Abusos na proposição de ações sobre cotas de gênero nas eleições

Autor: José Luís Blaszak (*)

 

A previsão legal de reserva mínima de 30% para cada gênero na formação de candidaturas dos partidos e das coligações está insculpida no artigo 10, parágrafo 3º da Lei 9.504/97.

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

A Procuradoria-Geral Eleitoral, em novembro de 2016, enviou orientação para as Procuradorias Regionais, que, por sua vez, orientaram os promotores das zonas eleitorais a fim de instaurarem procedimentos preparatórios eleitorais, visando apuração da veracidade das candidaturas de mulheres que não receberam nenhum voto. Detectadas, ao seu modo de ver, fraudes no preenchimento do percentual mínimo de 30% das cotas para cada gênero, deveriam propor ações judiciais eleitorais em face dos responsáveis. A orientação determinou, ainda, excluir no polo passivo as mulheres eleitas, ou seja, se houver cassação de mandatos, será somente em relação aos candidatos do sexo masculino.

A Orientação Genafe 01/2016 estipulou, dentre outras medidas:

h) propor ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) pela fraude praticada como elemento do abuso (REspe 631-84/SC) em face dos responsáveis por ela e dos candidatos beneficiários do sexo masculino, excluindo-se do polo passivo as mulheres eleitas, sob pena de, para se combater ilícito que lesou ação afirmativa, prejudicar integrantes da minoria que deveriam ter sido por ela beneficiados.

i) propor ação de impugnação de mandato eletivo (AIME) pela fraude (art.14, § 10, da CR/88 e REspe 1-49/PI) em face dos candidatos do sexo masculino diplomados, excluindo-se do polo passivo as mulheres eleitas, sob pena de, para se combater ilícito que lesou ação afirmativa, prejudicar integrantes da minoria que deveriam ter sido por ela beneficiados.

A partir dessa orientação, foram promovidas inúmeras ações judiciais eleitorais país afora.

A legítima e oportuna campanha pela maior participação feminina no processo eleitoral brasileiro, coincidindo com os resultados das eleições de 2016, serviu de motivação especial para a iniciativa do Ministério Público.

É importante frisar que a lei eleitoral trata de reserva mínima de cotas de cada gênero. Não trata de proteção a um determinado gênero. Ainda que se defenda que o gênero masculino se sobrepõe há tempo no processo político brasileiro, não se pode, por conta dessa desproporção, forçar reconhecimento de ilícitos eleitorais sem previsão legal, em especial aqueles que redundem em cassação de mandato, sob pena de prática de abuso, ainda que em defesa de uma boa causa.

Há quem diga que não se pode invocar a boa-fé dos candidatos masculinos em detrimento das eventuais “candidaturas laranjas” das mulheres no preenchimento mínimo dos 30% de cotas de cada gênero. É dito que é obrigação de todos os candidatos o conhecimento das regras tocante ao regular preenchimento das cotas mínimas de gênero e da sua regular campanha eleitoral.

No entanto, a boa-fé pode ser invocada, uma vez que as regras de registro de candidatura estão postas em capitulação própria na Lei 9.504/97 — artigos 10 ao 16-B. Desde o advento da Lei 12.034, em 2009, não houve alterações na Lei das Eleições, e tampouco as resoluções do TSE trataram da matéria de maneira inovadora.

Frise-se, nunca antes houve a extensão proposta agora pelo Ministério Público por meio das inúmeras ações judiciais eleitorais.

Não há nenhum artigo na legislação eleitoral, tampouco nas resoluções do TSE, que obrigue os candidatos a vigiarem e fiscalizarem os atos de campanha dos seus próprios companheiros de partido ou de coligação.

A busca do Ministério Público pela cassação dos mandatos unicamente dos candidatos homens, por meio da anulação do Drap por fraude, ressalvando os mandatos das candidatas mulheres, deve ser rechaçado. Não é possível a anulação de parte do Drap sem atingir ambas as candidaturas, tanto de homens quanto de mulheres, pois constam do mesmo Drap.

Nenhum voto, por si só, não indica fraude eleitoral. A invocação do REsp 149, do Piauí, feita por alguns, não é suficiente para embasar tamanho intento de desconstituição de mandatos originados do voto popular, ditos soberanos. A força de desconstituição precisa ser, sobretudo, revestida de ilicitude tipificada por lei. Não há lei para tal, nem jurisprudência nesse sentido. O que há é um precedente do TSE — REsp 149 — que, diga-se de passagem, ampliou os limites da fraude a ser examinada por meio de ação de impugnação de mandato eletivo. Casualmente, a Aime do REsp 149 teve como objeto o preenchimento dos percentuais de cotas de gênero, mas sequer foi examinado ainda o mérito pelo TSE.

Daí dizer que toda e qualquer campanha de mulheres candidatas que não obtiveram votos significa que há revestimento de fraude é totalmente exagerado e descabido.

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. CORRUPÇÃO. FRAUDE. COEFICIENTE DE GÊNERO. 1. Não houve violação ao art. 275 do Código Eleitoral, pois o Tribunal de origem se manifestou sobre matéria prévia ao mérito da causa, assentando o não cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo com fundamento na alegação de fraude nos requerimentos de registro de candidatura. 2. O conceito da fraude, para fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10, da Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei. A inadmissão da AIME, na espécie, acarretaria violação ao direito de ação e à inafastabilidade da jurisdição. Recurso especial provido.
(TSE – RESPE: 149 JOSÉ DE FREITAS – PI, Relator: HENRIQUE NEVES DA SILVA, Data de Julgamento: 4/8/2015, Data de publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, Data 21/10/2015, Página 25-26).

Não há ainda jurisprudência sobre a matéria. Há poucos precedentes. Para se dizer que há jurisprudência, é necessário o tribunal reunir vários precedentes semelhantes. Os poucos precedentes existentes nos tribunais regionais eleitorais são no sentido de rejeitar a fraude sem provas contundentes.

À luz dos princípios da legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, traz-se para a reflexão importante precedente do TRE-RS, que, por ocasião das eleições de 2012, confirmou que a ação judicial sem provas contundentes de fraude deve ser rejeitada.

RECURSO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. RESERVA DE GÊNERO. FRAUDE ELEITORAL. ELEIÇÕES 2012.

Matéria preliminar afastada.

Suposta fraude no registro de três candidatas apenas para cumprir a obrigação que estabelece as quotas de gênero, contida no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97.

A circunstância de não terem obtido nenhum voto na eleição não caracteriza por si só a fraude ao processo eleitoral. Tampouco a constatação de que haveria propaganda eleitoral de outro candidato na casa de uma delas.

Provimento negado.

(Ação de Impugnação de Mandato Eletivo nº 76677, Acórdão de 03/06/2014, Relator(a) DESA. FEDERAL MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, Publicação: DEJERS – Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 99, Data 05/06/2014, Página 6-7 ) (grifo nosso).

É de se destacar do acordão as seguintes assertivas.

(…)

Ademais, não encontro na legislação qualquer sanção para o virtual descumprimento da louvável política afirmativa em discussão. Assim, não há amparo em dispositivo legal para a cassação dos diplomas de todos os demais candidatos do partido acionado, tal como postula o recorrente, sob pena de responsabilização objetiva não prevista em lei.

Note-se que as quotas de gênero estão efetivamente inseridas no debate constitucional das políticas afirmativas. Mas o que aqui se discute é tão somente o desdobramento de tal política na seara eleitoral a qual resta, talvez, sujeita à incompletude, porquanto, ainda que tal fraude houvesse sido detectada, seria destituída de desdobramentos no balanço eleitoral. Não teria retirado qualquer paridade de armas, ou legitimidade dos eleitos. Alinho-me, portanto, ao que o TSE decidiu recentemente em Recurso Especial com origem no Rio Grande do Sul:

Representação. Eleição proporcional. Percentuais legais por sexo. Alegação.

Descumprimento posterior. Renúncia de candidatas do sexo feminino.

1. Os percentuais de gênero previstos no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 devem ser observados tanto no momento do registro da candidatura, quanto em eventual preenchimento de vagas remanescentes ou na substituição de candidatos, conforme previsto no § 6º do art. 20 da Res.- TSE nº 23.373.

2. Se, no momento da formalização das renúncias por candidatas, já tinha sido ultrapassado o prazo para substituição das candidaturas, previsto no art. 13, § 3º, da Lei nº 9.504/97, não pode o partido ser penalizado, considerando, em especial, que não havia possibilidade jurídica de serem apresentadas substitutas, de modo a readequar os percentuais legais de gênero.

Recurso especial não provido.

(Recurso Especial Eleitoral nº 21498, Acórdão de 23/05/2013, Relator(a) Min. HENRIQUE NEVES DA SILVA, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 117, Data 24/6/2013, Página 56 )

Colho do voto exarado pelo ministro Henrique Alves da Silva, acolhido por unanimidade por seus pares, parte de seu raciocínio:

No presente caso, considerado pelo acórdão regional que a recorrida respeitou os limites legais de gênero no momento inicial dos registros de candidatura, não vejo como sustentar a alegada infração ao art. 10, § 3 0, da Lei n° 9.504/95, uma vez que as vagas foram efetivamente preenchidas.

Isso porque o dispositivo em comento, como já dito, tem o escopo de permitir o acesso às candidaturas de acordo com os limites previstos para cada sexo. Tal garantia deve ser respeitada tanto no preenchimento das vagas inicialmente requeridas quanto no das remanescentes.

Porém, depois que os partidos políticos e coligações escolhem seus candidatos e os apresentam à Justiça Eleitoral, o bem jurídico tutelado pela ação afirmativa é atingido. E as agremiações, ressalvada a hipótese de expulsão dos quadros partidários, não detêm o poder de cancelar as candidaturas registradas.

(…)

Em suma, o objetivo da política pública de incentivo à participação igualitária de candidaturas foi respeitado pela coligação no momento próprio. O ato de renúncia é unilateral, pessoal e independe da vontade das agremiações; E, por fim, quando ocorreram as desistências das candidaturas, não havia possibilidade jurídica de serem apresentadas substitutas.

No mesmo sentido, destaco ementa do bem lançado voto da lavra do Dr. Luis Felipe Paim Fernandes, membro efetivo desta Corte:

Recurso. Conduta vedada. Reserva legal de gênero. Art. 10, § 3º, da Lei n. 9504/97. Vereador. Eleições 2012.

Representação julgada improcedente no juízo de origem.

Obrigatoriedade manifesta em alteração legislativa efetivada pela Lei n. 12.034/09, objetivando a inclusão feminina na participação do processo eleitoral.

Respeitados, in casu, os limites legais de gênero quando do momento do registro de candidatura. Atingido o bem jurídico tutelado pela ação afirmativa.

O fato de as candidatas não terem propaganda divulgada ou terem alcançado pequena quantidade de votos, por si só não caracteriza burla ou fraude à norma de regência. A essência da regra de política pública se limita ao momento do registro da candidatura, sendo impossível controlar fatos que lhe são posteriores ou sujeitos a variações não controláveis por esta Justiça Especializada.

Provimento negado.

(TRE/RS, RE 417-43, Rel. Luis Felipe Paim Fernandes, Sessão de 07/11/2013).

Ainda, por oportuno, transcrevo excerto das razões do referido voto exarado no RE 417-43, haja vista a similitude com o caso ora analisado:

É cediço que, quando do registro de candidatura, as candidatas submeteram seus nomes. Pelo conjunto probatório coligido aos autos transparece que não desenvolveram atos de campanha. Entretanto, a configuração de ilicitude não decorre de dedução ou presunção. Sabe-se que muitos candidatos desistem, efetivamente, de suas posições. A submissão de candidatura é também ato unilateral fundado na declaração de vontade humana. Não há qualquer regra que impeça a reversão dessa declaração ou que imponha o status de candidato do início ao fim do pleito eleitoral. O critério da legalidade, oriundo de  matriz constitucional, poderia suprimir a liberdade inerente aos pleiteantes  aos mandatos eletivos, mas não o faz, e onde a Constituição silencia, não pode o intérprete restringir.

Sabe-se, ainda, que o embate político busca, muitas vezes, a satisfação de seus apetites na própria Justiça Eleitoral. Dessa maneira, é frequente que os pedidos não se revoltem quanto a efetivas ilegalidades, mas apenas quanto à situações políticas desfavoráveis. A efetiva realização de justiça determinaria que todas as candidaturas, de todos os partidos, fossem auditadas após o pleito, para verificar quais, em realidade, cumpriram a reserva de gênero, sob pena de se respaldar pedido de quem também não tenha observado a regra a qual quer emprestar maior amplitude.

Aliás, qual a essência da regra discutida? Penso que ela se limita ao registro, sendo impossível apurar fatos que lhe são posteriores e estão sujeitos à inúmeras variações não controláveis por essa Justiça Especializada.

(…)

Sublinho a importância vital da participação de cada gênero na comunidade política. Mulheres e homens devem possuir reais chances de realizar-se e desenvolver-se politicamente. Tal missão está confiada aos partidos políticos e a diversas instâncias da sociedade civil, senhora dos seus próprios destinos e das conformações que desejar adotar”.

Adiciona-se que não há obrigatoriedade aos candidatos para aderirem ao sistema convencional de campanha eleitoral com usos padronizados de propaganda eleitoral, comícios, reuniões, jingles, santinhos e cartazes, dentre outros. Os candidatos são livres para exercerem seu direito de pedir voto, ainda que corram o risco de não receber nenhum.

No mesmo sentido, não há ilegalidade na desistência das candidaturas. Porém, se, de fato, houver desistência, os candidatos devem comunicar à Justiça Eleitoral. Se não houver comunicação, não há que se falar em ilicitude, e sim em irregularidade, pois não há previsão de penalização. Dizer que quem desiste comete, automaticamente, fraude eleitoral, beneficiando o seu partido ou a sua coligação, é um longo caminho de necessária prova contundente.

A causa da maior participação feminina na política e da efetiva campanha eleitoral uma vez registradas as candidaturas é legítima e oportuna. Para que haja o controle judicial do preenchimento de percentual mínimo das cotas de gênero e sua regular participação no processo eleitoral, com possível penalização aos que praticarem fraudes por meio de “candidaturas laranjas”, é indispensável que haja previsão legal para tanto. A propositura de ações judiciais, sob fundamento de fraude eleitoral, para desconstituir mandatos eleitorais de candidatos homens por causa de candidatas que não receberam nenhum voto, por si só, é abusiva.

 

 

 

Autor: José Luís Blaszak é professor e advogado eleitoralista. Foi juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso.


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