RAC. N.U 1030925-16.2024.8.11.0041, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, DIRCEU DOS SANTOS, Terceira Câmara de Direito Privado, Julgado em 13/04/2025, publicado no DJE 13/04/2025). Vale destacar que a propriedade fiduciária é uma forma de propriedade resolúvel, precária, condicionada ao adimplemento integral da dívida. Até que ocorra a consolidação definitiva da propriedade no nome do credor fiduciário (o que não restou comprovado nos autos), o bem continua juridicamente atrelado à relação original de consumo, mantendo-se o vínculo obrigacional entre promitente vendedora e promitente compradora. Ademais, mesmo que a propriedade formal estivesse registrada em nome da instituição financeira, isso não alteraria a natureza da relação jurídica de base, tampouco impediria que a promitente compradora exercesse seu direito de pleitear a resolução do contrato com base no inadimplemento da construtora. Portanto, não há falar em “negócio jurídico perfeito e acabado”, como quer fazer crer a apelante, pois a função do contrato não se esgota na formalização documental, mas sim em sua execução prática e integral, a qual, como visto, restou absolutamente frustrada no caso concreto. Em resumo, não há qualquer impedimento jurídico para a rescisão do contrato. A pretensão da Autora encontra amparo no ordenamento jurídico e na jurisprudência consolidada. Desse modo, rejeita-se a preliminar suscitada. Do Mérito O cerne da controvérsia reside em definir se, diante da paralisação da obra por tempo considerável e sem previsão concreta de retomada, configura-se inadimplemento contratual bastante para ensejar a rescisão do contrato de promessa de compra e venda de imóvel, com restituição parcial dos valores pagos e compensação por danos morais. A resposta, à luz do ordenamento jurídico, é afirmativa. Desde logo, é importante frisar que o contrato objeto desta demanda está submetido à égide do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que se trata de relação entre consumidora final e fornecedora de serviço imobiliário, consubstanciado na incorporação e construção de unidade habitacional. A Construtora, por sua vez, é fornecedora de bem imóvel por meio de empreitada com finalidade lucrativa. Aplica-se, portanto, com plena força, o disposto nos artigos 2º, 3º e 14 do CDC. Nesse contexto, os princípios da boa-fé objetiva, função social do contrato, informação, vulnerabilidade do consumidor e equilíbrio contratual tornam-se norteadores da interpretação e aplicação das cláusulas contratuais, que não podem ser vistas como absolutas ou intangíveis, especialmente quando contrariam preceitos de ordem pública e de proteção à parte hipossuficiente. Verifica-se dos autos que a Autora vinha adimplindo com sua obrigação contratual, vez que já havia efetuado o pagamento de R$ 26.566,71 (vinte e seis mil, quinhentos e sessenta e seis reais e setenta e um centavos), sem, no entanto, receber qualquer contraprestação efetiva da Ré, tendo em vista que as obras do empreendimento “Residencial C&A Saddi” se encontravam paralisadas há cerca de nove meses à época da propositura da Ação, e por mais de dois anos à data da contestação e contrarrazões. A própria Construtora, em documentos internos, confirma que o andamento da obra está condicionado à aprovação de “plano emergencial” pela Caixa Econômica Federal, pleito já negado três vezes pela instituição financeira. Assim, é incontestável que a situação delineada nos autos revela inadimplemento contratual qualificado e grave por parte da Requerida, não sendo possível classificá-lo como simples atraso justificável ou intercorrência administrativa corriqueira. A Construtora, no caso em apreço, não apenas deixou de cumprir o cronograma pactuado, como se manteve omissa e inerte diante da paralisação prolongada das obras, limitando-se a atribuir sua inação a supostos entraves junto à Caixa Econômica Federal, sem, contudo, apresentar qualquer plano concreto, cronograma atualizado ou providência efetiva para a superação da mora. Tal conduta evidencia, de forma inequívoca, a falta de prestação substancial da obrigação principal assumida no contrato, qual seja, a edificação e entrega do imóvel no prazo estipulado. O que se verifica, portanto, é o descumprimento de dever contratual essencial, e não acessório, o que vulnera frontalmente a confiança legítima depositada pela parte consumidora e compromete a função social do contrato. Mais do que o descumprimento de uma cláusula pontual, está-se diante da frustração integral da finalidade econômica do negócio jurídico, o que caracteriza inadimplemento absoluto, nos termos do art. 475 do Código Civil, autorizando a parte inocente a pleitear a resolução do contrato, sem necessidade de tolerar indefinidamente a mora da contraparte. Importa lembrar que, em se tratando de aquisição de imóvel residencial na planta, não se trata de um bem qualquer. A casa própria figura como um dos maiores projetos existenciais do consumidor brasileiro, sendo usualmente fruto de esforço financeiro prolongado, sacrifício orçamentário e expectativa afetiva. A frustração desse projeto, por falta de prestação concreta da Ré, excede o campo patrimonial e repercute no plano moral, como bem reconheceu a sentença. Portanto, é imperioso reconhecer que, ao deixar de cumprir a principal obrigação assumida, a entrega da unidade habitacional, sem justificativa plausível, em prazo razoável e com mínima transparência na comunicação com a adquirente, a construtora incorreu em inadimplemento absoluto, o que legitima a resolução contratual por culpa sua, a restituição dos valores pagos (com retenção apenas moderada e justificada), bem como a compensação por danos morais. A par da comprovação do inadimplemento substancial, impõe-se a análise da restituição dos valores pagos e do percentual de retenção admitido à luz da legislação consumerista e da jurisprudência consolidada do STJ. Na sentença o Juiz de primeiro grau fixou a devolução de 90% do valor pago pela Autora, com retenção de 10% a título de despesas administrativas. Embora tal percentual esteja aquém daquele pretendido pela Ré, que defende a retenção de 25% ou até 50% dos valores, é importante destacar que, a rigor, nem mesmo a retenção de 10% se sustenta na hipótese, à luz da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, o entendimento consagrado no âmbito do STJ, por meio do Verbete Sumular n. 543, é de clareza solar: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. Ou seja, tratando-se de rescisão contratual motivada por inadimplemento exclusivo da Construtora, como reconhecido nos autos, a devolução das quantias pagas deveria ocorrer de forma integral, sem qualquer retenção, nem mesmo sob o fundamento de compensação por encargos operacionais. A paralisação prolongada da obra, sem previsão de retomada, aliada à omissão reiterada da empresa quanto à real situação do empreendimento, configura inadimplemento absoluto e qualificado da vendedora, fato suficiente, por si só, para atrair a aplicação do referido entendimento. A Autora, em nenhum momento, contribuiu para a frustração contratual; ao contrário, viu-se compelida a requerer a rescisão diante do quadro de total indefinição, instabilidade e violação de legítimas expectativas. Assim, a Juíza de primeiro grau, embora tenha reconhecido corretamente a culpa da Ré pela rescisão, não laborou com o costumeiro acerto ao autorizar a retenção de 10%, em afronta ao entendimento sumulado do STJ. O correto, sob a ótica estritamente técnica, seria determinar a restituição integral das parcelas pagas, sem qualquer dedução, à luz da responsabilidade exclusiva da Requerida pelo inadimplemento. Contudo, destaca-se que não houve interposição de recurso pela parte Autora no tocante ao percentual de retenção fixado na sentença. Ausente a insurgência da parte prejudicada, opera-se a preclusão lógica e consumativa quanto a esse ponto, e impede sua reforma por esta instância ad quem, nos termos do princípio tantum devolutum quantum appellatum (art. 1.013, caput e §1º, do CPC). Dessa forma, embora se reconheça o equívoco na fixação da retenção de 10%, a sentença deve ser mantida nos limites da irresignação apresentada, visto que o Apelo foi interposto exclusivamente pela parte Ré, e esta, por óbvio, não pode pretender reforma da sentença em seu desfavor. Nesse cenário, não há falar em majoração da retenção, como almeja a Apelante, tampouco sua supressão de ofício por este órgão julgador, sob pena de reformatio in pejus, vedada no processo civil. Por fim, no que tange à condenação por danos morais, também não assiste razão à Apelante. Embora o inadimplemento contratual, por si só, não gere automaticamente dano moral, há de se considerar as circunstâncias concretas do caso, como o grau de violação da confiança contratual, o prazo de atraso, a natureza do contrato, e os efeitos da frustração para o consumidor. No caso, a Apelante assumiu, por força do contrato de promessa de compra e venda firmado em abril de 2021, a obrigação de construir e entregar unidade habitacional no empreendimento “Residencial C&A Saddi”, com todas as características e prazos estipulados no cronograma da incorporação. Todavia, mesmo decorrido período superior a dois anos desde a celebração do pacto e quase um ano de paralisação total das obras à época da propositura da demanda, a unidade adquirida pela Autora permanece inacabada, sem qualquer perspectiva concreta de conclusão, situação que perdura até o momento, conforme atestado nos autos. A mora da Construtora não apenas se mostra injustificada, mas também prolongada, inerte e desamparada de explicações plausíveis ou de cronograma atualizado, circunstância que inviabiliza por completo a função contratual pretendida. A Apelada, portanto, jamais teve acesso ao imóvel para fins de moradia, residência familiar, locação ou investimento, ficando privada da fruição econômica e existencial do bem durante todo o período contratual, sem sequer vislumbrar horizonte realista de entrega. A jurisprudência do STJ admite, em hipóteses como esta, a configuração de dano moral, como se depreende dos seguintes precedentes: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. ATRASO NA ENTREGA DE IMÓVEL. CLÁUSULA PENAL. INVERSÃO EM DESFAVOR DA PROMITENTEVENDEDORA. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. CABIMENTO. CONSONÂNCIA DO ACÓRDÃO RECORRIDO COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. (…) 3. O simples inadimplemento contratual em razão do atraso na entrega do imóvel não é capaz, por si só, de gerar dano moral indenizável, sendo necessária a comprovação de circunstâncias específicas que podem configurar a lesão extrapatrimonial. 4. Na hipótese, contudo, o atraso de mais de 2 (dois) anos, após o prazo pactuado pelas partes, considerando-se o prazo de tolerância de 180 (cento e oitenta) dias, supera o mero inadimplemento contratual, devendo ser mantida indenização por danos morais. (…) (AgInt no AREsp n. 2.079.545/MG, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 27/3/2023, DJe de 3/4/2023). No caso, ressalto que os elementos constantes nos autos evidenciam inércia total da incorporadora em viabilizar o cumprimento do objeto contratual, mesmo diante da adimplência da consumidora. A omissão prolongada da Apelante excedeu o limite do mero descumprimento contratual e produziu aflição, angústia, frustração e sentimento de impotência ao consumidor, configurando, assim, violação a direito da personalidade passível de compensação. Além disso, a sentença indicou com clareza a ocorrência de expectativa frustrada relevante, circunstância apta a justificar a reparação, ainda que em valor módico e proporcional, como fixado (R$ 8.000,00), sem configurar enriquecimento sem causa. Por essas razões, entendo que a condenação por dano moral deve ser mantida, pois adequadamente fundamentada e ajustada aos critérios de razoabilidade, proporcionalidade e efetiva lesão extrapatrimonial verificada. Ante o exposto, nego provimento ao recurso de Apelação, mantendo integralmente a sentença. Nos termos do artigo 85, § 11, do CPC, majoro os honorários advocatícios para 15% (quinze por cento) do valor atualizado da condenação. É como voto. Data da sessão: Cuiabá-MT, 04/11/2025
4 de dezembro
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