O critério identificador da norma jurídica. A necessidade de um enfoque sistemático

Adrualdo de Lima Catão
professor da Faculdade Maurício de Nassau e Faculdade Integrada do Recife (FIR), assessor de desembargador do TRF da 5ª Região, mestrando em Filosofia e Teoria do Direito pela UFPE, especialista em Direito Processual pelo CESMAC/AL

Sumário: 1 – Introdução; 2 – O surgimento das diversas normas de controle social; 3 – Os diversos critérios de identificação; 3.1. Quanto ao Conteúdo:; 3.2. Critério estrutural; 3.3. O critério de Hans Kelsen (sancionista); 3.4. A teoria da obrigatoriedade; 3.5. Teoria da institucionalização; 4 – O conceito de norma jurídica – Considerações conclusivas

1.INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por escopo analisar o conceito de norma jurídica de forma a determinar a característica que serve como critério distintivo entre as diversas normas de controle social e a norma jurídica.

O que se pretende demonstrar é que o critério distintivo, ou seja, a característica essencial que faz com que uma norma seja considerada jurídica e não qualquer outra, só poderá ser encontrada com sucesso através de um estudo da norma inserida no contexto sistemático do qual faz parte. Neste trabalho tentaremos demonstrar a impossibilidade de se encontrar o critério que identifica a norma como jurídica sem que a análise ultrapasse a barreira da norma em si para atingir o ordenamento jurídico como um todo.

Com base no pensamento de Norberto Bobbio(1), segundo o qual a análise do conceito de Direito deve partir da norma e atingir o ordenamento jurídico, demonstraremos que o próprio critério identificador da norma jurídica só será encontrado em um estudo sistemático. Tal afirmação será comprovada através de uma apreciação dos diversos critérios adotados pelos teóricos, que encontram o critério de identificação norma jurídica em elementos que claramente dizem respeito ao sistema como um todo e não à norma considerada isoladamente.

Pretende-se, assim, concluir pela impossibilidade de se identificar a juridicidade de uma norma, através de sua análise isolada. Demonstraremos, partindo de Bobbio, que os critérios de distinção da norma jurídica não podem ser encontrados em sua estrutura mesma, mas sim tomando como base o sistema em que está inserida, e que, portanto, todos os critérios utilizados pelos teóricos ou não são satisfatórios pois não conseguem distinguir a norma jurídica das demais, ou encontram a essência distintiva da norma jurídica em um elemento do sistema em que está inserida.

Este estudo trata de identificar os critérios que tentam encontrar a característica de distinção da norma jurídica, demonstrando que quaisquer das teorias apresentadas encontram a juridicidade da norma não em si mesma, mas sempre em elementos do ordenamento.

2.O SURGIMENTO DAS DIVERSAS NORMAS DE CONTROLE SOCIAL

Desde a pré-história o homem tem a necessidade de viver em grupos. No surgimento da humanidade o ambiente do nosso planeta era cercado de perigos para os seres humanos, pois estes não tinham a força física dos animais que habitavam a Terra, o que tornava a sobrevivência isolada quase impossível. Para sobreviver e se adaptar a este ambiente hostil da época do surgimento da humanidade era mister agrupar-se e colaborar com os seus iguais a fim de vencer as dificuldades impostas pelo meio.

O necessário agrupamento dos seres humanos revelou outra série de dificuldades para a convivência na Terra, qual seja, o conflito de interesses que surge entre os próprios seres humanos. O homem, tomando como base uma visão hobbesiana(2), não consegue se despir dos instintos egoísticos que são próprios à sua natureza. Continuando com esta visão, o ser humano já nasce mal e egoísta, o que cria mais uma dificuldade à sobrevivência humana, com o surgimento dos diversos conflitos de interesses entre as pessoas.

A solução para este problema é o estabelecimento de regras de condutas, com vistas a regular o comportamento dos homens para que ele se adapte à vivência em conjunto com outros seres humanos e para estabelecer condições de decidibilidade dos conflitos surgidos entre eles.

Referidas regras são as chamadas normas de adaptação social ou normas de controle social, que são estabelecidas pela sociedade ao longo dos tempos vinculando e controlando o comportamento e as condutas humanas de diferentes formas e com variados conteúdos.

Com o aumento da população humana na Terra as sociedades se desenvolveram de tal forma que o ser humano, ao nascer, já passa a integrar um grupo social preexistente. Primeiramente a família, que é o grupo social base da sociedade e o primeiro a ser integrado pelo homem. Nela o homem já sofre a pressão de diversas normas para sua adaptação ao grupo, normas de boa educação e conduta, normas religiosas e outras estabelecidas pelos pais. Com o passar dos anos o homem vai integrando outros grupos maiores como a escola, um clube ou um grupo de amigos, e estes grupos vão estabelecendo normas de conduta que pressionam e controlam o comportamento do homem.

As diversas normas com as quais o homem vai se deparando no seu crescimento e na sua vida em sociedade não possuem a mesma natureza. A sociedade moderna possui diversos tipos de sistemas normativos, dentre eles a Moral, a Religião, as regras de trato social e o Direito. Este último considerado o mais importante e, na medida em que controla o comportamento humano de forma vinculante e imperativa.

3.OS DIVERSOS CRITÉRIOS DE IDENTIFICAÇÃO

3.1.Quanto ao Conteúdo:

Muitos teóricos tentam identificar a norma jurídica tomando como base um critério relativo ao seu conteúdo. Ocorre que tal critério não pode ser encontrado em seu conteúdo. Isto porque vários dispositivos presentes em ordenamentos jurídicos têm conteúdo de normas morais, como o dever de solidariedade ou a proibição de “matar alguém”. Ademais, este conteúdo moral nas normas jurídicas resta evidenciado pelo desenvolvimento da chamada teoria do “mínimo ético”, segundo a qual o Direito nada mais é do que a prescrição de preceitos éticos minimamente necessários a uma convivência humana harmoniosa.(3)

O conteúdo de regras religiosas também pode perfeitamente estar presente em normas jurídicas, como de fato ocorre com os sistemas jurídicos orientais, os muçulmanos e islâmicos, nos quais as normas de Direito são manifestamente normas religiosas.

No que pertine a regras de trato social é fácil encontrar formalidades que são evidentes questões de educação e cortesia, previstas como obrigatórias em normas jurídicas, como ocorre nos estatutos militares.

Percebe-se, deste modo, que não é possível construirmos um conceito de norma jurídica para distingui-la das demais normas utilizando um critério que tenha por base o conteúdo das diversas normas. Isto porque as normas jurídicas podem conter em seu conteúdo, princípios éticos ou religiosos.

Hans Kelsen trata dessa questão ao afirmar que: “o Direito, a moralidade e a religião, os três proíbem o assassinato”(4). Ou seja, o conteúdo da norma não serve como critério distintivo.

3.2.Critério estrutural:

Segundo Norberto Bobbio(5), a forma, ou seja, a estrutura das normas também não é determinante na distinção e caracterização da norma como jurídica.

Segundo o autor, as normas podem ser classificadas quanto à forma da seguinte maneira:

a)positivas e negativas;

b)abstratas e concretas;

c)categóricas ou hipotéticas.

A primeira classificação utiliza o critério do modal deôntico presente nas normas para distingui-las. Normas positivas são as que prescrevem um comportamento fazendo incidir sobre o mesmo uma obrigação positiva, ou seja, de modal normativo obrigatório. As negativas, ao contrário, estabelecem uma proibição, fazendo incidir um modal de valor proibido.

Na segunda classificação a distinção diz respeito à abstração das normas. As normas concretas regulam casos concretos e situações individuais. As normas abstratas dizem respeito a questões distantes da especificidade, questões que abrangem situações gerais.

Na primeira e na segunda classificação não se encontra qualquer elemento que possa caracterizar uma norma como jurídica, tendo em vista que em qualquer ordenamento normativo encontram-se tanto normas positivas quanto negativas e tanto normas abstratas quanto normas concretas.

Quanto à terceira distinção há de se dizer que no Direito encontramos apenas normas hipotéticas. No direito só se pode falar, em sua estrutura, de normas hipotéticas, que prevêem um fato e a ele atribuem uma conseqüência que é um comportamento que deve ser cumprido pelo homem. Contudo, as normas dos tipos: “Se queres A, deves B” ou “Se é A, deve ser B”, que são normas hipotéticas, podem existir em qualquer sistema de normas técnicas ou de normas condicionadas.(“Se você quer comprar selos, deve ir aos correios/ Se chove, você deve pegar o guarda chuva”)(6)

Assim, dizer que a norma jurídica é hipotética, apesar de ser verdadeira tal afirmação, ela não é capaz de identificar as normas jurídicas, tendo em vista que vários outros tipos de norma também são do tipo hipotéticas.

Vê-se que o elemento essencial da norma jurídica não pode ser encontrado em sua estrutura, tendo em vista que as distinções feitas servem apenas para encontrar alguns caracteres da norma jurídica, não conseguindo, todavia, estabelecer um elemento capaz de distinguir a norma jurídica das demais.

3.3.O critério de Hans Kelsen(sancionista)

Hans Kelsen demonstra preocupação com o tema. Segundo o autor, há um critério básico com o qual se podem caracterizar os diferentes ordenamentos existentes ao longo dos tempos como jurídicos.

Em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado, o autor explica que:

“(…) se compararmos todas as ordens sociais, do passado e do presente, geralmente chamadas “Direito”, descobriremos que elas têm uma característica em comum que nenhuma ordem social apresenta. Essa característica constitui um fato de suprema importância para vida social e seu estudo científico. Essa característica é o único critério pelo qual podemos distinguir com clareza o Direito de outros fenômenos sociais como a moral e a religião.”(7)

Vê-se que Kelsen se preocupa em encontrar a característica distintiva das normas jurídicas em relação às outras normas existentes no mundo social. O critério, segundo o autor, seria determinado pela maneira com a qual os diversos ordenamentos motivam as condutas humanas, o que vai resultar em diferentes tipos de sanção que seriam aplicadas por cada ordenamento. Expliquemos.

Motivação indireta e direta:

O ser humano, como já mencionado, está rodeado pelos mais variados tipos de normas de que regulam seu comportamento. Referidas normas visam fazer com que os seus destinatários se conduzam mediante o que está previsto nas mesmas. Estas normas são diferençadas pelos tipos de motivação de condutas que apresentam.

Alguns tipos de normas apresentam sanções definidas no próprio ordenamento em que estão contidas. Há, porem, determinadas normas que não apresentam sanção inserida em seu próprio ordenamento, havendo apenas uma sanção que parte do grupo social aprovando ou reprovando o ato que, respectivamente, viole ou não viole a norma.

Há ordenamentos que contêm as normas que apresentam a chamada motivação indireta, ou seja, motivam a conduta através da sanção que o próprio sistema confere à norma, através de uma ameaça ao seu descumprimento (punição) ou de uma vantagem em virtude do cumprimento da mesma (recompensa). Assim,

“O princípio de recompensa e punição – o princípio de retribuição – fundamental para a vida social, consiste em associar a conduta de acordo com a ordem estabelecida e a conduta contrária à ordem, respectivamente, com uma promessa de vantagem e uma ameaça de desvantagem como sanções.”(8)

Perceba-se que o que caracteriza este tipo de norma é a previsão de uma sanção, no próprio ordenamento em que está inserida. Destarte, e, como mostraremos mais adiante, será o tipo de sanção prevista que, segundo Kelsen, fixará o que ele chama de critério de Direito.

Há, porém, ordenamentos que contêm normas de motivação direta, no qual a motivação para o cumprimento da norma se encontra no preceito em si, não havendo sanção prevista. Somente a idéia de que é correto cumprir a norma já basta para que o receptor seja motivado a observá-la, apesar da existência da sanção consistente na reprovação dos pares quanto ao descumprimento da norma.

Percebe-se, destarte, que, segundo Kelsen, o Direito é um ordenamento que contém normas de motivação indireta, assim como a religião. Tendo em vista que a norma jurídica ameaça o descumpridor da norma com uma sanção punitiva, tanto quanto a religião. Enquanto isso a Moral estaria enquadrada no segundo tipo(motivação direta), pois é um tipo de norma que não possui sanção específica do seu ordenamento para o descumprimento de suas normas. Neste caso, destaca o autor, a ordem social, mesmo sem decretar sanções, pode determinar uma conduta que pareça vantajosa aos indivíduos, de modo que a simples idéia de uma norma que decrete este comportamento seja suficiente para a motivação da conduta.(9)

Deste modo, Kelsen resolve o problema da separação entre o Direito e a moral, restando ainda encontrar a diferença especifica entre o Direito e a religião, para que se encontre o critério de Direito.

O critério de Direito:

Afirma o autor que o descumprimento de uma norma religiosa dá ensejo a uma punição transcendental, ou seja, relativa a um ser divino, a uma coisa sobre – humana. Já a norma jurídica se apresenta como uma técnica social específica que apresenta uma sanção socialmente organizada, ou seja, é “(…)uma técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária.”(10)

Só a norma jurídica pode usar de uma medida de coação para fazer valer seus preceitos. Em assim sendo, a característica essencial com a qual se pode afirmar que uma norma é jurídica, é ser ela uma técnica social específica, dotada de sanção para o caso de seu descumprimento, prevista em seu próprio ordenamento, sendo que esta sanção é socialmente organizada, expressando-se através de uma medida de coação, executada por um agente da ordem jurídica, fazendo parte, portanto, de uma ordem coercitiva.

A sanção da norma jurídica é socialmente organizada, se caracterizando como a possibilidade de privação de posses dos indivíduos descumpridores das normas. Neste sentido é que a norma jurídica está inserida em uma ordem coercitiva, de modo que a sanção é aplicada por um agente da sociedade, se necessário com o emprego de força física.

O que há de se perceber na teoria de Kelsen é que não é a força, o a medida de coação que dá o caráter de jurídica a uma norma, mas sim a possibilidade do emprego de sanção coercitiva, a força em potência. O que caracteriza a norma como jurídica é a ameaça de coação socialmente organizada em caso de descumprimento das normas.

É desta forma que Hans Kelsen define o que ele chama de critério do Direito:

” Se as ordens sociais, tão extraordinariamente diferentes em seus teores, que prevaleceram em diferentes épocas e entre diferentes povos, são chamadas ordens jurídicas, poder-se-ia supor que está sendo usada uma expressão quase destituída de significado. (…) O que o Direito dos babilônios antigos poderia ter em comum com o Direito vigente hoje nos Estados Unidos? (…) :No entanto, há um elemento comum que justifica plenamente essa terminologia e que dá condições à palavra Direito de surgir como expressão de um conceito com um significado muito importante em termos sociais. Isto por que a palavra se refere à técnica social específica de uma ordem coercitiva, a qual (…) é, contudo, essencialmente a mesma para todos esses povos que tanto diferem em tempo, lugar e cultura: a técnica social que consiste em obter a conduta social desejada dos homens através da ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária.”

Demonstra-se desta forma, que a teoria kelseniana que considera ser a possibilidade da aplicação de uma sanção organizada socialmente a característica que define a norma como jurídica está baseada em um elemento que não pode ser encontrado na norma analisada isoladamente. Percebe-se que Kelsen encontra o caráter distintivo da norma jurídica em um elemento do sistema. Ao se referir à ordem coercitiva ou sanção socialmente organizada, deixa-se de lado a norma isolada e se parte a uma análise da norma como elemento de um ordenamento jurídico.

Essa é uma das teorias que encontram o critério de distinção da norma jurídica tomando como ponto de partida o ordenamento jurídico. A opinião de Bobbio é contundente ao tratar do tema: “Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa procurar o caráter distintivo não em um elemento da norma mas em um complexo orgânico de normas.”(11)

Deste modo, Kelsen só consegue encontrar o caráter distintivo da norma jurídica quando parte para uma análise do ordenamento em que a norma se encontra, tendo em vista que a organização da sanção é feita com base no que está previsto no sistema e nos órgãos que ele define.

3.4. A teoria da obrigatoriedade:

A teoria de Kelsen é bastante criticada por tirar do Direito seu caráter finalista de moldar o comportamento humano e de procurar a justiça. Ao trazer a noção de sanção como a que define o conceito de norma jurídica, Kelsen relaciona o Direito à força, conferindo importância acentuada às chamadas normas sancionadoras(12).

A questão que é muito bem tratada na obra de Marcos Bernardes de Mello(13) se refere à estrutura lógica da norma jurídica. A visão Kelseniana é a de que a norma jurídica tinha uma estrutura dúplice que constava de uma norma primária, que prevê a sanção, e outra secundária, que prevê o fato hipotético e a conduta que deveria ser tomada na ocorrência deste fato. Assim, Kelsen estaria encontrando o critério da norma jurídica na sanção, sendo este seu elemento essencial.

Este seria o entendimento, que é acompanhado por outros autores, chamado de sancionista. Essa doutrina é criticada tomando como base a análise da estrutura lógica da norma jurídica. Analisando-se a norma jurídica, vê-se que determinadas normas não podem ter a estrutura dúplice a que Kelsen se refere, como por exemplo a norma do artigo 4o do Código Civil Brasileiro: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida”. Lendo-se esta norma de outra forma: “Em acontecendo o nascimento de uma pessoa com vida, deverá a esta ser atribuída a personalidade para os fins de Direito”, não encontramos a chamada norma sancionadora. Deste modo, referida norma não tem estrutura bimembre, pois a ela não é atribuída uma sanção.

Segundo a doutrina não sancionista a concepção kelseniana estaria excluindo do mundo jurídico normas de grande importância como as que definem Direitos fundamentais, pois só seriam consideradas normas jurídicas as que tivessem a estrutura lógica dúplice, ou seja, as que tivessem uma sanção específica.

As críticas partem do pressuposto de que, nem todas as normas possuem sanção específica prevista e a norma jurídica não precisa da sanção para se realizar, já que os homens podem cumpri-las sem a necessidade de coação.

Na verdade, as questões levantadas pelos críticos partem das diferentes visões da norma jurídica. Kelsen procura encontrar em sua obra o que ele chama de critério de Direito. Que é a característica essencial da norma jurídica, com a qual se pode a afirmar que uma norma é jurídica e não outra.

Afirma-se que não pode ser a sanção o critério para se distinguir a norma jurídica das demais pois nem toda norma tem uma sanção específica. Assim, não pode ser a sanção um critério válido de distinção da norma jurídica. Esta visão parte de uma análise isolada da norma jurídica, sendo justamente o propósito deste trabalho demonstrar a incapacidade de um estudo isolado para se encontrar o critério distintivo da norma jurídica. Vejamos.

Qualquer fenômeno, seja ele humano ou natural, deve ser analisado no sistema em que está inserido. Não se pode analisar um elemento e captar sua essência, sem levar em consideração o sistema em que está inserido. A norma jurídica está inserida em um conjunto de normas que se inter-relacionam. Como elemento de um ordenamento, não há como se captar sua essência sem tê-la como inserida em um contexto.

Pois bem, ao nosso ver, a norma jurídica não pode ser encontrada apenas em um texto legal ou em uma cláusula contratual. A norma está dispersa no ordenamento, de forma que quando ocorre um fato previsto como hipótese de incidência de uma determinada norma, esta incide e nasce a relação jurídica. Muitos dos efeitos desta relação estão inseridos em outro diploma legal do mesmo ordenamento, que também incide e passa a fazer parte da relação jurídica como um todo. Assim, normas que definem Direitos fundamentais, por exemplo, não têm em seus próprios preceitos uma sanção especificamente prevista. Porém, o sistema dispõe de outros dispositivos que estatuem sanções para o descumprimento destas normas.

O exemplo clássico é a sanção de nulidade para uma Lei que venha a estabelecer regras que violem quaisquer dos Direitos fundamentais constitucionalmente previstos. Ora, sabe-se que a nulidade é uma sanção prevista pelo ordenamento jurídico para as normas que não estejam de acordo com o sistema. Deste modo ele prevê sanções para as normas que definem Direitos fundamentais, apesar de estas estarem dispersas no sistema. E são diversas as normas que não possuem sanção específica, mas que, logicamente possuem sanção prevista e dispersa no ordenamento.

Destarte, a análise isolada da norma jurídica levou os críticos de Kelsen a afirmar que nem toda norma jurídica possui sanção, e que, portanto, não é a sanção o critério distintivo da norma jurídica. Todavia Kelsen analisou a norma inserida no sistema e encontrou a chamada sanção socialmente organizada como sendo o que caracteriza a norma como jurídica.

Como vimos a sanção só pode ser encontrada no sistema como um todo. Assim, a teoria de Kelsen é válida pois ele considera o Direito como um sistema, e, portanto, trata da norma inserida em seu contexto.

Porém, a própria teoria da obrigatoriedade, que aparenta ir de encontro à teoria de Kelsen, considera ser a norma obrigatória devido à possibilidade de sua aplicação forçada por um órgão do sistema, o que demonstra a necessidade de uma análise sistemática para que se encontre o critério que define a natureza da norma jurídica.

Destarte, para esta teoria, não seria a sanção que caracterizaria a norma como jurídica, mas sim a obrigatoriedade. O caráter de ser obrigatório é justamente o que distingue a norma jurídica das demais normas de controle social. Dizer que a norma é jurídica quando é obrigatória é dizer que a norma jurídica para se realizar não precisa necessariamente da coação, mas sim de uma possibilidade de uso da força. Segundo Marcos Mello, a obrigatoriedade significa a possibilidade de imposição forçada da norma pela comunidade jurídica, ou seja, pelo órgão que detém o poder de aplicar a norma.(14)A obrigatoriedade seria então a característica que tem a norma jurídica de poder ser aplicada forçadamente – nos casos de descumprimento – por um agente da comunidade jurídica.

Veja-se que, mais uma vez encontramos o caráter distintivo da norma jurídica não em um elemento da norma em si. Ora, o agente da comunidade jurídica é nada mais nada menos que um órgão previsto pelo sistema para aplicar forçosamente a norma violada. Se assim o é, não está na norma isolada a definição de seu critério de distinção perante as demais normas de controle social. Encontra-se no sistema o conceito de obrigatoriedade ao relaciona-lo com um agente da comunidade jurídica.

A obrigatoriedade é característica encontrada no sistema, e, portanto, outra vez estamos diante de uma teoria que, apesar de criticar a doutrina sancionista, parte para uma análise do ordenamento e lá encontra o critério da norma jurídica.

3.5.Teoria da institucionalização:

Mais uma vez confirma-se a afirmação do Norberto Bobbio, segundo a qual as várias tentativas feitas para definir o a norma jurídica resultaram em critérios que não podem ser encontrados em sua estrutura isolada, mas sim em seu conceito tomado como parte de um todo sistemático.

A teoria institucionalista é enfocada de forma brilhante pelo Dr. Tércio Sampaio Ferraz em capítulo específico de sua Introdução ao Estudo do Direito, que trata da caracterização da norma como jurídica.

Ao analisar o tema o autor parte da constatação de que, no mundo social, o homem se vê às voltas com várias normas que se aplicam ao mesmo caso e que estão, muitas vezes, em conflito. Desta forma a ciência jurídica deve resolver este problema encontrando, dentre as várias normas existentes, a que prevalece em casos de conflitos. São estas normas preponderantes que são consideradas jurídicas.

Para descobrir o que vai definir qual é a norma preponderante em um meio social, o autor utiliza o critério da institucionalização. Neste esteio, o autor propõe que é o grau de institucionalização que define se a norma é jurídica.

Este grau de institucionalização é encontrado ao se examinar a norma como uma comunicação que estabelece uma relação entre o sujeito emissor e receptor da norma. É nesta relação que está o caráter prescritivo jurídico da norma, senão veja-se.

Esta relação é baseada na diferença hierárquica entre o emissor e o receptor, sendo que esta diferença vem expressa em uma relação de autoridade. É o grau de institucionalização desta autoridade que vai definir a essência jurídica da norma. Para explicar a relação de autoridade, Sampaio toma por critério as possíveis reações e contra reações entre o emissor e o receptor da norma. Ao emitir a norma, o sujeito estabelece uma relação que apresenta ao receptor a maneira como deve se comportar. As reações ao estabelecimento desta relação podem se dar de três maneiras: a relação é confirmada, ou é rejeitada ou é desconfirmada.

Devido à complexidade de sua narrativa, o autor se utiliza de um método exemplificativo. Suponha-se um professor em sala de aula que emita o comando: é proibido fumar. Esta mensagem é confirmada quando os alunos se abstêm de fumar sem manifestar nenhum protesto. Esta mensagem é rejeitada ou negada quando os alunos se põem a fumar às escondidas, ou seja, reconhecem a posição de mando do emissor (porque se escondem) mas a negam. Esta mensagem é desconfirmada se os alunos passam a fumar em sala sem esboçar qualquer conhecimento de que uma ordem foi dada.

A confirmação é o reconhecimento da relação. Já a rejeição é uma negação da relação. E a desconfirmação é uma reação de desconhecimento da relação. Assim, a reação de rejeição não elimina a autoridade porque a reconhece. O que elimina a autoridade é a desconfirmação da relação.

A norma, ao instaurar uma relação de autoridade, exige a desconfirmação da desconfirmação. Ou seja, para que a relação seja de autoridade, o emissor deve desconsiderar a desconfirmação agindo como se fosse uma mera negação.

Para que isto possa ocorrer, a autoridade deve estar respaldada pela confirmação de terceiros que não participaram da relação. Quando existe a confirmação de terceiros bem sucedida, diz-se que a autoridade está institucionalizada, e o critério identificador da norma jurídica é justamente o grau desta institucionalização. A norma é jurídica quando parte de uma autoridade institucionalizada em seu mais alto grau na sociedade. É jurídica a norma emitida por uma autoridade que tenha um consenso social presumido maior do que qualquer outro.

Para o autor, o que vai dar o caráter de jurídico a uma norma é a institucionalização da relação de autoridade. A norma é jurídica pois tem o respaldo de um terceiro comunicador que são, no mundo moderno, os órgãos produtores de norma jurídica. É pela referência a este terceiro que a relação se institucionaliza e caracteriza a norma como jurídica.Esta institucionalização da norma se dá com sua inserção em grandes sistemas disciplinares, como o Estado.

É aqui que Tércio confirma a afirmação de Bobbio. O autor partiu da análise da norma para encontrar a característica que a definisse como jurídica e teve de percorrer um caminho além da norma isolada para encontrar sua essência jurídica. Ao afirmar que a norma é jurídica pois a autoridade da qual emana é confirmada pelo maior grau de institucionalização encontrado em uma sociedade, e que esta institucionalização advém de sua inserção em grandes sistemas disciplinares como o Estado, o autor está a firmando que é devido a sua inserção em um Ordenamento Jurídico que a norma é jurídica.

A institucionalização nada mais é que a inserção da norma em sistemas normativos que representam, por pressuposição, o consenso anônimo e global de terceiros.(15)

Assim definido, o grau de institucionalização de uma norma faz expressa referência à sua inserção em um sistema, e, destarte, tal critério só pôde ser obtido pela superação da análise isolada da norma para inseri-la em um sistema de forma a analisá-la como ela é, parte de um todo do qual não pode se desligar sem perder sua essência.

Novamente nos deparamos com a necessidade imperiosa de termos como objeto de estudo a norma jurídica inserida em um sistema. Tal conclusão adveio de uma análise das teorias acima expostas, que, segundo observamos, somente conseguem definir a norma jurídica e, conseqüentemente, definir o Direito, através de uma busca que ultrapasse a estrutura da norma isolada e alcance características que só podem ser encontradas no ordenamento jurídico.

4.O CONCEITO DE NORMA JURÍDICA – Considerações conclusivas

Cabe-nos destacar que encontrar um conceito absoluto de norma jurídica é tarefa impossível e até indesejável para os fins científicos. Não é tarefa do jurista estabelecer conceitos fixos e absolutos, mas sim oferecer alternativas e caminhos para o progresso da Teoria Geral do Direito.Apesar disto, tentaremos demonstrar um conceito de norma jurídica através do estudo das diversas teorias expostas.

De acordo com a análise feita, principalmente nos textos de Kelsen, Tércio e Bobbio, a norma jurídica é aquela inserida em um sistema que se possa chamar de Direito. Este sistema é um complexo normativo no qual a execução de seus preceitos é garantida por sanções organizadas que estão previstas no próprio sistema. Desta maneira, a norma jurídica é a que está inserida em um sistema que contém outras normas que estabelecem órgãos capazes de, dado o seu grau de institucionalização, fazer valer os preceitos normativos através de uma sanção organizada.

Este é o conceito de norma jurídica a que chegamos acompanhando Norberto Bobbio, que se utiliza de elementos da teoria de Kelsen e da teoria da instituição.

Vê-se que o conceito de norma jurídica, na verdade, não pode ser encontrado na norma em si, eis que a pergunta: O que é norma jurídica? transmuda-se em O que é ordenamento jurídico. Ou seja, o elemento que identifica a norma como jurídica está presente no ordenamento jurídico.

Quando respondemos que a norma jurídica é aquela inserida em um sistema jurídico, estamos a afirmar que o elemento da juridicidade está presente, não na norma em si, mas no ordenamento em que ela está inserida. A sanção organizada e garantida pelo grau de institucionalização é uma característica do ordenamento jurídico.

Veja-se que, se ultrapassarmos nossa pesquisa sobre a característica que distingue a norma jurídica, e, portanto, o ordenamento jurídico, dos outros sistemas normativos incidentes na vida social, e partirmos para uma análise dogmática/formal do conceito de norma jurídica, teremos que, formalmente, a norma só é jurídica quando pertence a um ordenamento jurídico, ou seja, quando está validamente inserida em um ordenamento jurídico.

Ora, o ser válida, é estar dentro de um sistema considerado jurídico segundo as outras normas previstas no sistema, notadamente as que prescrevem o modo de produção de normas jurídicas. Portanto, se a norma está inserida no sistema de acordo com as regras previstas pelo próprio ordenamento, ela é considerada válida, e, portanto, jurídica. Desta maneira, se a norma, formalmente, não pode ser considerada jurídica isoladamente, está mais do que confirmada a impossibilidade de se definir um critério que distinga as normas jurídicas das demais normas de adaptação social, com uma análise da norma em si considerada.

Resta claro após a análise feita nas teorias encontradas que, a norma jurídica, por ser elemento de um sistema, só pode ser definida através de critérios constantes no próprio sistema. O critério identificador da norma jurídica, na verdade não pode ser encontrado na norma em si considerada, mas no ordenamento em que está inserida, justamente porque a norma não existe isoladamente, eis que o próprio caráter de validade e de juridicidade diz respeito à pertinencialidade da norma ao sistema. Assim sendo, a norma só é válida, e portanto só existe e é jurídica porque pertence a um ordenamento jurídico. Destarte, o critério do jurídico não pode ser encontrado na norma. O elemento caracterizador do jurídico só é encontrado no ordenamento, posto que é ele que confere juridicidade à norma.

Notas

1.BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. 10 ed. Brasília:Editora UNB. 1999.P 19.

2.Idem. P 19.

3.REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 21 ed. São Paulo:Saraiva. 1994. P 42.

4.KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad.Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes. 1998. P 21.

5.BOBBIO, Norberto. Ob Cit. P 27.

6.Idem. P 18.

7.KELSEN, Hans. Ob Cit. P 21.

8.Idem. P 22.

9.Porém este tipo de ordenamento, segundo Kelsen, é raro na sociedade, de forma que, mesmo sem decretar sanções, a conduta dos indivíduos é sempre acompanhada por um julgamento de valor. Assim, o descumprimento da norma é sempre associado à reprovação dos pares. O que faz com que, mesmo este tipo de ordenamento apresente uma sanção, embora não inserida em suas próprias normas. Idem. P 22.

10.Idem. P 27.

11.BOBBIO, Norberto. Op cit. P 27.

12.As normas sancionadoras são as chamadas por Kelsen de normas primárias, dada a importância com que Kelsen trata a sanção no Direito. Outros autores, apesar de concordarem com a opinião de Kelsen de que a norma jurídica tem necessariamente uma estrutura bimembre, consideram que a norma primária é a que determina o comportamento e não a que define a sanção. A controvérsia segundo a qual Kelsen teria mudado seu entendimento e considerado como primária a norma que define o comportamento está muito bem esclarecida em nota de rodapé da obra do professor Marcos Bernardes de Mello, que não concorda que tenha havido uma retratação de Kelsen a esse respeito tendo em vista que a obra em que consta tal retratação é uma obra póstuma, o que retira credibilidade à mudança de entendimento expressa na obra de Kelsen. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da Existência. P 29.

13.Idem. P 27.

14.Idem. P 32.

15. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2 ed. São Paulo:Atlas. 1994. P 111.

Bibliografia

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BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. 10 ed. Brasília:Editora UNB. 1999.

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