O bloqueio de ativos financeiros antes da tentativa de citação em execução fiscal

Autor: Fabrício José Polli Griebeler (*)

 

No apagar das luzes de 2017, os contribuintes e profissionais do Direito Tributário foram surpreendidos por acórdão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que considerou lícito o bloqueio de ativos financeiros via BacenJud (penhora on-line) antes de qualquer tentativa de citação do devedor em execução fiscal.

Por unanimidade, os desembargadores federais entenderam que a medida seria admitida pelo artigo 854, caput do CPC/2015, justificando-se pelo poder geral de cautela atribuído aos magistrados e pela preservação da utilidade da jurisdição, dada a “enorme probabilidade de frustração” da garantia do crédito na hipótese de se dar ciência do feito ao executado. Trata-se de decisão inédita — a ponto de ensejar manifestação da Procuradoria da Fazenda Nacional na imprensa especializada— e bastante preocupante para aqueles que possuam débitos inscritos em dívida ativa da União em vias de cobrança judicial, já aturdidos pela chamada “averbação pré-executória” introduzida recentemente pela Lei 13.606/2018.

Desde a publicação do CPC/2015, a Fazenda Nacional tem intensificado a prática de requerer já nas petições iniciais de execuções fiscais, mesmo que de valor não elevado, o deferimento do bloqueio de ativos financeiros via BacenJud, de modo a se obter a constrição logo quando do despacho de citação do devedor, com fundamento no artigo 854 do diploma processual civil.

Ainda sob a vigência do CPC/1973, a jurisprudência admitia, inclusive em execuções fiscais, a adoção da cautelar de arresto antes da citação do devedor, podendo tal medida ser efetivada via BacenJud. Exigia-se, no entanto, como requisito essencial para a sua concessão, que tivesse havido ao menos a tentativa de citação do devedor, de sorte que, se este não fosse encontrado ou fosse desconhecido seu domicílio, poderia ser deferida a cautelar, caso presente o risco à satisfação do crédito.

Diferentemente, o que tem pretendido a Fazenda Nacional sob o pálio do artigo 854, caput do CPC/2015 é o bloqueio eletrônico automático e independente de qualquer tentativa de citação do devedor. Isto é: já na petição inicial da execução fiscal, requer-se ao magistrado que este expeça, no próprio despacho citatório, a imediata ordem de bloqueio, de modo a evitar o suposto risco de que o devedor tome medidas tendentes ao esvaziamento de suas contas bancárias ou aplicações financeiras ao ser cientificado da existência do processo.

Nas razões do agravo de instrumento que veio a ser provido pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, argumentou a Fazenda Nacional, em síntese, que:

(i) as disposições do CPC/2015 seriam aplicáveis subsidiariamente ao procedimento executivo fiscal;

(ii) não haveria conflito entre os artigos 854 do CPC/2015 e 8º da Lei 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais), pois o primeiro implica apenas diferimento do contraditório para momento oportuno, e tampouco entre o artigo 854 do CPC/2015 e o artigo 185-A do CTN, já que o bloqueio de ativos financeiros não se confundiria com a indisponibilidade genérica de bens e direitos;

(iii) o termo “ciência” a que alude o artigo 854 do CPC/2015 evidenciaria que o dispositivo se aplica tanto às intimações (cumprimento de sentença) quanto às citações (execução de título extrajudicial);

(iv) a nova ordem processual inaugurada pelo CPC/2015 daria maior ênfase à efetividade da prestação jurisdicional, conforme artigo 8º do referido diploma, sendo justificável a penhora on-line antes da citação diante da “constatação empírica” de que os executados tentam se furtar ao pagamento do débito logo depois de serem cientificados do ajuizamento do feito executivo.

Não é difícil verificar que a interpretação conferida pela Fazenda Nacional ao artigo 854 do CPC/2015 — e respaldada pelo julgado da corte regional —, além de não se sustentar nem mesmo diante da literalidade do próprio dispositivo, conduz a resultado inaceitável, ferindo os mais comezinhos princípios e garantias do Direito Processual, bem como normas legais e constitucionais de há muito consagradas no ordenamento jurídico.

Primeiramente, a expressão “sem dar ciência prévia do ato ao executado”, contida no caput do artigo 854 do CPC/2015, não significa que a medida possa ser deferida antes da ciência do próprio processo executivo. Em nenhum momento o dispositivo deixa transparecer que o “ato” cuja ciência não será dada previamente ao executado será a sua citação, mesmo porque esta não é mencionada no texto da norma. O “ato” em questão, por óbvio, é o próprio bloqueio de ativos financeiros, que pode ocorrer independentemente da ciência do executado, desde que este já tenha sido citado.

Prova disso é que tanto o artigo 829 do CPC/2015, aplicável às execuções cíveis, quanto o artigo 8º da Lei 6.830/1980, voltado às execuções fiscais, preveem a possibilidade de o executado, após a citação, pagar a dívida ou, no caso específico dos feitos executivos fiscais, garanti-la. Trata-se de verdadeiro direito subjetivo do executado e que, por isso mesmo, não pode ser desfigurado pela interpretação parcial, equivocada e isolada do caput do artigo 854 do CPC/2015, sob pena de tornar letra morta os dispositivos que asseguram o referido direito, em detrimento da regra hermenêutica segundo a qual a lei não contém palavras inúteis.

Outros dispositivos da própria Lei 6.830/1980, aplicáveis pelo critério da especialidade (lex speciali derogat generali), afastam a interpretação fazendária do caput do artigo 854 do CPC/2015:

(i) o artigo 7º, II, segundo o qual o despacho do juiz que deferir a inicial implicará ordem de penhora somente “se não for paga a dívida, nem garantida a execução, por meio de depósito, fiança ou seguro garantia”;

(ii) os artigos 9º e 11, que preveem as garantias passíveis de oferecimento pelo executado e a ordem legal de preferência da penhora ou arresto, regras que se tornariam inócuas caso a Fazenda Pública sempre pudesse pedir a penhora on-line já na inicial e o juiz sempre a deferisse de plano;

(iii) o artigo 10, que prevê a possibilidade de penhora livre de bens do executado apenas se este não pagar a dívida nem oferecer garantia.

Ainda quanto à literalidade do caput do artigo 854 do CPC/2015, observa-se que o legislador fez alusão a “executado” em vez de “devedor”, termos que são mencionados inúmeras vezes ao longo de todo o diploma processual civil.

Ora, só é possível falar-se em “executado” quando o sujeito tiver sido validamente citado acerca da existência de um processo executivo. O mero ajuizamento de execução, seja ela fiscal ou não fiscal, não torna “executado” aquele a quem se dirige a cobrança, uma vez que a relação jurídico-processual envolvendo as partes e o juiz só se angulariza e se completa com a citação válida da parte contrária (no caso, o devedor). A citação pode, inclusive, nem mesmo vir a ocorrer se, por exemplo, a petição inicial for indeferida de plano, ou se for reconhecida a improcedência liminar do pedido do exequente (artigos 330 e 332 do CPC/2015).

A menção ao termo “executado”, aliás, encontra amparo no artigo 5º, LIV da CF/1988, segundo o qual ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal. Afinal, o que representaria o bloqueio de ativos financeiros do devedor antes de se tentar citá-lo em execução fiscal senão privar o devedor de um bem seu (dinheiro) sem que sequer exista um processo(tomado, aqui, no sentido de relação jurídico-processual)?

Nem mesmo os argumentos de base empírico-filosófica invocados pela Fazenda Nacional permitem concluir no sentido da licitude do bloqueio de ativos financeiros antes de se tentar citar o devedor na execução fiscal.

A efetividade da prestação jurisdicional (artigo 8º do CPC/2015), embora seja um objetivo legítimo a ser alcançado na ordem jurídica pátria, não representa carta branca para que os órgãos estatais adotem interpretações que, a pretexto de preservarem a tutela jurídica de seus interesses, passem por cima de direitos fundamentais do processo resguardados sob o manto do devido processo legal. Garantias como o contraditório, a ampla defesa, a proteção da confiança e a boa-fé processual, entre outras, seriam, efetiva ou potencialmente, lesadas pela admissão do bloqueio de ativos financeiros antes se tentar citar o devedor em execução fiscal.

Há, por outro lado, diversos mecanismos à disposição da Fazenda Pública para a satisfação ou garantia de seus créditos com eficiência igual ou próxima à da penhora on-line antes de se tentar a citação, mas que, ao mesmo tempo, são menos gravosos e surpreendentes para o devedor, tais como:

(i) o ajuizamento de medida cautelar fiscal, observados os requisitos fixados na Lei 8.397/1992;

(ii) a averbação de certidão de distribuição da execução fiscal nos registros de bens que o executado possua, tornando absoluta a presunção de fraude à execução no caso de venda desses bens a terceiros (artigos 799, IX, e 828, do CPC/2015);

(iii) a indisponibilidade genérica dos bens e direitos do devedor, desde que observados os requisitos previstos no artigo 185-A do CTN.

Vale lembrar que, independentemente do mecanismo adotado pela Fazenda Pública, deve ser resguardado o direito do devedor — já previsto ao tempo do CPC/1973 — de requerer, em caráter geral, que a execução se dê por via menos onerosa, de eficiência aproximada à outra eventualmente vislumbrada pelo exequente e que não cause prejuízo a este último (artigos 829, parágrafo 2º e 847 do CPC/2015).

De resto, a alegada “constatação empírica” de que os devedores esvaziariam suas contas bancárias, depósitos e aplicações após serem cientificados da existência de processo executivo fiscal, além de configurar inaceitável presunção sem base em lei, fere de morte o princípio da igualdade (artigo 5º, caput da CF/1988): equiparam-se sonegadores contumazes (e, por essa razão, potenciais sujeitos ativos do delito de sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei 4.729/1965) a contribuintes que, simplesmente, não têm meios para quitar seus débitos tributários até o vencimento, mesmo que queiram fazê-lo. Trata-se, a toda evidência, de premissa odiosa e apriorística, que parte da má-fé absoluta de todo e qualquer devedor, sem que à Fazenda Púbica seja imposto qualquer ônus de demonstração da conduta deste último no caso concreto.

Felizmente, tem-se verificado que a quase totalidade das decisões das cortes regionais do país — à exceção, por óbvio, do aresto da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal retromencionado — vem rechaçando os pedidos de penhora on-line em execução fiscal sem que tenha havido qualquer tentativa de citação do devedor, mesmo ante o disposto no artigo 854 do CPC/2015. Observa-se, entretanto, que alguns desses arestos reformaramas respectivas decisões recorridas, o que permite constatar que há magistrados de primeiro grau admitindo o bloqueio em tal situação, algo bastante preocupante quando se tem em conta que referidos magistrados são os primeiros destinatários do pleito fazendário.

Frise-se, ainda, que, no julgamento dos REsp 1.645.999/PE e 1.673.043/PE pela 2ª Turma do STJ, sobre o qual foram aplicadas as disposições do CPC/1973, o relator, ministro Herman Benjamin, embora afastando a possibilidade de o bloqueio via BacenJud ocorrer antes de qualquer tentativa de citação do devedor em execução fiscal, anteviu a possibilidade de reexame da questão à luz do artigo 854 do CPC/2015. Em outro caso, relatado pelo mesmo ministro (REsp 1.681.463/SP), o colegiado determinou o retorno dos autos ao tribunal de origem para que este apreciasse se o novo dispositivo ensejaria tratamento distinto da questão, tal como defendido pela Fazenda Nacional. A mesma medida foi tomada, monocraticamente, pelo ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do REsp 1.700.267/PE.

Registre-se, por outro lado, que há decisões monocráticas de ministros do STJ desprovendo ou negando seguimento a recursos especiais fundados em suposta violação ao artigo 854 do CPC/2015. Em um desses julgados, o ministro Og Fernandes expressou o entendimento de que o referido dispositivo não retirou a natureza acautelatória do bloqueio, que só poderá ser efetivado antes da citação se a Fazenda Pública demonstrar, concretamente, a plausibilidade de seu direito e a existência de risco à satisfação do crédito — o que já era admitido pela corte superior, sob a sistemática dos recursos repetitivos, ao tempo do CPC/1973.

Fato é que, independentemente da inconsistência do acórdão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal que permitiu o bloqueio on-line antes de se tentar citar o devedor na execução fiscal, trata-se de decisão que, embora isolada, certamente será invocada pela Fazenda Nacional para respaldar sua tese em outros processos, podendo servir de inspiração para outros entes estatais. Nessa linha, se a medida vier a ser admitida em larga escala pela jurisprudência, serão imensuráveis e severos os prejuízos não apenas às pessoas físicas e jurídicas que dependam de capital de giro para o pleno exercício de suas atividades, mas também à economia, à sociedade e à ordem jurídica como um todo.

Por todas essas razões, sugere-se que os contribuintes, especialmente aqueles que possuam débitos inscritos em dívida ativa ou em vias de inscrição, estejam atentos, mais do que nunca, ao ajuizamento de execuções fiscais, intensificando o controle de suas dívidas fiscais e, se for o caso, propondo as medidas judiciais preventivas ou repressivas cabíveis para afastar qualquer risco de que esta inaceitável e inconstitucional medida venha a prosperar.

 

 

Autor: Fabrício José Polli Griebeler  é advogado no Dias de Souza Advogados Associados.


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