Ausência legislativa tende a criar um ambiente de injustiça e danos irreparáveis

Autor: André L. M. Marques (*)

 

É sabido que a cobrança do porte de remessa e retorno, disciplinada pela Lei Federal 11.636/07, justificava-se (e, em alguns casos, ainda se justifica) para o custeio postal do envio e do retorno dos processos físicos, dos tribunais regionais para Brasília, e que essa cobrança era feita — como é feito com todas as correspondências físicas — através do peso medido na balança dos Correios.

Cobrança essa que, na praxe do Judiciário, estipulou-se uma faixa de 200 em 200 folhas de processo, ou seja, a cada 200 folhas, cujo peso médio em gramas representava um valor X, calculava-se o valor a ser cobrado pelo porte de remessa e de retorno.

Ocorre que, com a utilização cada vez mais frequente do processo eletrônico nos tribunais regionais e superiores, em que essa remessa e esse retorno se dão por meio informatizado pela internet, como fica essa cobrança? Ela ainda se justifica? Quanto “pesa” um e-mail?

Foram muitos os debates nos corredores dos nossos foros sobre esse tema, não previsto na legislação processual de uma época muito distante, que, infelizmente, não conseguiu produzir nenhuma posição contundente dos tribunais pátrios em um momento de “limbo jurídico” no qual conviveram (e ainda convivem!) os dois tipos de processos em tramitação, físico e eletrônico.

O silêncio dos tribunais sobre o tema causava um pouco de estranheza em tema tão palpitante e que me atraiu especial atenção no acompanhamento de um processo em fase de admissibilidade de Recurso Especial (REsp 0010862-46.2005.8.19.0003), no qual o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não conheceu do recurso especial por “deserção”, em face de um suposto não recolhimento do porte de remessa e retorno.

A verdade é que no caso em questão houve, sim, o recolhimento, inicialmente a menor e depois complementado, mas o que despertou a atenção naquele caso para instaurar esse debate é que não estávamos diante de um caso de processo físico, mas, sim, de processo eletrônico!

Tanto é que o STJ, no julgamento do agravo de instrumento interposto contra aquela decisão de inadmissibilidade, em 3 de maio passado, deu-lhe provimento ao reconhecer que “o agravante efetuou o pagamento da guia de porte de remessa e retorno dos autos (…), de modo que deve ser afastada a deserção do Recurso Especial”, pois, claramente, a hipótese ao menos merecia ser tratada como uma das hipóteses de complementação de custas previstas expressamente no artigo 511, parágrafo 2º do CPC de 1973, revogado pela Lei 13.105/15, o novo CPC, em vigor desde março de 2016.

Aliás, o novo CPC permite até que se ingresse em juízo sem o pagamento de qualquer despesa processual, porém preceitua no seu artigo 290 a necessidade de intimação da parte, através do seu advogado, para proceder ao seu pagamento em 15 dias, sob pena de cancelamento da distribuição.

E em se tratando de recursos, a mesma intimação para a complementação de preparo insuficiente prevista no antigo código — inclusive para porte de remessa e retorno — foi mantida no atual, nos parágrafos 2º, 4º, 6º e 7º do artigo 1.007.

Mas a novidade que nos interessa — que passou despercebida pela sua obviedade em dias atuais, mas que há de ser louvada por refletir o novo tempo em que vivemos — é a que se refere aos portes de remessa e retorno em processo eletrônico, tema que a jurisprudência não enfrentou na vigência da lei processual anterior e acabou “salva pelo gongo”, ou melhor, pelo novo CPC.

Ora, não restam dúvidas de que os portes de remessa e de retorno fazem parte do “preparo” dos recursos, daí que a ausência de seu recolhimento enseja o complemento das referidas custas, e não a decretação de sua deserção.

Aliás e como já observado, a Lei 11.636/2007 — que dispõe sobre as custas judiciais devidas no âmbito do STJ — já apresentava definições claras sobre essa abrangência e composição do “preparo”.

Portanto, como se extrai dos artigos transcritos nas notas de rodapé (2, 4 e 5), se os portes de remessa e de retorno integram o “preparo”, se o recorrente realizasse o recolhimento insuficiente, sempre impunha-se (como continua se impondo!) sua intimação para regularizá-lo, jamais aplicar-lhe diretamente a pena de “deserção”.

Mas a modernidade e os avanços tecnológicos do atual mundo em que vivemos acabou por tornar desnecessário e injustificado o recolhimento da indigitada rubrica, tida pelo TJ-RJ naquele mencionado caso concreto como ausente, ante a atual e irreversível virtualidade dos processos judiciais.

O porte de remessa e retorno tem origem no fato de que os processos eram remetidos às cortes superiores fisicamente, além do seu retorno após serem julgados.

Como se infere da Lei 11.419 de 2006, a “Lei do Processo Eletrônico” que entrou em vigor em 19/3/2007, também todos os tribunais deveriam criar meios para a tramitação de forma eletrônica de seus processos.

Por essa razão, o STJ, a partir de 8/6/2009, passou a distribuir os feitos de forma eletrônica, ou seja, não mais recebendo fisicamente os feitos dos tribunais regionais de origem. Desse modo, por corolário lógico, a rubrica de cobrança referente ao porte de remessa e retorno perdeu o fundamento de sua existência.

Assim, tanto no caso concreto referido como em outros assemelhados, mesmo que se entendesse que o recorrente não tinha efetuado o recolhimento dos portes de remessa e retorno e que tal não fosse caso de complementação, o simples fato de o processo ser eletrônico já deveria retirar a exigibilidade e o cabimento do recolhimento da indigitada rubrica. Mas não era isso que se praticava…

Maior prova dessa afirmação foi que o STJ, através da sua Resolução 01/2012, no parágrafo 5º do artigo 2º, que tratava especificamente dos recursos interpostos por meio eletrônico, dispôs que, “em se tratando de recurso interposto por meio de processo eletrônico, será recolhido, para o retorno das peças produzidas neste Tribunal, 50% do valor fixado na Tabela ‘C’ para até 180 folhas – 1kg”.

Por essa fórmula, passou a ser devido somente o retorno das decisões dos processos aos tribunais de origem, e não mais suas remessas.

Ainda que se considerasse essa cobrança também injustificada, pois não havia (como continua havendo!) como se aferir o peso de um e-mail em gramas ou quilos, pelo menos o STJ já tinha entendido que o processo eletrônico fez desaparecer a cobrança dos portes de remessa e retorno nos moldes em que originalmente concebidos.

Mas e os tribunais regionais, o que fizeram sobre isso? A resposta a essa indagação pode ser vista no caso concreto mencionado no início deste artigo, o que se afigurava no mínimo injusto.

A hora desse debate acabar já havia passado, com milhares de recursos em processos eletrônicos já julgados “desertos”, quando adveio ao mundo o novo CPC, promulgado em 16/3/2015 e vigente desde março do ano passado, segundo o qual, no parágrafo 3º do artigo 1.007 já mencionado, assim positivou:

“§3º É dispensado o recolhimento do porte de remessa e de retorno no processo em autos eletrônicos”.

Antes tarde do que nunca! Como no dito popular que cabe como mão de luva a esta temática, a realidade é que já não era sem tempo este aperfeiçoamento da legislação, refletindo o tempo da sua edição e de sua entrada em vigor.

Mas o Direito está mudando com uma velocidade que as leis, em especial as codificadas, não conseguem acompanhar ante a morosidade dos seus processos de reforma.

Aí entra o papel do Poder Judiciário como vigilante dessa avalanche de novas ferramentas postas ao uso dos operadores do Direito e da sociedade como um todo.

Por isso, que venham novas modernidades, mas que a jurisprudência e a lei não esperem 43 anos para se adequarem, pois, se “a Justiça tarda, mas não falha”, a ausência legislativa e a manutenção das antigas visões dos tribunais tendem a criar um ambiente de injustiça e de danos irreparáveis.

 

 

 

Autor: André L. M. Marques  é advogado e membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).


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