Democracia e crise: alternativas estruturais para o Brasil

De: José Luiz Quadros de Magalhães
Reitor da Escola Superior Dom Helder Câmara e diretor da Faculdade de Direito Izabela Hendrix, em Belo Horizonte (MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG

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1.O pano de fundo: Um novo mundo em crise

O mundo contemporâneo vive uma crise profunda, fruto de modificações profundas na economia, decorrente de uma opção tecnológica combinada com a vitória do grande capital conservador no seu embate com o capital liberal. Os avanços da tecnologia nos mais diversos campos tendo como pano de fundo a globalização neoliberal, levam o mundo para um modelo de exclusão social jamais visto.

No mundo atual de extrema complexidade nas suas relações econômicas e sociais, diversos são os movimentos simultâneos da sociedade, na maioria das vezes com sentidos opostos, com objetivos e fundamentos diferentes ou por vezes coincidentes ou complementares. Como exemplo podemos citar: a) um movimento macro como o da globalização que contém consequências perversas como a exclusão radical de parcelas cada vez maiores da população, com o desaparecimento do emprego, ao lado de consequencias que podem ser extremamente positivas como o surgimento do cidadão global e dos movimentos sociais de resistencia global como os que temos visto se manifestar nos encontros da Organização Mundial do Comércio; b) o movimento macro regional como a formação dos blocos econômicos que podem de um lado representar a massificação do projeto neoliberal mas de um outro lado podem representar a união de forças regionais e de economias complementares para resistir a força das mega corporações que hoje definem políticas economicas para os estados de economia periférica, diretamente, ou através de orgãos internacionais como o FMI e o Banco Mundial; c) o movimento micro regional com a força dos movimentos sepraratistas; a construção de estados nacionais étnicos (como o movimento na iugoslávia hoje fragmentada); o novo fôlego que ganha o fascismo e o nazismo na Europa e mesmo entre nós na América, e, simultâneamente de maneira antagônica mas também micro regional, o surgimento de um movimento local democrático como força de resistência fundamental e definitiva contra a perversidade da globalização neoliberal e contra a resistência ultra nacionalista também excludente.

Portanto escrevemos para este mundo complexo, com pessoas cada vez mais confusas pelo excesso de informações contraditórias e na maioria das vezes manipuladas. Mundo este que assistiu a queda das ideologias que tinham a capacidade de organizar o conflito entre capital e trabalho; entre ocidente e oriente; entre propriedade privada e justiça social; entre capitalismo e socialismo e muitos outros conflitos, geridos pelas ideologias dos séculos XVIII, XIX e XX, de maneira maniqueista, simplificada, mas que nos deixava muito confortáveis pois escolhiamos um lado e nele muitas vezes nos abrigavamos, mas muitas vezes também morriamos por seu ideal.

Hoje não mais existem dois lados, mas muitos lados, e as placas que nos indicavam a direção a seguir estão obsoletas. Temos que fazer um novo caminho. O norte nós já temos, mas a estrada tem que ser construída. Neste caminho que estamos construindo não podemos cometer os erros do passado. Não há mais lugar para vanguardas. Este caminho é um sonho onde cada um deve participar de sua criação e materialização, e a participação de cada um é a certeza de que nenhuma força será capaz de nos remover do nosso caminho em direção a uma sociedade justa, onde a ilusão da sociedade do consumo, individualista e egoista não tenha mais lugar. O individuo isolado é uma ficção da mesma forma que a massa sem vontade. Deixemos pois o discurso romântico e passemos a análise técnica das alternativas para o Brasil para a construção de uma democracia participativa efetiva, que seja capaz de superar a dicotomia liberal, portanto ultrapassada, da sociedade civil X estado.

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2.Crise e democracia

A democracia é um processo que sempre foi apenas tolerado pelas elites econômicas e assim continua sendo no nosso mundo contemporâneo. Basta chegar ao poder um projeto alternativo de sociedade que a ruptura do poder economico privado é imediata. Sempre foi assim, mudando hoje, apenas, o grau de sofisticação com que é promovido o golpe ou realizada a manipulação.

Podemos dizer que hoje a democracia não é mais democrática pois para não realizar rupturas não democráticas, como no Brasil em 64, Chile 73 e muitos outros exemplos pelo mundo, cuidou-se de fazer com que a própria democracia não fosse tão democrática assim.

Um livro de leitura interessante para esta questão é a do alemão Friedrich Muller, “Quem é o Povo?”, publicado pela Editora Max Limonad, São Paulo, 1999.

Primeiro dado teórico que precisamos aqui trabalhar é a teoria da indivisibilidade dos direitos fundamentais, importante teoria para compreensão do papel dos direitos políticos no contexto dos direitos humanos, na vigencia do Estado Social. O conhecimento desta teoria nos ajuda mesmo a compreender a necessidade de sua superação com a superação do Estado Social, uma vez que não podemos mais aguardar a construção de um Estado Social no Brasil para termos uma democracia participativa. Temos que construí-la agora, com os instrumentos que dispomos e estudaremos a seguir.

2-1. O que precede a teoria da indivisibilidade dos direitos humanos

Com finalidade didática podemos dividir os direitos fundamentais da pessoa humana em quatro grupos: os direitos individuais; os direitos políticos; direitos sociais e direitos econômicos. Na história do Estado Constitucional temos que os direitos individuais, relativos a vida, segurança individual, propriedade privada e liberdade são os que primeiro são declarados em uma Constituição quando da afirmação do Estado Constitucional liberal, que começa seu processo de formação com a Magna Carta de 1215, mas que se afirma com as revoluções burguesas de 1688 (Inglaterra), 1776 (EUA) e 1789 (França).

Em princípio o liberalismo não vem acompanhado da democracia. Entendiam os liberais da época que o individualismo liberal presente nas Constituições daquele período era incompatível com a democracia majoritária. Ora, como seria possível um Estado constitucional que tinha como objetivo primeiro proteger o individuo contra o Estado e suas ingerências na vida privada, portanto proteger as opções individuais, conviver com a democracia majoritária onde prevalecia a vontade do coletivo maior? A fusão entre democracia e direitos individuais só ocorre portanto em uma segunda fase do Estado Liberal, quando então se substitui o voto censitário (onde o valor do voto é medido pela riqueza do individuo e quem não tem riqueza em um patamar constitucional mínimo não pode votar nem ser votado) pelo sufragio universal: um cidadão um voto.

Temos então que a partir deste segundo momento a democracia liberal permite o voto de qualquer pessoa independente de origem econômica, mas desde que preencha determinados requisitos como: idade, escolaridade, e o sexo masculino.

Os grupos de direitos humanos que percebemos até então são os direitos individuais e direitos políticos tratados de maneira estanque, como se da efetivade de um não dependesse o outro. Desta forma a liberdade existe apenas pelo fato do Estado não intervir na minha liberdade de opção: ex. sou livre para me locomover pois o Estado não me prende arbitrariamente. De outro lado a democracia era reduzida ao seus instrumentos: se há o direito a voto há democracia.

Entretanto um fato de extrema importância para compreensão do que hoje esta acontecendo, é o início do embate entre capital liberal e capital conservador. O constitucionalismo liberal entendia que a liberdade de inciativa e a liberdade de concorrencia seria um direito de cada pessoa. Entretanto aquela economia democratizada, de micro empresas e emprego para todos não se concretizou.

O liberalismo não encontrou, a não ser em determinados momentos excepcionais da história, a sua condição fundamental para que ele fosse democrático: uma real igualdade de oportunidade e de competição. Em sentido figurado podemos imaginar a economia liberal no nascente Estado Liberal do século XVIII, como uma grande maratona. Imaginemos então que todos nós vamos competir nesta grande maratona da livre empresa. Para que esta competição seja justa devemos acreditar que todos os que ali estão competindo tem a mesma vocação para este esporte; tem a mesma constituição fisica que lhe permita ser um maratonista com chance de vitória; tem um preparo e condicionamento físico o que depende de um bom treinador; e por fim o que é o mais básico: que todos os competidores saiam ao mesmo tempo da linha de partida. Entretanto apenas citando o básico, no jogo liberal, enquanto a maioria esperava a partida da linha inicial, alguns já acumulavam riquezas há alguns séculos, condição para a afirmação e vitória da classe burguesa. Em outras palavras, na nossa maratona liberal, enquanto nós estamos na linha de partida, alguns já estão quatrocentos quilometros na frente (quatrocentos anos na frente, em termos de acumulação de riquezas).

Um segundo problema deste jogo liberal é que não há juízes. O Estado Constitucional liberal veda a intervenção do Estado no domínio econômico, salvo de maneira supletiva quando não há interesse privado. O Estado Liberal não regula a economia e tampouco exerce atividade econômica. Temos portanto um jogo sem juíz. Como um jogo de volei sem os dois juízes de rede e os quatro juízes de linha.

A ausência do Estado na regulação da economia favorece àqueles que partiram na frente nesta competição que então criam mecanismos de eliminação da concorrencia e da livre iniciativa: está criado o capital conservador, essencialmente anti-liberal, que passa a desenvolver estratégias para se tornar cada vez maior eliminando novos competidores e combinando o mercado com os antigos e grandes competidores cada vez maiores.

Obviamente esta conduta tráz mais concentração econômica e com ela mais exclusão social. Com a exclusão crescente e com o grau jamais visto de exploração de mão de obra ( a grande oferta de mão de obra em relação ao postos de trabalho faz com que os salários e as condições de trabalho sejam as piores possíveis: crianças e mulheres eram obrigadas a trabalhar em média 14 horas por dia por um salário miserável) permite o surgimento de movimento sociais cada vez mais fortes como reação a exploração e exclusão.

A pressão social empurra o Estado Liberal para a sua primeira mudança, que como nos referimos anteriormente, trata-se da fusão do liberalismo com a democracia majoritária. Embora o número de novos votantes não seja tão grande, pois excluem-se a mulheres e as pessoas sem relativa escolaridade, a inserção de novos cidadãos (em sentido estrito utilizo esta palavra), faz com que mudanças ocorram na legislação infra-constitucional, com o surgimento da primeiras leis trabalhistas e previdênciárias (em geral na segunda metade do século XIX na europa) e da primeira lei liberal anti-truste nos Estado Unidos: a Lei Sherman em 1890.

Com relação ao Direito Econômico assistimos o surgimento da primeira lei a combater a concentração econômica, fruto da reconstrução do pensamento liberal autêntico que entendia que a concentração econômica feria de morte o liberalismo pois atacava a sua essência: a livre iniciativa e a livre concorrência como direito de cada um. Este embate, agora no plano jurídico, legislativo e judicial, que começa no final do século XIX, entre capitalismo liberal e capitalismo conservador, termina no final do século XX com a vitória do capitalismo conservador que domina o mundo global, impõe sua vontade às debilitadas economias nacionais desnacionalizadas do terceiro mundo, e que vive o seu processo de fusão (ou concentração) final, agora em nível mundial. Importante lembrar que o modelo neoliberal é uma criação do capital conservador que no seu momento de expansão global torna-se temporariamente revolucionario, obviamente a seu favor. No momento atual parece que a esquerda tornou-se conservadora, ao tentar salvar o que ainda resta de duzentos anos de luta social, enquanto o capital conservador ou as mega corporações capitalistas desconstroem duzentos anos de história de maneira cruelmente revolucionária.

Retornando a nossa análise histórica, temos que a crise que se agrava com a exclusão social esbarra na primeira guerra mundial, momento em que surgem dois novos tipos de Estado: o Estado Social ( ou podemos chama-lo de social liberal para diferenciarmos da outra forma de Estado social que foi o social fascismo) e o Estado Socialista.

O Estado Social representa, no plano constitucional, a consagração nas Constituições de direitos sociais (saúde, educação, previdência, transporte, habitação…) e econômicos (direito a políticas economicas que gerem emprego, justa remuneração…) como direitos fundamentais da pessoa humana ao lado dos já consagrados direitos individuais e políticos.

O Estado Social começa a surgir com a revolução francesa de 1848 e a Constituição do mesmo ano, entretanto se afirma, apenas, com as Constituições do México de 1917, fruto da revolução mexicana que iniciou em 1910 e principalmente (pela maior influência no movimento constitucional naquele momento) com a Constituição de Weimar em 1919, Alemanha, fruto da revolução no mesmo ano. Importante lembrar que a mesma Constituição de Weimar serviu a três senhores diferentes. A Constituição alemã recebeu pelo menos três interpretações diferentes: uma social-liberal; uma de caráter socialista democrática e uma social autoritária que abre espaço ao nazismo na Alemanha.

A revolução alemã é fruto de um movimento de soldados, operários e marinheiros, que se rebelam contra o Reich e se organizam em torno do SPD (partido socialista democrático alemão) único partido de esquerda legal, que por este motivo, entre outros, chega dividido ao poder, em, o que nos poderiamos chamar, de direita da esquerda (os sociais democratas que defendiam a construção do socialismo pela via parlamentar burguesa), o centro da esquerda (reformistas que defendiam uma democracia de base) e a esquerda da esquerda (a vanguarda socialista que defendia a revolução armada ao estilo bolchevique). Obviamente a divisão causa o fracasso e pouco depois vemos a direita de novo no poder. Importante neste momento ressaltar diversos aspectos do pós primeira guerra que nos ajuda a melhor visualizar o mundo contemporâneo:

a)a Alemanha já em 1910 é a segunda maior potência industrial do mundo atráz apenas do Estados Unidos, com quarenta por cento de sua população ativa de operários;

b)Os empresários alemães já desde o início do século incutiram um pensamento nacionalista no operariado;

c)O grande capital alemão, representado já naquele momento por empresas que hoje dominam o mundo global, para atrair o operariado e desmobilizar o movimento de esquerda atende a diversas reivindicações antigas do operariado como por exemplo a jornada de trabalho reduzida;

d)A Alemanha como grande potencia industrial não dispunha entretanto de espaço para a expansão de seu capital industrial poderoso. Enquanto os EUA já tinham declarado a doutrina Monroe, afirmando que a America pertencia ao americanos (leia-se norte americanos) e nos transformava (nós latino americanos) em quintal dos seus interesses; os ingleses dominavam meio mundo, da Autralia ao Canadá, passando pela India e África; os franceses tinham colônias na Asia, boa parte da Africa (noroeste da África e o Maghreb), America do Sul e Central e no Oceano Pacífico; a Alemanha dispunha de três pequenas colônias africanas. A Alemanha precisava de espaço, e ao ser derrotada e humilhada na primeira guerra, o pouco espaço que tinha lhe é retirado.

e)Já neste momento visualizamos o mundo hoje: os sete grandes e o grande capital de cada um. Pós primeira guerra os vencedores são Estados Unidos, França e Inglaterra (e o Canadá anexo à Inglaterra) e os grandes derrotados excluídos da repartição do mundo feita pelos vencedores a Alemanha e a Itália (que embora tenha mudado de lado durante a guerra foi excluída da repartição do mundo realizada pelos vitoriosos), e o Japão geograficamente excluído mas uma potência emergente.

f)Um outro dado importante: naquele momento, diferente de hoje, o que acontecia ao Estado nacional repercutia no grande capital nacional que, portanto, ainda era nacional, uma vez que hoje é global. Portanto ao se excluir Alemanha, Itália e Japão excluia-se o seu grande capital nacional, ainda hoje nossos conhecidos.

g)O movimento fascista e nazista que ganha espaço e poder na década de 20 chega ao poder na Itália, Japão e Alemanha com o apoio deste mesmo grande capital. Porque? Ora o nazi-fascismo poderia resolver os três grandes problemas do capital nacional alemão, italiano e japonês: espaço, ordem e afastar o perigo socialista. O nazi-fascismo era anti-liberal (ao grande capital não interessa liberalismo); anti-democrático (ordem através da violência e economia dirigida a favor do grande capital nacional); anti-socialista e anti-comunista (o nazi-fascismo adotava, de maneira a atrair os trabalhadores, o nome socialismo e uma certa prática social, adotando entretanto o discurso da nação proletária, o que deslocava o eixo da luta de classes para a luta entre nações. Desta forma, salvando a capital nacional, que passa a lutar contra a opressão de outras nações ao lado do trabalhador. Daí o nome nacional-socialismo). O nazi-fascismo é ainda anti-semita e ultra-nacionalista, o que representava o golpe ao socialismo essencialmente internacionalista.

h)Com o fim da Segunda grande guerra o eixo (Alemanha, Italia e Japão) são militarmente derrotados, mas perguntamos: quem são os que dividem o mundo hoje? A resposta é fácil: os vencedores Estados Unidos (anexo Canadá), Inglaterra, e França, e os supostos perdedores (todos perdem com uma guerra principalmente o povo, exceto o grande capital), Alemanha, Itália e Japão.

i)Podemos concluir que ao financiar o nazi-fascismo o grande capital nacional alemão, italiano e japonês tinha uma reivindicação: dividir o mundo com os vitoriosos da primeira guerra, reivindicação esta atendida após a segunda guerra.

Pós Segunda guerra vemos então surgir um mundo bipolar dividido entre socialismo real, que se tornou burocrático, personalista e totalitário comandado pela União Soviética, e o mundo capitalista comandado pelo Estado Unidos. Os Estados Unidos precisavam neste momento de construir na Europa ocidental um Estado de bem estar social capaz de oferecer estabilidade e barrar a expansão da promessa socialista de bem estar e repartição de riquezas com o fim do capitalismo.

2.2- A democracia social européia e a indivisibilidade dos direitos humanos

A Europa conhece então um Estado Social sem igual no mundo, construido incialmente com dinheiro norte-americano através do Plano Marshal.

A repercussão teórica deste Estado Social é grande, e uma das consequências do sucesso deste Estado na realidade sócio-econômica é justamente a construção da teoria da indivisibilidade ou indissociabilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana (os direitos humanos nos planos constitucional e internacional).

O modelo europeu de Estado Social é baseado em modelo de economia regulamentada, com o Estado regulando e exercendo atividade econômica, assumindo o oferecimento quase que integral, em alguns casos integral dos direitos sociais e econômicos.

Com o sucesso econômico do modelo intervencionista e uma economia em constante crescimento, o Estado Social europeu, inicialmente apenas assistencialista, torna-se aos poucos, um modelo includente, fruto mesmo da opção européia de, frente ao crescimento de arrecadação tributária com o crescimento econômico, universalizar os serviços públicos, sofistica-los e amplia-los. Desta forma, de uma mera visão assitencialista, os direitos sociais e econômicos passam a ser condição de exercício de cidadania e liberdade. A teoria da indivisibilidade afirma justamente a condição dos direitos sociais e econômicos como pressupostos de exercício das liberdade políticas e individuais. É como afirmarmos que, para termos liberdade de locomoção temos que ter acesso ao transporte, ou que, para que tenhamos liberdade de expressão ou liberdade de formação da consciência política, filosófica e religiosa temos que ter no mínimo direito a educação. Esta teoria significa a superação da hipocrísia liberal, ou a compreensão de que a liberdade e a vida existem simplesmente porque o Estado não atenta contra elas. Desta forma, o direito a vida, pela teoria da indivisibilidade, implica em vida digna, conceito histórico que implica hoje, em pelo menos, acesso a liberdade, saúde, educação, trabalho, justa remuneração e participação no destino do Estado e na construção de seu próprio futuro.

Em relação a democracia, este conceito é revisto, assim como o de cidadania. O cidadão não é mais apenas aquele que vota, mas o que vota, trabalha, tem saúde, lazer, dignidade. A democracia não mais se confunde com os seus instrumentos. Democracia não é voto, mas sim a possibilidade do povo permanentemente indicar a direção que deve tomar o Estado. Trinta milhões de votos não legitima ninguém a agir contra o interesse do povo e da nacionalidade. Trinta milhões de votos, ou mais, ou menos, indicam apenas que milhões de eleitores passaram uma procuração para que aquela pessoa e aquele grupo político utilize esta procuração, este mandato, para cumprir permantemente a vontade popular. Desta forma, não há democracia apenas com o voto, se não existem poderes do Estado, inclusive o Judiciário, que sejam sensíveis a vontade do povo e da sociedade civil organizada, que deve ser expressa diariamente.

A democracia está seriamente comprometida com a contínua concentração econômica, especialmente a que ocorre na área dos meios de comunicação em todo o mundo. No Brasil, oito famílias dominam os principais meios de comunicação, tendo o poder de influenciar, muitas vezes de maneira determinante, os resultados das eleições e na formação da opinião pública.

c) O Brasil: a ausência da efetividade da proposta de Estado Social e a alternativa para a democracia participativa.

Entretanto, para nós que não vivemos um Estado Social efetivo, que oferecesse saúde, educação e previdência de qualidade, o caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é a fragmentação do poder, a descentralização radical de competências fortalecendo os Estados e principalmente os Municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os Conselho Municipais, o orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente a organização da sociedade civil, e o fortalecimento dos meios alternativos de comunicação como as rádios, jornais e televisões comunitárias.

A crise da democracia representativa se agrava com a cada vez maior influência do poder econômico nas campanhas eleitorais. Hoje vende-se um presidente como se vende um sabão em pó. Quem fabricar melhor seu presidente, tiver mais dinheiro para contratar uma boa empresa de “marketing” e conseguir muito tempo de mídia, conquista e mantém o poder. Nos Estados Unidos, um Senador democrata gastou 60 milhões de dolares para se eleger nestas eleições de 2000. Nos EUA o salário de um Senador é de 150.000 dolares ano, para um mandato de seis anos (informação disponível no site “cnnenespanol.com” em Dezembro de 2000). Quais interesses sustentam este Senador? Quem ele representa? O povo? Hoje se sabe que na “grande democracia do norte”, só tem chance de chegar ao poder quem tem atráz de si os milhões de dólares das mega corporações da industria armamentista, da industria de tabaco, da industria farmacêutica e etc. Isto é uma democracia?

Este e outros exemplo ressaltam a importância de uma lei de financiamento de campanha com, exclusivamente, dinheiro público, em quantidade pequena, de forma que as técnicas de manipulação de opinião não sejam determinantes nas eleições para o Congresso e para os Executivos no diversos níveis da federação. Fundamental também manter o democrático horário eleitoral gratuito, que deve entretanto ser utilizado sem os habituais casuísmos, que favorecem determinados partidos.

Antes de analisarmos a alternativa para construção de uma democracia participativa no Brasil vamos analisar a crise do Estado Social, a globalização e o neoliberalismo, para então visualizarmos a batalha que está em nossas mãos: a construção de uma democracia participativa, dialógica, como forma de resistência e destruição do mega poder das corporações.

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3.A crise do estado social

A crise do Estado Social não foi uma crise de um sistema que não podia mais se adaptar, mas uma crise forjada pelo mesmo grande capital que minou o liberalismo. A política do governo Nixon quando em 1971 forja a primeira crise do petróleo, seguida de nova crise, desta vez mais grave, em 1973, após a guerra do Yom Kipur, leva a economia do Estado Social europeu a uma crise que abre espaço a crítica pseudo “neoliberal”, que ataca os custos do Estado Social, a pesada carga tributária sobre a atividade produtiva privada inibindo a sua expansão e a grande presença do Estado na economia, fechando setores inteiros da economia ao grande capital privado, como o setor de transportes aéreos, privatizado na europa na década de 80, assim como outros setores como telefonia, transportes em geral, fábricas de automóveis, e em alguns casos até as atividades de saúde e previdência, o que obviamente encontrou reação de uma população informada e organizada.

A crise leva a descapitalização das poderosas empresas estatais européias, assim como a diminuição da capacidade de arrecadação, obrigando o Estado Social por vezes a utilizar recursos das empresas públicas para socorrer o deficit orçamentário existente com a crise econômica, uma vez que, de um lado, a população exigia a manutenção da segurança social, e de outro, o Estado perdia capacidade financeira para manter seu poderoso e sofisticado Estado de bem estar social.

Nos Estados Unidos, embora o modelo de Estado Social seja bem diferente do europeu, ele tinha sido capaz de criar, com base em uma economia fordista-keynesiana, uma poderosa classe média e uma situação de quase pleno emprego que tornava esta classe média uma poderosa consumidora e ao mesmo tempo forte e organizada, capaz de pressionar os salários constantemente para cima, o que não interessava ao grande capital. É por este motivo que o governo Nixon abre as portas para imigrantes que significavam mão de obra barata, capaz de concorrer com a mão de obra dos trabalhadores norte americanos organizados. Com isto há uma geração proposital de desemprego que desmobiliza os trabalhadores organizados e permite ao capital manter ou mesmo diminuir níveis salariais. A economia ao serviço do grande capital iria buscar seu aumento de ganhos na tecnologia, diminuição constante de custos e no aumento de consumo de uma parcela cada vez menor da população. O modelo de pleno emprego e aumento de consumo com a geração de novos empregos e novos consumidores começava a ceder espaço para o nascente modelo neoliberal, que tomaria conta do mundo em 1980 com os governos Ronald Reagan, Helmut Kohl e Margareth Tatcher.

O neoliberalismo consiste em um projeto do grande capital de expansão dos lucros, derrubada de barreiras nos países do terceiro mundo o que cria as bases da economia globalizada na metade dos anos oitenta. Para o aumento dos lucros a fórmula que procura substituir o Estado Social (segundo os neoliberais falido), busca a privatização em massa, o que permite a abertura de setores inteiros da economia ao grande capital o único com capacidade de investimento. Mesmo que a privatização ocorra inicialmente com a fragmentação ou pulverização do capital o controle passa inevitavelmente para para o grande capital cedo ou tarde, assim como a concentração em nível global ocorre inevitavelmente, cedo ou tarde, mesmo com a ilusão inicial de concorrência. Para aumentar os seus lucros há também a privatização do setor de saúde, educação e previdência o que permite principalmente a retirada da carga tributária sobre o grande capital. A classe média deve arcar com o que resta de Estado Social. Ao mesmo tempo ocorre a diminuição de salários, com a perda gradual do poder aquisitivo, o que ocorre com uma inflação sob controle. Depois a desconstitucionalização de direitos sociais e econômicos, tranformando a Constituição em um texto submetido ao interesses ou aos imperativos matemáticos da economia. Aliás este também é um dos movimento ideológicos do neoliberalismo: a falsa transformação da Ciência Econômica em uma ciência exata. Desta forma, não pode o Direito condicionar a economia, mas sim obedece-la. Se no Estado liberal, Direito e Economia ocupavam espaços diferentes e no Estado Social o discurso econômico se subordinava ao discurso jurídico, no neoliberalismo o Direito e a justiça constitucional se subordina aos pseudo imperativos matemáticos da economia.

Por fim a exportação de modelos neo-autoritários, como Fujimori no Peru; Menen na Argentina; Fernando Collor e Fernando Henrique no Brasil, garantiam manter a oposição e qualquer projeto alternativo de economia e de poder longe, inclusive da midia, também concentrada e sob controle deste mesmo mega poder.

A globalização parece vir selar a nossa sorte, pelo menos para aqueles que acreditam ser a globalização inevitável no seu modelo neoliberal. A globalização implica em alta tecnologia que permite que o capital financeiro e industrial cada vez mais unido, tenha mobilidade a baixo custo, ou a um custo inexistente, com a colaboração de governos que financiam este capital, doa terrenos e retira tributos.

O que ocorre é uma competição internacional da miséria, onde quem oferecer mais privatizações; menos tributos; sindicatos fracos; menos direitos sociais e econômicos; infra estrutura e estabilidade econômica e política, recebe o investimento. Entretanto, basta um outro Estado oferecer melhores condições de ganho que a empresa fecha suas portas e vai sem prejuizos ou gastos para o outro que lhe oferece mais ganhos. Como resistir a um quadro como este, que se agrava com o desaparecimento do emprego, decorrente da utilização perversa da tecnologia pela lógica neoliberal da eficiência pela eficiência, que no lugar de libertar o ser humano do trabalho, o escraviza mais, esteja ele empregado ou desempregado.

Posto, em linhas gerais, o pano de fundo em que se dá a nossa proposta de uma democracia participativa para o Brasil, passamos a enfrentar o desafio de construir uma alternativa de democracia efetiva, que garanta um país soberano, livre e justo.

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4.A alternativa

Qual a alternativa para este mega poder global? Podemos dizer que a resistência ocorre hoje em dois flancos: a sociedade global e a sociedade local, duas faces de uma mesma moeda. O cidadão é hoje global e local. A sociedade de comunicação deve fincar sua bases em um território, núcleo de organização social e de criação de modelos econômicos e sociais alternativos capazes de gerar novos valores alternativos ao materialismo da sociedade de consumo e a lógica perversa da concorrência. O núcleo local é o principal na transformação de valores e de realização de justiça social e econômica. Simultâneamente, este núcleo local deve estar em comunicação permanente com outros núcleos (organizações sociais; ONG’s, municípios, comunidades de bairro, rádios, jornais e televisões comunitárias, etc) de todo o mundo. A inserção destes núcleos na comunicação global garante seu arejamento e evolução constante, afastando o perigo ultra-nacionalista, a exclusão étnica, racial, religiosa, cultural ou a mais sofisticada forma de exclusão ainda nascente mas não menos assutadora, a exclusão genética.

Anthony Giddens no seu livro “Modernidade Reflexiva” e em artigo em obra coletiva intitulada “Reinventando a esquerda”, organizada por David Milliband e publicada pela editora UNESP, nos sugere o seguinte raciocinio que ressalta uma perspectiva positiva da sociedade global a partir da evolução da globalização: Giddens sugere um processo de destradicionalização que não seria o abandono das tradições mas sim um processo de fortalecimento a partir do contato com outras culturas, outros valores, que permitiria ao cidadão refletir sobre seus próprios valores e cultura, retirando a tradição de um espaço não reflexivo (a tradição pela tradição ou o fundamentalismo) para um espaço reflexivo, onde ele possa separar o joio do trigo, ou o que lhe serve do que não lhe serve mais, e desta forma, de maneira consciente, conservar o bom e construir o novo.

De fato não nos perguntamos porque insistimos em acreditar que o consumo pode nos levar a felicidade, pois com certeza, o dia que nos fizermos esta pergunta, descobriremos para nosso susto e temor, que a felicidade não está em um carro importado, uma bela jóia ou qualquer outro bem supérfluo ou não.

O contato com o diferente, com valores e fórmulas de felicidade diferentes, ou seja, o pluralismo e a diversidade cultural nos permite evoluir e resitir a massificação das empresas globais, onde em qualquer parte do globo se come o mesmo sanduiche, a mesma pizza ou o mesmo frango frito.

A pergunta que se segue é a seguinte: como criar uma sociedade reflexiva no Brasil? Esta pergunta pode ganhar diversas formas diferentes com o mesmo sentido, mudando entretanto o referencial teórico: Como possibilitar um agir comunicativo efetivo? Como construir uma democracia dialógica? Como construir uma democracia radical? Enfim, qual caminho devemos seguir para efetivar no Brasil a democracia participativa efetiva?

Poder local: o Brasil não pode esperar um Estado Social para ser democrático.

Fruto de uma colonização européia e de um recorrente sentimento de saudade da matriz, nossos acadêmicos adotaram como “santos” do pensamento contemporâneo vários alemães, ingleses, norte-americanos, franceses e etc, como se nós nunca fossemos capaz de pensar tão bem como eles. Eu mesmo acabei de fazer isto. Entretanto a partir destes “santos”, não nego suas contribuições e impotância, devemos construir nossas alternativas, para o Brasil e America Latina a partir de nossa cultura e nossa história, uma vez que a história não se copia nem se repete, ainda mais com personagens tão diferentes.

Devemos lembrar que o pensamento de importantes autores contemporâneos foi construído sobre uma base histórica que nós não vivenciamos. Quando, por exemplo, Habermas fala em uma ação comunicativa, parte ele de uma realidade de um povo que viveu a experiência da implementação efetiva de um Estado Social, o que no Brasil nunca ocorreu. Logo os pressupostos de comunicação em uma população muito mais homogênea (pois tem uma população com 99% de acesso a educação de qualidade segundo dados do PNUDH) como a população alemã são diferentes do que o Brasil possui, onde ainda 17% da população não sabe sequer escrever o nome, e onde o apartheid social é radicalmente grave e injusto.

A construção de uma democracia dialógica, radical, participativa no Brasil passa, por este motivo, por uma discussão territorial, e especialmente no nosso caso pela discussão do pacto federativo. Só no nível local consigueremos incluir uma população inteligente, que espera por justiça, mas não apta para as discussões em nível macro, no nível da União. O povo sabe o que quer, e aos poucos está aprendendo a diferenciar o discurso da prática política. Todos os discursos podem ser iguais, mas poucos tem um projeto e uma prática de libertação política e de libertação da miséria. O povo simples pode não saber ainda a diferença teórica entre neoliberalismo e socialismo, mas sabe a diferença entre ser escravo e ser dono da sua própria vida. Se a discussão neoliberal está distante da compreensão de muitos no Brasil, ao trazermos esta discussão para a concretude do município ela fica clara para todos: neoliberalismo significa a má qualidade do ensino ou a falta da escola; a má qualidade da saúde ou a falta do posto de saúde e do hospital; a falta de saneamento e etc. No Município as teorias ganham concretude.

O nosso caminho é portanto a descentralização radical. Entretanto, esta descentralização de nada adianta sem a mudança das bases de poder no munícipio, com a mudança do sistema de governo (adotando-se o Sistema Diretorial), o fortalecimento do Parlamento Municipal, o fortalecimento dos Conselhos Municipais deliberativos, a separação da função de governo da função administrativa, com a criação de entidades autárquicas autônomas desvinculadas do governo para gerir saúde e educação, além da criação de empresas públicas municipais de propriedade coletiva dos moradores do município. A separação da função administrativa da função de governo é hoje fundamental. Não podemos mais conviver, em nenhum nível da administração, com o modelo arcaico de administração que mantém o excesso de cargos de confiança. Estes devem diminuir radicalmente para ceder lugar a uma administração profissional, concursada, auto-gerida pelos seus trabalhadores e pela sociedade local, com controle social, o único mecanismo de controle eficiente e democraticamente parcial (uma vez que a imparcialidade é improvável ou inexistente).

Importante ressaltar que, ao defendermos uma administração pública desvinculada do governo, não estamos defendendo o discurso tecnocrata e autoritário do passado. A função de governo visa estabelecer o direcionamento das políticas públicas, o que não deve ser confundido com a gestão dos serviços públicos. Acreditamos também que a gestão dos serviços públicos deve ser democrática, o que implica em mecanismos democráticos de acesso aos cargos de direção, que não seja a indicação pelo executivo ou mesmo pelo legislativo, mas sim pelos trabalhadores públicos e pela sociedade a qual se direciona o serviço.

Passamos a seguir a análise de dois importantes aspectos relativos a democracia participativa, que não pode prescindir da democracia representativa e da descentralização: primeiro a reforma política e do sistema de governo nos diversos níveis, o fortalecimento dos partidos políticos ideológicos e depois a reforma da federação brasileira com a mudança no sistema de repartição de competências.

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5.A reforma política

a)Sistema eleitoral: voto distrital?

O sistema distrital tem diversas configurações, podendo tomar a forma de distrital majoritário em um turno ou dois turnos, onde em cada distrito podem ser escolhidos um ou mais deputados, em número proporcional a população do distrito em relação aos outros, e desde de que o número de deputados por distrito não comprometa a lógica da eleição majoritária. Pode, também o sistema distrital combinar com o sistema proporcional (o chamado distrital misto), onde então temos uma parte das cadeiras no parlamento preenchida pelo sistema distrital majoritário e a outra parte pelo sistema distrital proporcional ou proporcional simples. Finalmente pode-se adotar o sistema distrital proporcional como o atualmente adotado para as eleições para Deputado Federal.

Para a análise de um sistema eleitoral ou de qualquer outro mecanismo pensado para o funcionamento do Estado, suas relações com a sociedade civil, e o aprofundamento da democracia, é necessário que levemos em consideração o entorno histórico e a realidade sócio-econômica e cultural da sociedade e do aparato do Estado para o qual se pensa um sistema qualquer. Fazendo-se esta análise percebemos que um mecanismo qualquer (seja um sistema de governo ou sistema eleitoral ou um método de repartição de competência e de organização territorial) pode ter consequências diferentes em realidades sociais, culturais, históricas e econômicas diferentes. Desta forma um instrumento que deve servir a democracia, em realidades históricas diferentes pode servir ao autoritarismo e a perpetuação no poder de um único projeto político, com uma aparência de democracia o que é demasiado perigoso.

Se o sistema distrital pode de um lado fortalecer a relação entre representantes e representados, baratear as eleições para o candidato (nunca para o partido), e facilitar o funcionamento do “recall”, os problemas dele decorrentes podem ser muito graves. O primeiro equivoco é acreditar que este sistema fortalece os partidos políticos. Na verdade os partidos podem se tornar tão grandes que podem ser descaraterizados como tal, transformando-se em frentes políticas, muitas vezes de uma única tendência político-ideológica como ocorre nos Estados Unidos. O bipartidarismo de fato pode ser uma outra consequência grave para a democracia. No Reino Unido o principal fator para a manutenção do bipartidarismo de fato hoje é sem dúvida o sistema distrital majoritário.

Em eleição realizada em 1987 no Reino Unido, o Partido Trabalhista segundo colocado nas eleições, obteve 27% dos votos populares, o que resultou em 32% das cadeiras no parlamento, enquanto uma aliança entre o Partido Liberal e o Partido Social Democrata obteve 25% dos votos o que, entretanto, resultou em 3,5% das cadeiras (DUHAMEL, Olivier. Les Democraties, Éditions du Seuil, septembre 1993, Paris). Como se vê, o sistema distrital permite uma gravíssima distorção, uma vez que exige que o Partido esteja organizado em todos os distritos e com votos distribuidos de maneira equilibrada em todos eles. O partido que tem grande votação concentrada em poucos distritos tende a desperdiçar votos, como o caso acima citado. No Reino Unido o sistema distrital permite afastar do poder os Partidos nacionalistas. No Brasil o voto distrital, mesmo no sistema misto, representará, ainda, um enorme retrocesso para a esquerda, uma vez que seu eleitorado está, ainda, geograficamente localizado nas áreas mais industrializadas e onde há maior circulação de informação, ou seja, nos grandes centros urbanos. As últimas eleições municipais (outubro de 2000) demonstram este fato de maneira inequivoca.

Para o Brasil, o melhor sistema para o aperfeiçoamento da representação popular e correção dos problemas atualmente idenficados com o deficit de representatividade no Congresso do povo das regiões Sul e Sudeste em favor do povo das regiões Norte e Nordeste, é o aperfeiçoamento do sistema distrital proporcional atualmente adotado nas eleições para deputados federais.

Um problema já algum tempo detectado, e sempre denunciado, é o deficit de representação dos eleitores do sul e sudeste, devido aos números mínimo (oito) e máximo (setenta) de deputados federais por Estados, proporção na qual não cabe a diferença entre os Estados menos populosos e com menor eleitorado e os mais populosos e logo com maior eleitorado. A primeira coisa que deve ser dita a respeito desta discussão é que a representação dos Estados é feita no Senado enquanto a representação do povo ocorre na Câmara de Deputados. Logo é ao Senado que se impõe a lógica federal, no nosso caso de um federalismo simétrico, onde cada ente federado no mesmo nível tem as mesmas competências e representação no Senado. Partindo desta acertiva, podemos então compreender, que no nosso federalismo bicameral (existem Estados federais unicamerais como a Venezuela) não é necessário que os distritos eleitorais para fim de vinculação de votos de representantes e representados, sejam coincidentes com o território do Estado Membro, uma vez que os Deputados são representantes do povo enquanto os Senadores representantes dos Estados membros. Logo podem ser criados mais distritos eleitorais dentro do território da União que não necessariamente devam limitar-se ao território dos Estados, mas podendo inclusive ocorrer um distrito com identidade socio-econômica e cultural que reúna parte do território de dois ou mais Estados. Assim poderiamos, por exemplo, ter 100 ou mais distritos, onde em cada um ocorreria uma eleição proporcional, como hoje ocorre, entretanto coincidente com o território dos Estado membros.

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