A possível caracterização de determinados tokens como valores mobiliários

Autor: Raphael Andrade (*)

 

Como se sabe, recentemente a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) se manifestou, novamente, a respeito das initial coin offerings (ICO), desta vez publicando material em forma de FAQ (frequently asked questions — ver aqui). Ali, são esclarecidos alguns aspectos introdutórios sobre o tema, descrevendo conceitualmente as ICOs como “captações públicas de recursos, tendo como contrapartida a emissão de ativos virtuais, também conhecidos como tokens ou coins, em favor do público investidor”.

É certo existirem inúmeras dúvidas e incertezas no horizonte, especialmente no tocante à ausência de regulação específica aplicável às emissões de tokens (o que, note-se, não implica dizer em ausência de regulação aplicável), colaborando, de todo modo, para a manutenção de um ambiente institucional que, pelo menos neste campo, revela-se marcado por um significante nível de insegurança jurídica.

No entanto, o questionamento que tem oferecido maiores preocupações diz respeito à possível caracterização de determinados tokens como valores mobiliários, sujeitos, portanto, à legislação que disciplina o mercado de capitais, notadamente a Lei 6.385/1976 e as normativas da Comissão de Valores Mobiliários.

Sobre o tema, no FAQ acima mencionado, a CVM se posicionou no sentido de que “tais ativos virtuais, por sua vez, a depender do contexto econômico de sua emissão e dos direitos conferidos aos investidores, podem representar valores mobiliários, nos termos do art. 2º da Lei 6.385/76”. Recentemente, inúmeros textos têm sido publicados abordando o assunto, em maior ou menor profundidade, razão pela qual pretendo discutir, sobre ele, apenas um ponto específico, visando contribuir ao debate de fôlego que vem sendo produzido.

Pois bem, a potencial caracterização de tokens como valores mobiliários se daria com apoio no inciso IX do artigo 2º da Lei 6.385/1976 (inserido pela Medida Provisória 1.637/1998, posteriormente convertida na Lei 10.198/2001), que acrescentou, ao rol até então taxativo dos valores mobiliários, construção propositadamente aberta, aparentada da noção estadunidense de securities, erigida em antigo precedente que, atualmente, aparece, de forma quase sacrossanta, na esmagadora maioria dos textos que discutem o assunto (se você tem lido, recentemente, algo sobre o tema, provavelmente já se deparou com o tal Howey test. Veja, por exemplo, aqui).

Examinando alguns precedentes da Comissão de Valores Mobiliários, abaixo listados, que tiveram por objeto, direta ou indiretamente, a discussão a respeito dos títulos ou contratos de investimento coletivo (CICs) e o eventual enquadramento de instrumentos erigidos na prática negocial no esqueleto desenhado pelo inciso IX supracitado, percebe-se que, em grande parte dos casos, a comissão não tem muita dificuldade em preencher os requisitos estabelecidos no MEMO/PFE-CVM/GJU-1/Nº 08/05, da Procuradoria Federal Especializada, quais sejam:

  • caracterização como modalidade de investimento coletivo;
  • fornecimento de recursos (dinheiro ou qualquer outro bem suscetível de avaliação econômica) por parte do investidor;
  • gestão dos recursos por parte de terceiros;
  • empreendimento comum, cujo sucesso é almejado tanto pelo investidor quanto pelo gestor, havendo entre ambos uma comunhão de interesses econômicos interligados juridicamente;
  • expectativa de obtenção de lucros, ou seja, o investidor, ao decidir pela alocação de seus recursos em um valor mobiliário, visa à obtenção de algum tipo de ganho, benefício ou vantagem econômica, em função do contrato de investimento de risco realizado. Esses lucros podem ser auferidos por meio de participação, parceria ou remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços; e
  • assunção, pelo investidor, dos riscos de financiador do negócio (ou os riscos do empreendimento), que são diversos dos riscos comuns comerciais, ou seja, os riscos poderão resultar na perda total ou parcial dos recursos investidos.

Assim, gostaria de provocar uma reflexão a respeito do requisito de “expectativa de obtenção de lucro”, instrumentalizado na geração do “direito de participação, de parceria ou remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços”.

Com relação a tal critério, é nítido que a redação adotada pela legislação brasileira é ainda mais ampla do que aquela que lhe inspirou (que fala, a seu turno, em “lucro”), somente exigindo que o investimento dos recursos origine alguma forma de “remuneração”.

O grande questionamento aqui, me parece, diz respeito aos chamados utility tokens (ou seja lá qual for a denominação adotada para designar tokensemitidos para possibilitar o acesso a um determinado produto ou plataforma e que, em analogia, assemelham-se às application programming interface keys ou APIs) e aos tokens que permitam sua conversão posterior em um bem ou commodity digital (tais como espaço para armazenamento de dados e banda para navegação, dentre outros, haja vista que a prestação de serviços está expressamente abarcada pela hipótese legal).

Seria possível, então, subsumir tais “retribuições” no conceito legal de “participação”, “parceria” ou, mais amplamente, “remuneração”? A resposta preliminar, que sobressai da análise das decisões, parece indicar em sentido positivo, mas veja-se o interessantíssimo, contudo dissonante, posicionamento do então diretor da comissão, Otávio Yazbek, no Processo CVM RJ 2009/6346 (Reduções Certificadas de Emissão – RCEs, ou “créditos de carbono”):

“Entendo que se, no caso dos CEPACs ou das CCBs, foi possível, ante as condições concretas, caracterizar aqueles instrumentos como valores mobiliários, o mesmo não se pode fazer para os créditos de carbono. Primeiro porque aqui se está tratando de títulos “resgatáveis” (destinados ao resgate em um determinado tipo de bem ou de direito, como acima esclarecido) e não em instrumentos geradores de um rendimento financeiro propriamente dito […]”.

Mas a posição não é majoritária. No Processo CVM RJ 2003/499, a linha seguida pelo então diretor relator foi distinta, adotando-se a interpretação de que a existência de um mercado secundário (que, em muitos casos, também existe para os tokens), em que se podem alienar com ganho os títulos, permitiria o reconhecimento do caráter lucrativo dos instrumentos. No caso das RCEs, o voto do diretor divergiu dessa posição, argumentando que o caráter lucrativo deveria dizer respeito ao próprio título, estando diretamente relacionado à sua natureza de instrumento de investimento.

Assim, o embate se dará, nesta arena, com vistas à caracterização, ou não, da “retribuição” conferida aos titulares dos tokens fora dos limites desenhados pela legislação e pela massa crítica de decisões da comissão. Importa notar, entretanto, que em situações nebulosas, como aquela das RCEs e, certamente, como a dos tokens, parece haver campo fértil para a construção de argumentos que militem em ambos os sentidos.

De todo modo, é intuitivo afirmar que, dada a extrema flexibilidade proporcionada pelas operações de criptofinanciamento, que podem adquirir as mais variadas feições e conferir, aos titulares-investidores, uma gama de direitos virtualmente infindável, a comissão terá trabalho árduo.

De plano, afigura-me, até mesmo do ponto de vista lógico e em consonância com o proteiformismo acima mencionado, impossível estabelecer uma conclusão aplicável aprioristicamente a toda e qualquer ICO. Isso não impede, ainda assim, o delineamento de um roadmap consistente, que garanta aos agentes econômicos alguma tranquilidade para navegar mares que, hoje, são proibitivamente agitados. A ver.

Por fim, vale o alerta para emissores que lançam ao mercado tokens que podem, sem muito esforço, serem enquadrados no conceito de valores mobiliários. A ausência de manifestação exaustiva da comissão a respeito das ICOs, até o presente momento, não é justificativa plausível para o descumprimento das normas disciplinadoras do mercado de capitais brasileiro e não poderá, futuramente, ser utilizada como escusa.

Sobre o tema, o colegiado assim já se manifestou, no Processo CVM RJ 2014/10060, esclarecendo que “não há qualquer norma legal permitindo que se interprete a ausência de atuação preventiva da CVM como causa para a preclusão administrativa da atividade sancionadora de eventual irregularidade cometida no mercado de valores mobiliários”.

Atenção: “If it looks like a duck, swims like a duck, and quacks like a duck, then it probably is a duck”.

 

 

 

 

Autor: Raphael Andrade  é sócio do Andrade Chamas Advogados, professor da Escola Superior de Direito (ESD) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador da Comissão de Direito Comercial e Societário da 12ª Subseção da OAB-SP. É mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e extensão em Private Equity & Venture Capital pela Universität Basel.


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