Titular de direitos da personalidade, pessoa jurídica pode sofrer dano moral?

Autor: Venceslau Tavares Costa Filho (*)

 

São pelo menos dois os dispositivos que evidenciam a possibilidade de extensão à pessoa jurídica da proteção normalmente dispensada à pessoa natural em face dos danos a bens imateriais ou extrapatrimoniais, quais sejam o artigo 52 do Código Civil e a Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça.

O reconhecimento dessa possibilidade no STJ se dá em razão de uma construção doutrinária e jurisprudencial que distingue a honra em seus aspectos objetivo e subjetivo. Isso decorre da ideia segundo a qual “as entidades morais teriam um direito à honra, não ‘subjetiva’, mas ‘objetiva’, representado pela sua estima e consideração por terceiros”.

Ressalte-se, ainda, que o legislador constitucional, quando estabeleceu no inciso X, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988 a inviolabilidade da honra “das pessoas” — bem como assegurou “o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” —, não fez menção a qualquer restrição às pessoas físicas ou jurídicas, utilizando o termo genérico “pessoas”, de modo que tal normativa constitucional tutelaria tanto a “honra” das pessoas físicas como a das pessoas jurídicas. Veja-se, nesse sentido, o entendimento adotado no Recurso Especial 214.381, relatado pelo ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (da 4ª Turma do STJ):

“A evolução do pensamento jurídico, no qual convergiram jurisprudência e doutrina, veio a afirmar, inclusive nesta Corte, onde o entendimento tem sido unânime, que a pessoa jurídica pode ser vítima também de danos morais, considerados estes como violadores da sua honra objetiva”.

A doutrina italiana também procede com tal distinção entre honra objetiva (reputazione) e honra subjetiva (onore). Enquanto a honra subjetiva (onore) guarda relação com a apreciação subjetiva da própria dignidade, a honra objetiva (reputazione) é dotada de um caráter objetivo que se vincula à fama pública da qual se goza. Francesco Gazzoni, contudo, não afirma peremptoriamente a possibilidade da pessoa jurídica sofrer dano extrapatrimonial ou moral, defendendo a análise “caso a caso”, a fim de verificar se o interesse lesado diz respeito ao ente (pessoa jurídica) ou às pessoas naturais que são membros daquele.

Tal observação da necessidade de análise da questão “caso a caso” encontra eco na doutrina nacional na consideração do chamado “dano institucional” (ou seja, aquela espécie de danos que, diversamente dos “danos patrimoniais ou morais, atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação”):

“Situações há, contudo, em que a associação sem fins lucrativos, uma entidade filantrópica, por exemplo, é ofendida em seu renome. Atinge-se a sua credibilidade, chamada de honra objetiva, sem que, neste caso se pudesse afirmar que o dano fosse mensurável economicamente, considerando-se sua atividade exclusivamente inspirada na filantropia. Aqui não há evidentemente dano material. (…). A solução, pois, é admitir que a credibilidade da pessoa jurídica, como irradiação de sua subjetividade, responsável pelo sucesso de suas atividades, é objeto de tutela pelo ordenamento e capaz de ser tutelada, especialmente na hipótese de danos institucionais”.

Gustavo Tepedino, contudo, rechaça a possibilidade de extensão da tutela legal dos direitos da personalidade para as pessoas jurídicas. Isso porque é de se distinguir a subjetividade, que marca tanto as pessoas humanas como as pessoas jurídicas, da personalidade, que é expressão da dignidade humana. É a subjetividade que confere às pessoas jurídicas a capacidade jurídica, mas entende ser indevido equiparar tal capacidade de direito com a noção de personalidade à medida que esta última se tornou objeto de direito.

Assim, termina por rejeitar tal possibilidade diante do risco da “associação da lógica empresarial, informada pelos valores próprios das relações jurídicas patrimoniais, à tutela da pessoa humana, que preside as relações jurídicas existenciais”. De modo que atribui a instituição da Súmula 227 do STJ às inconsistências e insuficiências da civilística tradicional.

As críticas do professor Gustavo Tepedino parecem proceder em parte. Isso porque afirmar que a pessoa jurídica é titular de direitos da personalidade como os direitos ao nome, à imagem, à privacidade etc, parece desarrazoado. No que pertine ao direito ao nome, por exemplo, é de se retirar o direito ao nome da pessoa jurídica do âmbito dos direitos da personalidade por várias razões. O direito ao nome ganha a dignidade de um direito da personalidade a medida que seja expressão de uma identidade; o que não ocorre com as pessoas jurídicas, que dispõem de outros meios de identificação. De modo que é de se retirar o direito ao nome de um suposto rol de direitos da personalidade das pessoas jurídicas.

O mesmo se pode dizer em relação ao direito à imagem. Ora, sendo a imagem a representação física de alguém, não se pode dizer que a pessoa jurídica seja dotada de tal direito. Isso porque os elementos visíveis da pessoa jurídica, tais como os seus bens ou seus representantes, não permitirão identificar a pessoa como tal, mas, sim, o seu patrimônio ou aqueles que têm poderes para representá-la.

Quanto ao direito à privacidade, o direito à honra (ou reputação) e o direito moral de autor, há que se considerar que os bens jurídicos atingidos nesse caso não serão os mesmos que os lesionados quando da violação desses direitos enquanto direitos fundamentais da pessoa humana. Especialmente para a pessoa jurídica com fins lucrativos, o ataque a tais direitos restringe-se a aspectos econômicos relevantes à sua atuação no mercado. Enquanto o ataque à pessoa natural “atinge a sua dignidade, ferindo-a psicológica e moralmente, no caso da pessoa jurídica repercute em sua capacidade de produzir riqueza, no âmbito da iniciativa econômica por ela legitimamente desenvolvida”.

Assim, apesar de reconhecer a possibilidade de a pessoa jurídica sem fins lucrativos sofrer o chamado dano institucional, Gustavo Tepedino rechaça a possibilidade de a pessoa jurídica sofrer o dano moral. Apesar de não considerarmos integralmente procedente a visão do mencionado professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), não podemos deixar de reconhecer que a extensão dos direitos da personalidade à pessoa jurídica no mais das vezes vem fazer frente à inviabilização econômica da pessoa jurídica em razão da ameaça de perda da sua credibilidade junto ao mercado.

Nesse fenômeno, contudo, não reside apenas uma questão estritamente patrimonial. A jurisprudência do STJ parece considerar — na fixação da indenização por “dano moral” infligido a pessoa jurídica — os seguintes fatores: perda de clientela e transações desfeitas resultantes do fato gerador, como se decidiu no REsp 746.637-PB. Ora, as negociações desfeitas são hipótese de causação de dano material na modalidade lucros cessantes, já que isso resultou em um óbice à feitura de aportes patrimoniais. Já a perda de clientela não pode ser considerada um dano patrimonial. À medida que a clientela não integra o patrimônio da pessoa jurídica (porquanto seja impossível quantificar, transferir ou apropriar-se dela), é de se considerar que, nesse aspecto, o dano é uma espécie de dano extrapatrimonial.

Sílvio Romero Beltrão, em uma das melhores monografias escritas em língua portuguesa sobre o tema dos direitos da personalidade, afirma que a dignidade da pessoa humana é o componente que diferencia os direitos da personalidade em relação aos direitos pessoais na civilística. Apesar de se tratar em ambos os casos de direitos não patrimoniais, é o fundamento ético da dignidade da pessoa humana sobre o qual se assentam os direitos da personalidade que irá distingui-los dos direitos pessoais em geral, desprovidos que são deste fundamento.

Entretanto, na falta de outra expressão melhor ou consagrada pela jurisprudência, o STJ terminou por considerar tal dano como uma espécie de dano moral. Contudo, melhor seria diferenciar o dano moral (que é informado por valores próprios da pessoa humana) e o dano extrapatrimonial, que resulta da lesão a direitos de conteúdo não patrimonial das pessoas em geral. Por ora, pode-se dizer que há uma relação entre gênero e espécie, de modo que os danos morais seriam espécie de danos extrapatrimoniais.

 

 

Autor: Venceslau Tavares Costa Filho é advogado, doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

 


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