Por que é preciso ato de ofício na corrupção passiva?

Autor: Emerson Paxá P. Oliveira (*)

 

As grandes investigações e processos criminais que envolvem corrupção desde a última década têm ganhado notável espaço nos noticiários brasileiros. Isso porque, no caso do Brasil, a macrocriminalidade financeira, pelo que se tem observado na experiência nacional, na massiva maioria das vezes está relacionada com a corrupção de agentes públicos.

Ou seja, quase sempre, quando são noticiados grandes escândalos envolvendo branqueamento de capitais, crimes contra o sistema financeiro nacional e outros crimes afetos ao Direito Penal Econômico, veicula-se envolvimento de agentes públicos e a famosa corrupção.

A criminologia moderna traz explicações convincentes sobre o complexo fenômeno, mas não é disso que se ocupa o presente texto. Há, ainda, que se criticar o conceito jornalístico de “corrupção” propalado na impressa, que vai muito além das balizas do tipo penal, mas também não é esse o objeto do presente artigo.

A discussão aqui travada gravita em torno da conformação da corrupção passiva e da necessária correlação com o dever de ofício do agente público corrupto (intraneus), sobretudo em razão de recentes julgamentos a respeito da questão.

A questão sobre a qual sempre pareceu não haver contornos claros, ganhou os holofotes quando do julgamento do caso do mensalão perante o STF (AP 470-MG).

Na referida oportunidade, superando alguns precedentes daquela corte, sagrou-se vencedor (por maioria) o entendimento segundo o qual, para a consumação do crime de corrupção passiva, basta o mero ato de solicitar, receber ou aceitar promessa de indevida vantagem, o funcionário público, em razão de sua função, sendo indiferente a retribuição, efetiva ou potencial, por parte do intraneus com a prática de ato funcional.

O argumento é pautado no fato de que o artigo 317, do Código Penal, não exige, dentre a suas elementares típicas, omitir ou retardar ato de ofício ou proceder àquele com violação do dever funcional. Cuidar-se-ia de crime formal, bastando o simples fato de o agente público solicitar, receber ouaceitar promessa de indevida vantagem, mas em razão de sua função.

Nesse sentido, em recente decisão, cujo voto condutor é da lavra da ministra Rosa Weber, a 1ª Turma do STF, no julgamento da Ação Penal Originária 694/MT, por maioria, reafirmou o precedente. O julgado, em parte, ficou assim ementado:

“Corrupção passiva. Desimportante seja a vantagem indevida contraparte à prática de ato funcional lícito ou ilícito. O ato de ofício não é elementar do tipo (artigo 317 do CP), apenas causa de aumento da pena (§ 1º do mesmo dispositivo legal). Necessário o nexo causal entre a oferta (ou promessa) de vantagem indevida e a função pública do agente. Corrupção passiva evidenciada diante do recebimento direto e indireto de vantagens financeiras sem explicação causal razoável” (Ação Penal 694/MT, 1ª Turma do STF, rel. Rosa Weber. j. 2/5/2017, DJe 31/8/2017).

O referido precedente (decidido por maioria), longe de pôr fim à questão, pois há inúmeros outros julgados em sentido contrário, segundo nos parece, não se mostra dogmaticamente adequado à resolução da questão e traz inúmeros impasses de outra ordem.

Ora, segundo é inconteste, o delito de corrupção (passiva ou ativa) é crime formal, o qual prescinde de superveniência de um resultado naturalístico (material/físico) para a sua consumação, bastando a prática da ação ou omissão descrita no tipo, aliada às demais circunstâncias constitutivas da figura incriminadora.

Isso significa dizer que, inobstante o funcionário público solicite, receba ouaceite promessa de indevida vantagem em razão da função, o fato de vir a efetivamente praticar ato com violação da função, omitir ou retardar ato em favor do extraneus é indiferente para sua consumação, cuidando-se de mero exaurimento do delito, e causa de maior reprimenda do crime, pois somado ao desvalor da ação (necessária à consumação) está o desvalor do resultado que lhe exaspera a pena (artigo 317, parágrafo 1º, CP). Quanto a isso não há discussão.

Contudo, não nos parece adequado afirmar, como já fez o STF e mais recentemente outras cortes do país, que para a consumação do delito de corrupção passiva basta o funcionário público receber, solicitar ou aceitar promessa de indevida vantagem em razão de sua função, prescindindo que o comportamento típico esteja vinculado à retribuição (pelo menos potencial), por ato funcional pelo servidor.

O bem jurídico administração pública, tutelado pela norma incriminadora do artigo 317, do Código Penal, visa justamente proteger o regular e imparcial funcionamento da administração pública, buscando zelar pela objetividade e impessoalidade da atuação do poder público, sem permitir favorecimento injustificado a terceiros, impondo ao agente público, no caso do artigo 317, CP, o dever de probidade no trato da coisa pública.

Dessa feita, mais do que o mero recebimento de indevida vantagem, deve haver o tráfico da função, do dever de ofício, pelo funcionário público. A corrupção, em sentido técnico-jurídico, é o ato de negociar o dever funcional, solicitando, recebendo ou aceitando promessa de indevida vantagem para beneficiar outrem, agindo ou se omitindo, com o desvio ético do desempenho do cargo.

Edgar Magalhães Noronha, citando Carrara, é providencial ao anotar que “a corrupção (a baretteria di magistrato) é então a venda concluída entre um particular e um oficial público de um ato do ministério deste, que, em regra, deveria ser gratuito”.

Não se trata de exigir para a consumação do crime em sua forma básica (artigo 317, caput) a prática de ação ou omissão com violação das funções, mas, sim, de atrelar a vantagem indevida solicitada, recebida ou cuja promessa foi aceita, à potencial verificação de um ato funcional pelo intraneus em favor de particular, como um verdadeiro especial motivo de agir nas condutas de solicitar, receber ou aceitar promessa.

Cuida-se de uma questão de arranjo sistêmico da interpretação do tipo em discussão, pois, como já dito, se é crime de resultado cortado ou formal, bastando para a sua consumação a prática dos comportamentos nucleares descritos no tipo base, a verificação posterior do resultado descrito no parágrafo 1º, do artigo 317, tornaria exaurida a conduta, majorando-se a pena, o que certamente deveria ser abarcado pelo dolo do agente e, portanto, o móvel do comportamento típico no crime de resultado cortado.

O raciocínio contrário permitiria que fossem punidos a título de corrupção, considerando se tratar de crime formal, mais eventos do que aqueles que poderiam se encaixar na figura do delito exaurido (parágrafo 1º), o que nos soa incongruente.

Ou seja, permitiríamos punir a título de corrupção passiva do caput do artigo 317, CP, fatos que sequer podem ser exauridos, porque não têm relação com o desempenho das atividades funcionais em sentido estrito do agente corrupto, ou seja, que não guardam relação alguma com a competência de atuação funcional do servidor em favor do extraneus, o que se afigura demasiado vago e, em se tratando da pena criminal, extremamente perigoso.

Não se cuida, sequer, de uma interpretação restritiva do tipo da corrupção, mas de uma que objetiva dar o adequado arranjo sistêmico e teleológico à correta aplicação do tipo.

O raciocínio aqui desenvolvido também se afigura importante, na medida em que reafirma a função de garantia do tipo penal e a delimitação mais clara entre o injusto punível e o indiferente penal, dando melhores contornos àquilo que se convencionou chamar de casos fronteiriços.

Com efeito, é preciso que se diga, o conceito de indevida vantagem estabelecido no tipo é muito amplo, atinge qualquer acréscimo patrimonial do agente fora de seus rendimentos ou aquele vedado ou não previsto em lei. A rigor, qualquer recebimento de valores ou bens, por funcionário público, de um particular, mas em razão do cargo, ou ainda o acréscimo ao patrimônio de bem incompatível com seus rendimentos, pode configurar improbidade (artigo 9º, Lei 8.429) ou ilícito administrativo de seu estatuto funcional e, portanto, vantagem indevida.

Um simples e inocente presente recebido ou aceitado, em razão do cargo, ao agente público, mas sem relação com prática desviada de um ato funcional, segundo a apressada e inadequada interpretação do tipo, pode configurar corrupção passiva.

Arnaldo Malheiros Filho, um dos maiores criminalistas de seu tempo, ao sustentar da bancada do Supremo, na ação penal do mensalão, citando o ex-ministro Sydney Sanches, foi quem afirmou que, se todo e qualquer recebimento de vantagem, ainda que reputada indevida, por agente público é crime, todos os ministros daquela corte deveriam estar, portanto, condenados e presos por delito de corrupção passiva, porque rotineiramente recebem em seus gabinetes presentes, brindes, de editoras jurídicas, justamente porque são ministros da corte; ou seja, em razão do cargo que ocupam.

Vamos a um outro exemplo: um diligente procurador da República ou um empenhado juiz em início de carreira que, atuando em comarca do interior, como é comum ocorrer, recebe de presente um animal de granja ou um bolo de um dos munícipes, como forma de demonstrar a sua gratidão pelo excelente trabalho desenvolvido na localidade. Sem muito esforço interpretativo, tal evento pode facilmente configurar, na esteira do que se tem praticado, um absurdo caso de crime de corrupção passiva.

Os exemplos podem parecer absurdos, mas o controle de configuração do injusto típico reclama controles e balizas dogmáticas seguras, não podendo ser relegado a critérios do que é razoável ou não.

Ademais, sob outro prisma, esfacelando o argumento de que o caput do artigo 317, CP, não exige a correlação entre a vantagem indevida endereçada ao agente público e a prática potencial de um do ato de ofício para a sua consumação, é oportuno destacar que a própria Lei de Improbidade Administrativa, em seu artigo 9º, ao tipificar os atos de ímprobos de enriquecimento ilícito do agente público — que em muito se assemelham ao crime de corrupção —, em todas as oportunidades que trata dos atos de receber ou perceber vantagens indevidas de qualquer natureza, sempre o faz correlacionando a um dever de ofício do agente público ou a alguma atribuição sua no exercício de sua função.

Assim, é preciso que se indague: como se conceber que a tipificação do delito de corrupção passiva, segundo o entendimento de que prescinde da associação do prêmio da corrupção a um ato oficioso do agente público para sua configuração, é menos exigente que a consubstanciação de um ato de improbidade administrativa?

Tendo o princípio da fragmentariedade ou da subsidiariedade em matéria penal como ponto de partida, desde uma visão constitucionalista da aplicação do Direito Penal, a interpretação do tipo de corrupção passiva aqui criticada viola princípios comezinhos da propedêutica penal, não se sustentando sob nenhum viés.

Ainda, como já dito, a prática de um ato com violação do dever funcional e a omissão ou o retardamento de ato de ofício são o móvel subjetivo do comportamento típico de artigo 317, CP, cuidando-se de elementar subjetiva específica do tipo, que, embora não expressamente prevista no caput, está implícita na regula criminis, fenômeno já reconhecido pelo próprio STF na AP 470/MG e pela Corte Especial do STJ, na AP 472/ES, em relação ao delito branqueamento de capitais.

Com base nessas premissas, é possível afirmar que a solicitação, recebimento ou aceite de promessa de indevida vantagem pelo agente público, se relacionada ao exercício de sua função, mas não atrelada ao seu dever de ofício, embora possa parecer imoral, antiético ou inadequado, não pode configurar crime de corrupção passiva, o qual precisa de uma efetiva ou potencial retribuição do agente publico com um ato de sua atribuição funcional para configurar-se.

A condenação por corrupção passiva deve não só identificar ou atrelar o prêmio percebido ou prometido ao agente público à prática de um ato oficioso efetivamente ocorrido (artigo 317, parágrafo 1º, CP) ou futuramente praticado, como deve estar subsidiada em prova plena de sua existência ou eventualidade.

 

 

 

Autor: Emerson Paxá P. Oliveira  é professor, advogado criminalista e sócio da banca Kanaan Sena Coelho & Paxá Advocacia.


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